Em Hell is Us, a Rogue Factor arriscou com confiança num jogo que pretende subverter as normas de um género que necessita de novas ideias, com uma campanha muito forte, excelentes ideias, temas poderosos e desafiantes, e um mundo memorável que só peca por depender demasiado de um sistema de combate sem grandes surpresas.
Hadea é um país em conflito. As fronteiras há muito que se encontram fechadas, a sua história é banhada em sangue, marcada por tiranos sedentes por controlo, movidos por ideais extremistas ou religiosos, que alimentaram uma fissura entre os seus habitantes. No centro do conflito, nasceram duas fações, os Palomists e Sabinians, agora presas a um ciclo de ódio que culminou numa guerra civil. Hadea é um país dividido, marcado pela guerra e pelos crimes do extremismo, a sua paisagem é pontuada por tanques abandonados, valas comuns e cidades destruídas por invasões e massacres ainda recentes. Além das suas fronteiras, as restantes nações mantiveram-se impávidas, cientes do conflito no centro de Hadea, mas propositadamente ignorantes ao sangue que escorre pelas ruas da região.
O cenário de guerra é um espelho para a atualidade, ainda que a Rogue Factor nunca o diga diretamente. Apesar de existir uma tentativa de diluir perspetivas dispares sobre quem é o atacante e a vítima na guerra civil de Hadea, existindo espaço para interpretar qualquer uma das fações como a origem do conflito, Hell is Us não tenta esconder as atrocidades de uma guerra movida por ódio, ganância e fanatismo religioso. Um conflito que podia ter sido evitado, mas que as restantes nações decidiram ignorar devido ao afastamento de Hadea e ao encerramento das suas fronteiras, como se isso justificasse a passividade do resto do mundo. Esta mensagem é clara, ainda que nem sempre seja tão poderosa como deveria, mas aprecio o facto de a Rogue Factor não ter receio de apontar o dedo e criar um paralelismo entre Hell is Us e dois dos conflitos mais marcantes desta década, mesmo que seja impossível evitar a gamificação destas histórias tão poderosas e reais. Hell is Us é uma experiência marcante, mas é também um videojogo, a sua história funciona dentro deste ambiente interativo e é incapaz de evitar as falhas deste meio. Esta é uma história sobre um conflito que poderia ser real, onde vemos valas repletas de corpos de vítimas inocentes, atirados para a lama com displicência e ódio, mas onde encontramos também, lado a lado, um colecionável para recolhermos.
Hell is Us não é apenas uma história sobre um país em guerra, mas também sobre os seus sobreviventes. Seja qual for a fação ou a sua crença religiosa ou afiliação militar, Hell is Us centra-se nas pessoas, desde uma idosa que se esconde nos esgotos para proteger um bebé órfão – cujos pais eram Sabinians e ela uma devota Palomist, mas que foi capaz de colocar de lado as suas crenças para proteger uma alma inocente –, até aos sacerdotes que são torturados nas ruas das cidades e os soldados que tentam esconder a sua aversão ao grau de violência que está a ser infligido entre ambas as fações. Enquanto conhecemos Hadea, estas histórias criam o centro emocional de Hell is Us porque revelam mais sobre a Guerra Civil e o passado da nação. Entre os corpos executados e as casas destruídas, ouvimos histórias de terror, mas também de esperança, onde um simples gesto de caridade reverbera-se perante o mal humano. É aqui que encontramos, Rémi, nascido em Hadea, mas transportado clandestinamente para fora do país quando ainda era jovem, agora sem origens e à procura de respostas, que regressa para uma nação quebrada e desconhecida, mas cujos habitantes ele acaba por querer proteger, independente da sua fação.

A Rogue Factor adotou uma estrutura em flashback para Hell is Us para evidenciar não só a crueldade de Hadea e das suas fações principais, mas também a viagem pessoal de Rémi e a tensão de compreendermos os mistérios sobre o seu passado. Quando conhecemos Rémi, já os acontecimentos de Hell is Us passaram e sabemos que ele conseguiu ter impacto sobre o futuro de Hadea, mas não sabemos como nem porquê. Rémi está capturado por uma terceira e misteriosa fação, cujas intenções só descobrimos horas depois, mas a ameaça que representa é percetível assim que começamos a campanha. Os amigos de Rémi foram capturados e torturados, não sabemos sequer se ainda estão vivos, e é perante esta incerteza e o efeito de um soro da verdade que Rémi reconta o que fez e viu em Hadea. As memórias são como peças de um puzzle maior, que se constroem de forma lenta, mas seguramente ao longo da campanha, traçando um mundo ainda mais hostil, misterioso e fascinante do que antevíamos. No centro do conflito, descobrimos a existência da Calamidade, as profecias apocalípticas e os homens e mulheres que tudo fizeram para parar o fim do mundo. Mas perante o orgulho da Humanidade, a sede por guerra e ódio, a Calamidade está prestes a acontecer.
Hell is Us é uma experiência quase única e uma das mais marcantes de 2025. Esta constatação não se centra apenas na forma como desenvolve a sua narrativa ou como se esforça para ser um reflexo sobre temas atuais e com uma enorme pertinência humanitária, mas pela forma como é concilia estes temas com um excelente design. Apesar dos seus problemas de lógica em alguns momentos, onde os puzzles nem sempre estão tão bem construídos como poderiam estar, a verdade é que Hell is Us comprometeu-se a abandonar quaisquer ajudas, mapas e pontos de interesse e sucedeu quase sem percalços. É um caso de sucesso onde a jogabilidade, narrativa e level design combinam quase sempre em harmonia e puxam constantemente entre si para dar ao jogador um guia consistente sem nunca o perder ou cansar.
Fora o mapa-mundo, onde podemos selecionar as várias zonas de Hadea, este é um mundo onde temos de guiar-nos com compassos e a leitura dos cenários. Não existem pontos de interesse, guias visuais ou até marcadores que podemos posicionar num mapa para não nos esquecermos de algo importante. Em Hell is Us, é tudo dito, mostrado ou então equacionado pelas personagens e também pelos jogadores. A Rogue Factor criou, desta forma, um verdadeiro jogo de investigação consistente que nos leva a analisar minuciosamente os cenários à procura de pistas, mas também a fazer leituras inteligentes sobre os documentos e itens que encontramos. As zonas acabam por estar interligadas porque existem puzzles que não podem ser resolvidos durante uma primeira visita e que requerem a utilização de ferramentas ou peças que só encontraremos noutro ponto de Hadea. Então é preciso estar atento, saber ler as pistas e decorar os espaços para que possamos voltar sempre que for necessário.
Isto não seria possível sem um excelente level design e sinto que a Rogue Factor esmerou-se nesse sentido. Se não existe um mapa ou qualquer auxiliar visual, então é necessário construir cenários interiores e exteriores que falem constantemente por si. Não existe espaço para dúvidas ou intenções de confundir os jogadores com designs repetitivos, antes uma vontade em criar uma narrativa visual consistente e um mundo que funcione realisticamente. Se temos acesso a uma pista, é bom que essa pista seja quase sempre visível em campo ou então que nos ajude a ler melhor os cenários. Hell is Us está repleto de monumentos (ou landmarks), sempre visíveis e bem iluminados, indicando não só que o mundo de Hadea é mais extenso do que pensávamos, mas também que os caminhos convergem entre si. Ainda que exista alguma artificialidade no seu desenho, o level design é prático e realista ao equacionar a visão do jogador com o posicionamento e visibilidade dos seus pontos de interesse. Se estivermos atentos, tudo está visível em campo, desde os templos abandonados até às cidades principais de Hadea.

É possível sentir o carinho e determinação da Rogue Factor enquanto exploramos Hadea e conhecemos mais sobre o seu passado. A disposição das cidades, as diferenças estéticas entre as duas fações, a artificialidade e estranheza dos templos e ruínas, a beleza natural de um país estagnado e mergulhado em guerra pontuam com a funcionalidade do seu design e nada é deixado ao acaso. O sistema de iluminação também se destaca através do level design e funciona como um guia constante, se estivermos atentos. Tal como as zonas de interesse de Hadea, os caminhos estão bem iluminados e o nosso olhar é inteligentemente guiado pelos designers. Este é mais um fator que enaltece a sensação de descoberta que move Hell is Us.
A investigação é complementada pelo sistema de diálogo e sem ele, Hell is Us seria uma experiência muito diferente. Apesar de não ser original na sua abordagem e até limitar inteligentemente a liberdade dos jogadores, ao permitir que apenas alguns tópicos possam ser discutidos, a árvore de diálogos é mais um elemento interessante na jogabilidade de Hell is Us. Podemos abordar qualquer NPC em campo e ouvir a sua história ou reação aos acontecimentos em Hadea, mas só as personagens de interesse fazem parte do sistema de diálogo. Quando iniciamos uma conversação, temos acesso a vários tópicos que podemos abordar com as personagens. Desde Hadea, a Guerra Civil ou as criaturas que agora assombram o país, até a tópicos mais específicos e que surgem organicamente através da nossa investigação. Se encontramos uma pista e se essa pista faz sentido para o tipo de personagem com quem estamos a dialogar – um natural de Jova, por exemplo, uma das cidades de Hadea, saberá mais sobre a história da região do que alguém que vem de outra zona do país -, então podemos abordá-la sem problemas. Através da investigação, exploração e depois diálogo com personagens, nós temos acesso a informações importantes que dão continuidade à narrativa e levam ao desbloqueio de missões e tarefas adicionais que podemos ou não completar quando quisermos.
O que Hell is Us faz muito bem é a sensação de liberdade que emana dos seus sistema e level design. Apesar do conflito em torno de Rémi e da urgência da sua missão, existe também uma calma quase reconfortante na forma como interagimos e conhecemos melhor Hadea. Quando temos acesso a uma nova zona, nós temos habitualmente uma pista ou uma direção vaga para seguirmos, quase sempre um nome que temos de investigar, mas não sabemos como podemos chegar até ela. Então ficamos à mercê da nossa curiosidade, se seguimos diretamente as pistas que temos ou se exploramos os pontos de interesse que conseguimos visualizar em campo. Hell is Us é um jogo onde sentimos constantemente as peças a encaixar, onde é preciso ter paciência, saber como investigar e como interpretar as pistas, enquanto novos itens e ferramentas vão sendo descobertas ao longo das várias zonas. É um longo puzzle dividido por várias secções que alimentam o seu semi-mundo aberto.
Hell is Us é, na sua génese, um projeto que almeja ir contra as normas da indústria e do género de ação e aventura. O seu foco num mundo movido por pistas, sem alicerces visuais ou ajudas constantes, é uma escolha refrescante e até empolgante, mas a Rogue Factor não conseguiu centrar-se unicamente nesta vertente quase pacifista. À semelhança de Death Stranding e do seu sistema de combate forçado, Hell is Us toma a mesma decisão e decide dividir a sua experiência entre a investigação e os combates corpo-a-corpo. Apesar de não ser um sistema de combate tão descartável como na série de Hideo Kojima, este é, infelizmente, o ponto menos conseguido de Hell is Us. Não se trata de um mau sistema de combate, com falhas mecânicas graves ou funcionalidades mal implementadas, mas antes um meio-termo que nunca encontra um ponto de equilíbrio sólido. Hell is Us tanto quer ser um soulslike como rejeita veementemente a experiência soulslike e não demoramos a perceber que o mesmo cuidado que sentimos regularmente na exploração e na resolução de puzzles não se encontra nos confrontos repetitivos e nem sempre acessíveis do jogo.

De facto, Hell is Us não é propriamente um soulslike, mas é impossível não tecer algumas semelhanças. Não existem bonfires, não perdemos pontos de experiência ou almas quando somos derrotados em combate e não temos acesso a um sistema de evolução próximo a um RPG. Estes elementos basilares não se encontram em Hell is Us e a personalização é mais simplificada e até acessível para qualquer jogador que apenas goste de jogos de ação e aventura. O sistema de combate é muito mais “pick and play” do que qualquer outro soulslike e basta sabermos atacar, desviar, defender e trocar de armas para termos acesso à experiência básica de Hell is Us.
No entanto, mesmo com a simplificação de certos sistemas e mecânicas, Hell is Us não é um jogo vazio. A personalização foi antes relegada para as armas e e expande-se para o sistema de crafting, que se torna fundamental para Hell is Us. Rémi não evolui, os seus pontos de vida e stamina não aumentam, e não podemos sequer definir os seus parâmetros através de pontos de experiência. O que podemos definir é o crescimento das nossas armas. Em combate, as armas ganham experiência, aumentam os seus parâmetros de ataque e defesa e podemos até melhorar as suas categorias e infundir novos elementos para mudar as suas habilidades e até o seu aspeto visual. As armas são, desta forma, o centro mecânico do sistema de combate e ditam as nossas fraquezas, vantagens, habilidades, velocidade e ataque.
Estes sistemas funcionam perfeitamente com a abordagem mais minimalista de Hell is Us, mas os seus limites não demoram a ser sentidos em combate. As criaturas que enfrentamos são quase todas idênticas e mesmo que o combate tenha bom feedback visual e tátil – com uma boa utilização do DualSense na versão PlayStation 5 -, o cansaço não demora a sentir-se. Os confrontos são muito idênticos, as estratégias dos inimigos são limitadas e o facto de a maioria conseguir atacar enquanto ignora os nossos golpes criam um ritmo estranho nos confrontos, onde nunca sabemos bem se estamos a defender a tempo ou a sofrer dano. Os quatro tipos de armas são funcionais e complementam-se, mas é muito fácil depender de dois tipos e ignorar os restantes devido às suas semelhanças entre golpes e tempos de resposta. O facto de alguns dos sistemas não serem facilmente percetíveis, como a possibilidade de existirem fraquezas entre elementos e a implementação de glyphs incrementais cujos efeitos nem sempre são claros, há muito ruído num sistema de combate que se queria simples e direto. Durante as minhas horas com Hell is Us, a minha experiência relegou-se a ignorar a maioria destas mecânicas e opções e apostar apenas na destreza dos controlos para ultrapassar grande parte dos confrontos.
No entanto, o sistema de combate não está desprovido de ideias interessantes, ainda que longe de serem originais. A primeira é a possibilidade de curarmos Rémi através da nossa prestação em combate. Enquanto infligimos dano nas criaturas, Rémi absorve energia que pode ser transformada em pontos de vida se ativarmos esta habilidade no tempo certo. Healing Pulse, como é apelidada em Hell is Us, é uma combinação entre a mecânica de recuperação de Bloodborne, que se foca no contra-ataque para recuperarmos vida, e na mecânica Ki Pulse, que vimos em Nioh, onde era possível recuperar stamina entre ataques. O timing certo não é imediato, mas quando dominamos esta habilidade, os combates ganham uma nova dinâmica entre ataque, contra-ataque e recuperação. A intenção é manter o jogador investido e com vontade de arriscar para recuperar a sua energia, e na grande maioria dos casos, a habilidade funciona bem – só é condicionada pela inteligência dos inimigos.
A segunda boa ideia é talvez a mais singular do jogo e foca-se na divisão das criaturas entre os seus núcleos. Enquanto combatemos, algumas criaturas têm a habilidade de se separarem dos seus núcleos e adicionar aos confrontos um novo e inesperado adversário. Estes núcleos funcionam independentemente das criaturas, mas estão ligados quase como um cordão umbilical, absorvendo não só a energia elemental das criaturas, mas gerindo também a sua sobrevivência. Os núcleos não podem ser destruídos permanentemente, apenas adormecidos, e para vencermos, necessitamos de destruir a criatura principal. Isto cria uma maior urgência na gestão dos inimigos em campo, se focamos as atenções no núcleo ou se tentamos atordoar a criatura e garantir que ela não nos ataca pelas costas. Esta adição nem sempre funciona e isso deve-se muito à falta de polimento nas mecânicas e numa maior expansividade nas mecânicas, porque quantos mais inimigos estiverem em campo, mais o sistema de combate fica comprometido.

A falta de mediatismo e discussão em torno de Hell is Us é alarmante. Durante a minha primeira hora, o título da Rogue Factor já estava a definir-se como um dos meus favoritos do ano, muito pela sua determinação e segurança em deixar-me explorar, errar e vencer sem limitações. A visão criativa e o olho cinematográfico de Jonathan Jacques-Belletête e da sua equipa também foram dois sinais concretos da qualidade geral de Hell Is Us e da sua dedicação em criar um videojogo memorável e com uma voz presente no género. Os planos escolhidos, as cinemáticas bem realizadas, os diálogos incisivos e bem espaçados, a banda sonora etérea e emocional, os elementos foram encaixando no seu devido lugar, tal como os melhores puzzles de Hell is Us. Apesar do sistema de combate não ser memorável e existirem alguns problemas tonais na narrativa e na forma como a Rogue Factor explorou alguns dos seus temas mais fortes, talvez limitados pelo meio interativo e a sua gamificação constante, Hell is Us é um jogo inesquecível que tem coragem para rejeitar normas de design e procurar um novo estandarte no género. Quase um “contra tudo e contra todos” e espero que a receção pouco calorosa por parte do público não minimize as ambições saudáveis da Rogue Factor. Pode não ser único e pode cometer alguns dos erros comuns ao género de ação e aventura, mas poucos jogos me fascinaram em 2025 como Hell is Us e isso é de louvar.

Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Nacon.