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Mouthwashing comprova que não é necessário apostar em criaturas e monstruosidades mitológicas para criar terror e tensão, bastando centrar-se naquilo que é mais assustador: a nossa inabilidade em aceitar os nossos erros.

A nave espacial Tulpar está a meses de alcançar o seu destino. A sua tripulação é composta por Curly, o capitão, Jimmy, o seu copiloto, Daisuke e Swansea, que compõem a equipa de manutenção, e Anya, a única enfermeira a bordo. A Tulpar é a única nave da frota da Pony Express que ainda é pilotada por uma equipa humana, graças à reputação de Curly enquanto capitão e piloto de longo curso, mas é apenas uma questão de tempo até a equipa ser substituída por um sistema de navegação controlada por IA. A viagem é marcada por uma enorme incerteza em relação ao futuro. Qual será, na verdade, o destino da equipa se a Pony Express terminar os seus contratos? O que fará Swansea, um homem já no final da carreira e com um passado de alcoolismo, se ficar sem trabalho? Enquanto a tripulação tenta manter o simulacro de uma rotina terrestre, com ciclos de dia e noite artificiais, onde a passagem do tempo é cada vez mais difusa e estranha, a nave viaja pelo vazio do espaço. Demasiado longe para voltar ao planeta Terra e suficientemente distante do seu destino para acalmar os nervos crescentes da tripulação. Entre a tensão do futuro e a incerteza da tripulação, Curly tenta despenhar a Tulpar contra uma cadeia de asteroides, numa tentativa de suicídio inesperada.

Dois meses depois do acidente, a nave Tulpar é um túmulo em perpétuo movimento. Curly sobreviveu ao acidente, mas o seu corpo ficou queimado e a sua sobrevivência depende dos analgésicos que toma diariamente para afastar a dor. O capitão que servia como suporte emocional para a equipa está agora preso a uma cama, sem mãos e pés, só com um olho perpetuamente aberto e sem a habilidade de fazer a mais simples ação que lhe permita sobreviver, como comer e engolir. O seu aspeto grotesco é um reflexo do seu erro, da sua loucura momentânea, que se expande pela sua equipa, que ainda não consegue compreender o que levou Curly a cometer um crime tão horrendo. Curly é um capitão condecorado, cujo profissionalismo o levou ao lugar de piloto e comandante, e a sua tentativa de suicídio é chocante para a equipa. A idolatria transformou-se em dúvida e a dúvida deu lugar à raiva e incompreensão. Com Curly incapacitado, Jimmy assume o papel de capitão e a responsabilidade de salvar a equipa da Tulpar antes que seja tarde de mais. Ainda faltam meses até ao destino, a comida escasseia e não há ninguém a anos de luz. Em seis meses, a nave ficará sem energia e mais depressa ficarão sem mantimentos. Apenas Jimmy poderá salvar a sua tripulação de uma morte lenta.

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Mouthwashing (Wrong Organ)

Mas Jimmy não é o nosso único narrador e protagonista. Mouthwashing abandona a estrutura linear e utiliza saltos temporais para contar a sua história. Num momento, estamos a seguir Jimmy a tentar abrir o porão para aceder à carga que transportam, numa tentativa de encontrar alimentos que garantam a sobrevivência da sua equipa, noutro momento, acompanhamos Curly antes do acidente enquanto tenta manter a tripulação ativa e funcional. A campanha dá-nos assim duas perspetivas distintas sobre os acontecimentos através de Curly e Jimmy, retratando a decomposição constante da nave ao longo das semanas que se passam após o acidente. A Tulpar transforma-se transformar progressivamente num inferno de metal, atolada de lixo e dos sinais do tempo. O ecrã do lounge, que transmite vídeos que procuram simular a realidade terrestre, acabará por ser quebrado com um machado, mas ainda não sabemos o que irá provocar tal acidente – e se será um acidente ou algo mais. Num minuto, vemos Daisuke ferido, mas o próximo salto temporal poderá não ser até ao momento em que o acidente aconteceu, com Mouthwashing a deliciar-se no mistério ao manter a tensão até finalmente revelar ao jogador o que aconteceu. É uma estrutura perfeita para uma experiência tão surrealista, filosófica e melancólica como esta, onde a natureza humana é analisada através das decisões das suas personagens.

A dicotomia entre Jimmy e Curly está no cerne da narrativa e do mistério em torno de Mouthwashing. O que levou Curly a sacrificar a sua tripulação? Porque motivo escolheu terminar a sua vida quando sempre zelou pela proteção daqueles que lhe estavam mais próximos? Enquanto saltamos no tempo e vemos a sua história a desenrolar-se, temos em justaposição a crescente pressão e paranoia de Jimmy, o seu melhor amigo e copiloto, que se viu obrigado a aceitar a responsabilidade que Curly lhe deixou. Jimmy é mais duro, incompreensivo e muito menos paciente que Curly, desculpando as suas ações com a necessidade de encontrar um escape, repetindo constantemente que irá resolver tudo e salvar a tripulação porque essa é a sua responsabilidade. São dois homens que carregam o peso da responsabilidade nos seus ombros, ambos com segredos que procuram esconder, mas apenas um deles é capaz de assumir as suas ações e enfrentar os seus erros. E é essa descoberta que comanda uma grande parte de Mouthwashing.

Os saltos temporais funcionam como níveis de Mouthwashing, que se constrói em torno de uma jogabilidade assente em mecânicas de exploração e aventura, com um foco na resolução de puzzles simples e na descoberta de itens. A nave não é extensa e só temos acesso a um número limitado de salas e corredores, tornando-se absolutamente familiar ao longo das horas, até quando se transforma entre saltos temporais. Uma escolha acertada que acarreta um golpe emocional sempre que os cenários se transformam, às vezes ainda sem contexto, e vemos o que é familiar a ganhar contornos estranhos e desconhecidos. O minimalismo do design enaltece a ideia de pertença devido à reutilização dos cenários e Mouthwashing funciona dentro desta escala reduzida.

No que toca aos puzzles, quase todos seguem o mesmo modelo: encontrar o que está em falta. Um exemplo. Enquanto as condições de vida caem na nave, Jimmy vê-se encarregue de várias tarefas para ajudar a sua tripulação a manter a sanidade e instinto de sobrevivência. O primeiro desafio passa por termos acesso à carga que a tripulação transporta, que envolve abrir o portão, apenas acessível pelo capitão. Para acedermos a carga, precisamos de um código que só visível através de um leitor, localizado no cockpit. Ao investigarmos o cockpit através dos olhos de Jimmy, dois meses depois de termos ajudado Curly a provocar o acidente, encontramos o espaço limitado por espuma anti-incêndio, mas o armário de Curly ainda se encontra acessível. Ao abrirmos o armário, a perspetiva torna-se fixa e controlamos o cursor nesta nova perspetiva, com vários pontos de interatividade e outros de pesquisa, que desenvolvem mais o mundo e tecnologia de Mouthwashing.

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Mouthwashing (Wrong Organ)

Com o leitor de códigos, voltamos à barreira que nos separa da carga. Ao selecionarmos um item através do menu simplificado, o leitor é ligado e podemos utilizá-lo diretamente nos cenários, tornando visível o código que se escondia num dos painéis da nave. Seja uma chave ou ferramenta, como o já mencionado machado, a interação acontece em pontos específicos e os puzzles nunca fogem à regra, sempre centrados na descoberta do item em falta para acedermos a uma sala inacessível. Mouthwashing não é inventivo na sua abordagem aos puzzles e desafios ambientais, não há propriamente variedade na resolução dos problemas que Jimmy tem de resolver, e isso poderá ser limitativo para aqueles que procuram um jogo mais assente nas mecânicas de investigação. Estão aqui os alicerces para um jogo de aventura, até uma certa natureza point and click quando interagimos com os cenários e objetos, mas Mouthwashing procura ser uma experiência mais emocional e surrealista do que propriamente mecânica – e nesse sentido, acaba por vencer até perante alguns problemas de escrita.

Enquanto Jimmy procura manter a equipa unida, Anya pede-lhe ajuda para dar os medicamentos a Curly. Devido às dores, Curly é incapaz de estar imóvel e Anya não aguenta ouvir os sons guturais enquanto o antigo capitão tenta engolir a medicação em esforço. É demasiado para Anya, que nunca terminou os seus estudos em medicina, que pensava ter encontrado um porto seguro na Tulpar, mas cuja viagem chegou agora ao fim. Jimmy não tem receio e começa a habituar-se a tomar conta de Curly, num misto de castigo ao antigo capitão e amigo, e crescente preocupação pelo seu bem-estar, novamente parte da sua responsabilidade enquanto o atual capitão. Enquanto Jimmy ajuda Curly, Anya pondera se uma pessoa é relembrada apenas pelo seu pior momento ou se ela é capaz de ultrapassá-lo e viver além dos erros que cometeu. Para Jimmy, a questão não existe, mas Anya pondera e não chega a uma resposta, perdida na dúvida e remorso que sente. Um remorso que é contado entre linhas, como todos os melhores momentos de Mouthwashing, perturbante, mas humano em igual medida. É aqui que está a força do jogo e da sua narrativa interativa: a nossa presença, em todos os momentos, dá-lhes força. Uma lição que a Wrong Organ aprendeu rapidamente desde o seu projeto anterior, How Fish is Made.

Quando a tripulação da Tulpar consegue finalmente ter acesso à carga que transporta há meses, a revelação é um choque e um preambulo para o seu fim. No porão, não encontram mantimentos ou recursos que permitam solucionar os projetos atuais da nave, apenas caixas e caixas de elixir oral. As caixas expandem-se até ao horizonte, distribuídas entre estantes enormes, todas elas cheias e compactadas entre filas sem fim. O desespero cai sobre a equipa, mas Swansea, um alcoólico recuperado, o destino está traçado. Cada garrafa de elixir contém 99.9% de álcool e Swansea espera aproveitar o tempo que lhe resta da melhor forma. Então bebe, ele e Daisuke, com as garrafas a ficarem espalhadas pela nave à medida que os dias passam. Mas qual é o propósito do elixir oral? Desinfetar e limpar, tratar possíveis lesões e manter a fauna oral. Enquanto bebem para esquecer, a tripulação da Tulpar desinfeta-se do passado e dos seus receios. Com o álcool, tudo vem ao de cima e torna-se fresco e percetível. O bom e o mau. Afinal, seremos relembrados pelos nossos piores atos ou pelos melhores? A resposta é cruel, mas isso que torna Mouthwashing num projeto tão interessante.

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Cópia para análise (versão PC) cedida pela Sandbox Strategies.

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