Simone de Oliveira no Coliseu dos Recreios – Sair de cena quando quer, como quer

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Fez de tudo, não só no mundo da música, mas também na televisão, cinema, rádio, teatro (de revista e não só). Talvez o segredo para a sobrevivência artística num mercado periférico e pobre da Europa seja esse.

65 anos de carreira é obra. E ter chegado aos 84 anos de idade com capacidade de fazer uma festa de despedida em que ninguém quer faltar, a começar pela primeira figura do Estado e a terminar pelos camiões de transmissão da RTP (que por curiosidade acabou de cumprir igualmente 65 anos), é feito que para figuras que se contam pelos dedos das mãos.

É neste contexto que Simone de Oliveira entra em palco, de andar seguro e vestido preto, até ao centro onde está mesa com candeeiro e banco alto. Ao fundo, a banda. E está tudo. Para arrancar, “Preconceito/Lama”, de Maria Bethânia, com as palavras “Se quiser fumar, eu fumo” como cartão-de-visita. Simone de seguida alerta para os preconceitos de que foi alvo, e que hoje o cenário em geral até esteja pior. Faz também questão em dizer repetidamente que viveu muito, e bem. Tem o direito de o fazer.

Profissionalmente, Simone começou com o treino rigoroso do maestro Mota Pereira no Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional. Escola patrocinada pelo antigo regime, mas com a vantagem das grandes bandas e concentração de talento no ensino e nos alunos. Ali cresceu, evoluiu e veio a integrar o quarteto de luxo que lutava pelo título de rei da rádio, gerando rivalidades dignas de Oasis versus Blur em plena década de 60 de crescimento económico e transformação social, mas com Salazar na Presidência do Conselho. A televisão explode e o festival da RTP da canção começa a ser a consagração maior da música ligeira. Simone de Oliveira consegue vencê-lo duas vezes (de memória só nos recordamos de Dora tê-lo feito também nos ano 80), a primeira em 1965 com “Sol de Inverno”, de Nóbrega e Sousa, e em 1969 com “Desfolhada”, o momento talvez mais célebre da carreira, fruto da sua parceria artística mais mítica com José Carlos Ary dos Santos.

É ali que se cristaliza a personalidade rebelde, que não se conforma com as pressões venham de onde vierem, mesmo quando foi imediatamente catalogada e saneada a seguir ao potente comboio da revolução, prova que a aposta do Estado Novo em ter mais preocupação no controlo do entretenimento popular do que a produção cultural dita de elite foi pura ilusão. Aliás, Simone revelou há poucos dias na ampla cobertura mediática a que merecidamente teve direito que teve proposta de Ary dos Santos para cantar para o Partido Comunista, mas que declinou. Mesmo assim, Simone conseguiu dar a volta, até porque com os companheiros do chamado nacional cancionetismo foi diferente. António Calvário, o outro sobrevivente no ano da Graça de 2022 (e com bom aspeto, a macrobiótica a dar frutos) e presença acarinhada no átrio do Coliseu, acabou por ter um ou outro êxito (“Mocidade”), mas nunca deixaria o circuito de um teatro de revista que foi perdendo destaque e de uma ou outra participação na televisão, passando por uma tentativa de renovação de imagem. Artur Garcia, que partiu no ano passado, talvez nem isso, tendo passado a ser proprietário de uma loja de discos. Madalena Iglésias (falecida em 2018) partiu para o estrangeiro em 1972 e deu corte na carreira da vedeta de “Ele e Ela”, com regressos pontuais para homenagens.

Mas há conversas mais reveladoras, como a feita em 2013 na RDP com Germano Campos (cujo canal de YouTube muito se recomenda), por alturas da publicação do álbum Pedaços de Mim, onde partilha que o maestro Marques Vidal a obriga a cantar sem voz, rasgando atestados médicos até partir a voz no Savoy da Madeira, com as cordas vocais esgaçadas (em entrevista de 1962 com António Miguel soa praticamente irreconhecível, uma menina), à revelação que tinha voltado às aulas de canto fazia 3 anos ou à recusa em fazer playback.

Voltando ao espetáculo, Simone vai alterando a leitura dos poetas maiores, como Fernando Pessoa ou David Mourão-Ferreira, com a interpretação de clássicos como “No Meu Poema”, de Ary, ou momentos de colaboração com a releitura de “Desfolhada” por DJ Kamala (não podia deixar de repetir no formato clássico antes do final), ao dueto com Carlão ou a invasão de campo de colaboradores em “Apenas o Meu Povo”. Se estas últimas propostas são questionáveis, e certamente que o são, o espirito e voz inadejectivável de quem nunca vendeu a alma dominam sempre a sala esgotada de fãs a gritar o seu nome.

Fez de tudo, não só no mundo da música, mas também na televisão, cinema, rádio, teatro (de revista e não só). Talvez o segredo para a sobrevivência artística num mercado periférico e pobre da Europa seja esse.

Fotos de: Rodrigo Simas

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