Depois de um vai, não vai, estamos de volta a Boémia com a aguardada sequela de Kingdom Come: Deliverance, um RPG medieval que nos apanhou de surpresa ao largar qualquer noção de fantasia para entregar uma simulação de feira medieval.
Kingdom Come: Deliverance II abre tal como acabou em 2018, com o simples Henry e o arrogante Hans numa missão diplomática, nas terras de Otto von Bergow (Otto III de Bergau, também conhecido como Otto, o Velho de Bergau), um dos aliados de Sigismundo. Nestas primeiras (e demoradas) horas, controlamos um Henry com todas as habilidades e equipamento, limpo, são e bem-disposto, até o bando ser emboscado por bandidos e perder tudo — e, assim, está lançado o mote para começarmos tábua rasa. Kingdom Come: Deliverance II é uma sequela ambiciosa e com uma escala de imersão bem generosa. No entanto, quanto maior somos, maior será a queda.
Logo nas primeiras horas penosas, mesmo por entre os belíssimos cenários e cinemáticas, dava para sentir as estacas que sustentam este jogo a tremer, com problemas de som, visuais e outros que impediam o jogo de avançar ainda na abertura. Não que sirva de muito, mas joguei na PlayStation 5, com estes problemas a afetarem todas as plataformas de um modo geral. A Warhorse Studios reconheceu e garantiu que muitos serão corrigidos no lançamento e durante os próximos tempos, mas mesmo depois da primeira grande atualização, ainda encontrei detalhes que podemos considerar hilariantes, como personagens que surgiam de forma engraçada durante as cinemáticas, a subirem colinas de costas, gatos a deslizar pelo mapa, cães enfiados em mesas. Depois, aqueles que já podem chatear, pois afetavam o progresso do jogo, como diálogos e ações que não aconteciam ou personagens bloqueadas em ciclosexistenciais em que não nos diziam o que fazer.
Mais uns meses de controlo de qualidade não fariam mal a ninguém, porque queria mesmo deleitar-me nesta aventura, mas fui sempre puxado para a triste realidade de estar a jogar algo inacabado. O que também me remeteu para quando experienciei o jogo anterior num estado semelhante, que apenas se tornou jogável uns bons tempos depois (anos), também com os DLC já disponíveis.
Não obstante, Kingdom Come: Deliverance II volta a propor uma imersão que não encontramos noutros jogos medievais, onde normalmente lidamos com magias, combates acrobáticos e criaturas fantásticas. Aqui, não temos nada disso para lidarmos com o melhor e o pior que a raça humana tem para oferecer, com toda a ingenuidade de um protagonista confrontado com um mundo maior do que a sua aldeia e com toda a trapalhice que as mecânicas deste jogo oferecem — a Henry e a nós, que o controlamos. Na teoria, isto é perfeito para quem adora acompanhar a época das feiras medievais ou as reencenações históricas, que começamos a ver cada vez mais. Na prática, tanta insistência em realismo acaba por tornar o jogo mais pesado e aborrecido. Disse-o sobre Red Dead Redemption 2 e digo-o aqui, mas reconheço que seja uma quezília pessoal.
Gosto de uma boa história, mas não gosto de ter de lutar contra o jogo para a poder desfrutar. Dito isto, se forem daquelas pessoas, com um dia bera, e quiserem um jogo para se perderem durante horas a caminhar, a andar à tareia em tavernas porque roubaram um pão ou olharam de lado para o bêbado local, então tudo está bem em Boémia.
Parte desse realismo, ou autenticidade, reside no combate. As mecânicas de combate são toscas, mas propositadas. O Henry não é uma máquina de guerra, é uma pessoa, e o combate não é o seu forte até insistirmos na repetição para melhorarmos a sua destreza e habilidades. Não carregamos num botão para encadear combos vistosos e despachar hordas, mas direcionamos as investidas com o analógico através de um sistema de pontos cardeais. Só que o inimigo faz o mesmo e convém prestar atenção de onde vem o ataque para defender ou ripostar. Quando isto funciona, o combate um a um é uma dança, é uma partida de esgrima, mas quando mete mais inimigos ou animais? Esqueçam, o combate em Kingdom Come não está feito para grupos. Portanto, a melhor solução passa por fugir ou esconder atrás das personagens controladas pela inteligência artificial do jogo, durante cercos ou grandes batalhas.
E a Warhorse Studios reconhece-o porque dá-nos mil e uma alternativas de abordar confrontos — desde comandar o nosso rafeiro, esperar pela calada da noite, invadir o campo inimigo para matar os seus elementos um a um ou a envenenar o pote de comida sem ninguém dar por isso. Ou, apelar ao bom senso de ambas as partes através do dom da conversa.
Henry evoluiu com a repetição — é oposto dos RPG tradicionais, onde cada nível atribui pontos para melhorar estatutos ou desbloquear habilidades. Aqui, se andarmos sempre à tareia, vamos subir a proficiência em luta corpo a corpo; ou se andarmos sempre a forçar fechaduras ou a roubar, eventualmente essas mecânicas tornam-se mais acessíveis. Algo que aconteceu quando andava com dificuldades financeiras: passei grande parte das primeiras horas a roubar tudo o que não estava preso ao chão para vender aos mercadores. Enquanto subia as minhas competências furtivas e de ladroagem, descurei o combate. Quando fui emboscado, perdi miseravelmente até conseguir fugir cheio de sangue e lama. A consequência é que as pessoas vão notar e comentar até nos lavarmos!, o que não fiz… Acontece que quando quis voltar a infiltrar um acampamento de bandidos, fui apanhado pelo mau cheiro. E perdi todo o meu progresso porque gravar o jogo é um privilégio, não um direito. A Warhorse não mente quando diz que podemos moldar Henry à nossa vontade.
Se Kingdom Come: Deliverance II vive destes pequenos e hilariantes momentos, peca noutros. E enquanto avançamos pelas horas de jogo, topamos as limitações desta imersão, como muitas das decisões a não terem peso no grande esquema da narrativa. E tocando na ferida, a escrita e a representação também dão um passo em frente e outro atrás. Se inimigos da primeira aventura ganham mais dimensão, com os Cumanos a deixarem de ser meros vilões anónimos para surgirem com um lado mais humano, reforçado pela mensagem sóbria sobre a guerra e o sofrimento na abertura da prequela, já as mulheres continuam a ter um tratamento pobre, relegadas ao papel de donzelas ou de interesse romântico para o Henry – por vezes, ambas as coisas ao mesmo tempo. Dá a sensação de que o estúdio se recusa a escrever personagens femininas interessantes.
Apesar de tudo, persisti nesta Boémia do início do século XV. Henry que é uma personagem diferente, empática e fácil de gostar, especialmente quando faz ricochete do distinto e carismático Hans Capon. A dupla passa por muitas tropelias e algumas de apertar o coração, onde a química e a relação são um dos maiores destaques desta aventura, com algumas surpresas picantes.
Kingdom Come: Deliverance II acaba por ser um daqueles jogos que insisto num “é bom, mas…” e avanço para escrever todos os seus problemas numa lista de compras, mas quando estamos no momento, mergulhamos neste mundo e tudo funciona a nosso favor, é quando o jogo realmente brilha — nos campos abertos, nos bosques vivos de fauna e flora, nos pequenos vilarejos e entre longas muralhas. É um jogo que ainda tenta ser diferente, apesar de alguns tropeções e decisões.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Ecoplay.