Été apresenta uma aventura descontraída ao longo de um verão quente, onde a pintura e as relações pessoais se juntam num curioso jogo independente.
O mundo de Été é uma tela em branco. Quando entramos na cidade de Montreal, onde procuramos passar o verão enquanto pintores amadores, encontramos um enorme manto branco. O mundo não é descaraterizado, apesar da ausência da cor, e começamos a percecionar as formas dos objetos que se encontram à nossa volta. Uma árvore, uma mesa de jardim, vários arbustos e, por fim, um prédio estreito para onde a narrativa nos encaminha. Este é o apartamento onde iremos passar o verão, o nosso pequeno, mas confortável loft. Um espaço vazio, sem móveis, que poderemos decorar à medida que a nossa carteira da mais recheada e adquirimos bens essenciais para transformar divisões despersonalizadas num verdadeiro lar de verão.
Mas até subirmos as casas e apresentar-nos a Marianne, a nossa senhoria, continuamos perante o manto banco. Então somos convidados a pintar. Como futuros pintores, mestres das cores e das aguarelas, o mundo transforma-se na nossa tela ao longo da campanha de Été e basta carregarmos no botão esquerdo do rato para darmos vida aos objetos escondidos pelo manto branco. Apesar de não escolhermos que objetos poderão estar em campo, fora aqueles que irão decorar o nosso apartamento, somos nós quem lhes dá cor. Com um medidor de tinta, juntamente com a opção de recolhermos bolhas de tinta que podemos converter em autênticas bombas de cor, apontamos o nosso pincel invisível e vemos o mundo a ganhar vida. Um arbusto surge assim verde, agora percetível, em todo o seu esplendor. Depois pintamos a árvore enorme que serve de sombra para o pátio. Aos poucos, o mundo deixa de ser descaracterizado para ganhar uma nova cara, uma alma, criando uma realidade de cores pastel e num estilo aguarela que despertam a verdadeira identidade de Été.
Não é apenas o pátio da nossa jovem pintora que precisa de cor: as várias zonas de Montreal, que servem de palco para a aventura de verão, também precisam de serem pintadas. Esta é uma escolha simbólica que funciona em vários níveis. Numa vertente mais narrativa, podemos considerar que Montreal encontra-se descaracterizada porque a nossa personagem, que acaba de chegar à sua nova casa, desconhece a cidade e os seus habitantes. À medida que exploramos e conhecemos melhor as suas zonas principais, como o mercado e o parque, começamos a reconhecer o espaço e a adotá-lo ao longo da campanha. O que era estranho passa a ser familiar e essa sensação de descoberta é certamente enaltecida visualmente pela possibilidade de pintarmos os cenários. O branco torna-se menos proeminente e conseguimos delinear os passos que demos e quais forma os espaços já que explorámos.
A cidade de Montreal é dividida por hubs repletos de lojas e personagens com quem podemos interagir. Com um ciclo de dia e noite, existem rotinas que temos de gerir e interiorizar para terminarmos as várias missões secundárias que podemos abordar. Été é tanto um jogo de exploração, como um jogo de pintura e podemos sentir essa intenção através da ambiência com que aborda a sua campanha principal. Após terminarmos o primeiro dia, que funciona como um tutorial, temos liberdade total para gerir o nosso dia e cabe-nos conhecer melhor o mundo e as suas personagens para avançarmos pela campanha. O nosso objetivo resume-se a passar o verão em Montreal enquanto tentamos seguir uma carreira como pintores amadores, melhorando a nossa técnica à medida que encontramos inspiração numa nova cidade. Até terminarmos o verão, não sentimos propriamente a pressão do tempo porque temos sempre o dia seguinte para completar as tarefas que ficaram pendentes. É uma verdadeira aventura de verão, descontraída e assente na descoberta pessoal, como se tivéssemos caído num momento especifico da nossa personagem e assistíssemos ao seu crescimento ao longo dos meses mais quentes.
Apesar da liberdade que sentimos ao longo da campanha, a nossa aventura seria curta se não tivéssemos dinheiro. Para tal, precisamos de aprimorar a nossa técnica e criar inúmeros quadros que podemos depois vender ou então utilizar para terminar as várias missões secundárias. No café de Théo, podemos expor as nossas obras e leiloá-las ao vendedor mais interessado, naquela que é a fonte de rendimento mais estável ao longo da campanha. Mas não conseguimos vender o que não existe e para tal, é preciso pintar e dar vida às nossas ideias. Ao contrário do que esperava, as mecânicas de pintura não são muito profundas e não permitem que pintemos livremente. O ato de pintar resume-se à utilização de stickers sobre as telas brancas. Podemos alterar a cor da tela, mas todos os modelos são stickers e basta selecionarmos uma das categorias para termos acesso a uma panóplia de objetos, personagens, animais, entre outros, que podemos rodar, aumentar, reduzir, rodar e até manipular em 3D antes de colocarmos na tela. O ponto mais positivo é a liberdade que temos em criar estes quatros com stickers. Podemos criar o que quisermos, fora as pinturas que temos de concluir para as missões secundárias, que necessitam de elementos decorativos específicos para serem terminadas. É um sistema funcional e acessível, mas podia ser mais inventivo.
É aqui que encontramos a faceta mais mecânica do mundo por descobrir, ainda em branco. O ato de pintar os cenários não serve apenas um propósito narrativo, mas também como inspiração para a nossa artista. Quando pintamos um objeto, como uma arca ou então uma cadeira, estamos a aprender a desenhar esse mesmo objeto. Assim que colorimos os cenários, os nossos stickers aumentam e podemos começar a expandir as nossas capacidades para novos objetos artísticos. Desta forma, não existe inspiração sem exploração e não existe possibilidade de terminarmos as missões sem pintarmos o mundo que está à nossa volta. Podemos sentir que estamos apenas a colorir por colorir, ou a tornar o mundo mais visível e compreensível, mas é uma mecânica com maior significado e que cria uma ponte interativa entre nós e a cidade de Montreal. O mundo fica mais colorido, a nossa personagem aprende novas técnicas – e até pode expandir o tipo de cores que utiliza ao colecionarmos pigmentos, que se encontram espalhados pelas zonas principais – e temos a possibilidade de criar quadros mais arrojados, e até completar missões anteriormente inacessíveis sem os elementos necessários.
Été é uma aventura descontraída e é quase um passeio que funciona devido à sua estrutura assente na exploração e na pintura. Entre missões, conhecemos os habitantes da cidade e criamos amizades que se expandem ao longo dos dias e semanas que permanecemos em Montreal. O sistema de diálogo procura injetar alguma personalidade às nossas interações e temos a possibilidade de escolher a abordagem que queremos para qualquer conversa. Infelizmente, as opções resumem-se quase sempre a uma abordagem mais equilibrada, outra mais agressiva e, por fim, a uma postura mais derrotista, existindo pouca nuance entre as várias falas disponíveis. Também é possível sentir que é um sistema que está mais preocupado em manter a ilusão da escolha do que propriamente a deixar os jogadores escolher a direção da campanha e a influenciar negativa ou positivamente as suas relações com as várias personagens.
A ausência de escolhas substanciais não é o maior problema de Été, mas é um prenúncio para as fragilidades da estrutura. A liberdade de explorar a cidade e terminar as missões ao nosso ritmo é um dos destaques de Été, mas também um entrave porque coloca a campanha num loop repetitivo e que se torna progressivamente mais cansativo. O processo de colorização é inicialmente aliciante e serve a narrativa e a jogabilidade em igual medida, mas quanto mais extensa é a zona, mais a mecânica revela o quão pouco profunda acaba por ser. Desta forma, começamos a compreender que estamos apenas a apontar para objetos em campo e a carregar num botão até que esses objetos ganham cor. Não existe propriamente um desafio durante a pintura e mesmo que não consigamos encontrar um objeto que necessitamos para concluir um quadro, iremos encontra-lo se pintarmos tudo. Então sentimos que temos mesmo de pintar tudo, quer queiramos ou não, nem que seja para garantir que não perdemos os objetos que necessitamos, desvirtuando lentamente os elementos positivos que indiquei anteriormente. No entanto, é um problema que não será sentido por todos os jogadores, pelo menos, não da mesma forma.
O mesmo não pode ser dito do desempenho de Été e dos seus enormes tempos de carregamento. Seja na transição entre zonas ou então na seleção de categorias durante as pinturas, o jogo está constantemente a parar a ação e a colocar-nos à espera. Os tempos de carregamento não são curtos e isso acaba por desmotivar a passagem entre zonas, levando-nos a tentar fazer tudo o que precisamos de fazer antes de fazermos a viagem entre os vários pontos da cidade. É um problema que sentimos mais à medida que avançamos pela campanha e recebemos mais missões que nos obrigam a explorar novas zonas e a interagir com diferentes personagens para avançarmos.
A repetição é um problema, mas Été vive através do seu mundo e da liberdade que procura dar aos jogadores. É uma aventura de verão, um novo começo, onde uma jovem artista procura encontrar o seu lugar num mundo que ainda não lhe pertence. Tudo é estranho, nada é reconhecível, mas, aos poucos, a familiaridade instala-se e a vida começa a ganhar cor. Été consegue capturar esta sensação de autodescoberta através da sua jogabilidade e é interessante compreender como a colorização de um mundo desconhecido ganha contornos tão emocionais ao longo da campanha. A liberdade de pintarmos o que quisermos, aliada à exploração e à descoberta de inspiração, cria uma experiência única que podia apenas ser mais arrojada na sua abordagem mecânica. Mas a cidade de Montreal apresenta-se em todo o seu esplendor, em belíssimas zonas pintadas em aguarelas, onde podemos passear livremente à medida que o dia passa e nós absorvemos o que está à nossa volta para depois pintarmos no conforto do nosso loft. Quanto mais a vida fica confusa e caótica, mais títulos como Été tornam-se essenciais para cortar o stress e a pressão do quotidiano. Faltou algo para ser imprescindível, mas é, certamente, um jogo capaz de se destacar neste agosto quente.
Cópia para análise (versão PC) cedida pela popoagenda.