Dordogne é uma experiência especial e que irá afetar-vos de diferentes maneiras.
Em criança, os meus verões eram passados na aldeia do Ervedal, conselho de Avis. Uma aldeia pequena, muito pacata, com algumas ruas, um rossio com jardim e uma casa do povo, onde, por vezes, um projecionista exibia filmes que já haviam estreado há semanas nos cinemas da cidade. Esta existência pacata, que me viria a aborrecer durante a minha adolescência, era uma libertação da rotina e uma forma de me aproximar da minha avó, a Dona Augusta, que sonhava em regressar definitivamente para o Ervedal e abandonar a vida que construíra na cidade. Todos os verões, eu e os meus avós encontrávamos aventuras novas, amigos improváveis e uma união que me deixavam reconfortado mesmo longe dos meus pais.
Eu conto estas histórias, mas não sei até que ponto são reais. Eu sinto que são e sei que estive, de facto, no Ervedal vários verões ao lado dos meus avós, mas não me recordo das brincadeiras que tive, das pessoas que conheci e como aqueles meses quentes passavam por mim. Ao contrário de Mimi, a protagonista de Dordogne, este esquecimento não foi provocado por um trauma do passado e muito menos motivado por uma relação familiar difícil, mas pelo passar do tempo. Enquanto descobria mais sobre a história de Mimi, que regressa a casa da sua avó Nora depois de vários anos sem se falarem, apercebi-me do quanto podemos esquecer e como estas aventuras de verão podem ser fugazes numa vida que se quer vivida e preenchida. Mas durante aqueles meses, até quando somos obrigados a abandonar a cidade e a viver no campo durante semanas ou meses – como Mimi foi naquele fatídico verão em Dordogne -, o mundo é tão simples, compreensível e tão pequeno como grande, que apenas o olhar da infância é capaz de enaltecer. Assim é Dordogne.
No regresso à aldeia de Dordogne, acompanhamos Mimi através de duas fases da sua vida, que se interligam através da paz do passado e da fatalidade do presente. De um lado, temos Mimi, com 32 anos, recentemente desempregada e a tentar ultrapassar um burnout que a atirou para uma espiral depressiva. A notícia do falecimento de Nora, com quem não convivia desde o fatídico verão em Dordogne, levou Mimi a revisitar a casa da avó e a tentar redescobrir as memórias que perdera com o passar dos anos. Afinal quem era Nora? O que se passou em Dordogne? Do outro lado tempo, encontramos também Mimi, mas agora jovem, com apenas 12 anos, chateada por ter de passar o verão com a avó Nora, longe de tudo e todos. Através das suas aventuras de infância encontramos uma relação crescente entre uma neta que descobre a beleza natural de Dordogne e o carinho da sua avó, com quem raramente convive.
A dualidade de Mimi é um veículo interessante para o mistério de Dordogne, com a campanha a dividir-se entre dois momentos temporais que contrastam visual e emocionalmente. Se a jovem Mimi encontra uma casa cheia de vida, verdejante e cuidada, onde nascem novas flores no jardim de Nora, já a sua versão adulta reencontra-se com uma casa agora vazia, em tons acastanhados, onde a ausência da avó parece ter sugado a energia do espaço à sua volta. Mas é a Mimi de 32 anos que despoleta a aventura, disposta a descobrir o que se passou em Dordogne e o porquê de ter perdido as suas memórias, revisitando os vários recantos da casa de Nora, mas também o mercado, florestas, rios e grutas de Dordogne à medida que reconstrói os acontecimentos.
Estes momentos dividem-se por capítulos e são muito eficazes no retrato da relação entre Mimi e Nora. Este é o centro emocional de Dordogne, duas pessoas que foram obrigadas a viver separadas e que se reencontram durante um verão que viria a marcar as suas vidas. Entre aventuras, Dordogne constrói também o passado desta família disfuncional, recontando as desavenças entre Fabrice, o pai de Mimi, e Nora, mas também o desaparecimento trágico de Édouard, o avô, que deixou um vazio permanente na casa e no seu da sua família. O passado ganha vida através de cartas, cassetes de áudio e fotografias que encontramos espalhadas pela casa, permitindo-nos montar as peças deste pequeno puzzle.
O mistério é forte ao longo da campanha e existe uma base emocional que é difícil de descartar. É difícil, admito, olhar para Mimi e não rever-me nas suas ações e comportamentos. Desde a sua falta de vontade em passar um verão longe dos seus pais até à inocência do seu olhar sobre o que a rodeia e a relação que cria com Renaud, um rapaz também marcado por problemas familiares complexos, que se dedica agora a encontrar a Coulobre, a mítica cobra que supostamente dorme no rio. O retrato das personagens é muito eficaz e existe um lado humano que se torna ternurento ao longo da campanha, com Mimi a aproximar-se mais da sua avó, mas também a descobrir os traumas que acompanham a sua família.
Dordogne amadurece ao longo da sua curta duração, mas não consegue fechar a história com graciosidade. As emoções são demasiado reais e físicas para resistirem à estrutura demasiado fechada e limitada da campanha. O início é demasiado expositivo, ao ponto de se tornar mais confuso do que misterioso, mas a chegada a Dordogne e o desbloqueio das primeiras memórias de Mimi suavizam o impacto e o jogo não demora a encontrar a sua voz. O problema da exposição surge novamente no final, que é demasiado abrupto para conseguir aproveitar toda a emoção que havia construído até ali, com a campanha a fechar quase sem fôlego – como se fosse suposto terminar e simplesmente seguir em frente. Em si, o final é satisfatório e o único possível, mas o mistério é uma espada de dois gumes e cria antecipações e expetativas fortes para o desfecho que vemos no ecrã.
Mas Dordogne nunca perde verdadeiramente a sua magia, até quanto tropeça na sua narrativa, com a jogabilidade e a direção de arte a servirem de alicerces para aquela que é uma das aventuras mais impactantes desta primeira metade de 2023. A nível mecânico, Dordogne comporta-se como um jogo de aventura com fortes inspirações em títulos point and click. Mimi movimenta-se através de cenários 3D, mas com ângulos e câmaras pré-definidas, relembrando estas aventuras antigas em todo o seu esplendor. A exploração é mínima, mas existe espaço para conhecermos melhor os cenários belíssimos de Dordogne, com o jogo a dar-nos tarefas simples que nunca chegam a ser verdadeiros puzzles. Cada capítulo foca-se na descoberta de objetos e no desbloqueio das memórias, mas sempre com uma suavidade e foco nos controlos que mantêm a experiência assente na narrativa.
A jogabilidade ganha novos contornos quando introduz algumas tarefas à rotina de Mimi, alterando as suas mecânicas e câmara para mini-jogos mais interessantes – que pecam apenas pela falta de dificuldade, já que Dordogne está constantemente a dizer-nos o que devemos fazer e como devemos fazê-lo. Nestes mini-jogos, temos de ajudar Mimi a apanhar pirilampos, a fazer uma refeição ou a arranjar o kayak com a sua avó. Aqui controlamos as mãos e braços de Mimi, arrastando-os para os objetos interativos, mas também os utensílios que precisamos de utilizar para terminar estas tarefas, como colheres e chávenas. O jogo adora pontuar e realçar estas ações supostamente mundanas para reforçar o estado emocional de Mimi, mas também a sua relação com a casa enquanto espaço cénico, inserindo na ação momentos tão simples como abrir uma porta, destrancar uma fechadura ou afastar objetos para revelar algo escondido. Ações simples, mas que acarretam o peso da rotina da melhor forma. E se estiverem atentos, poderão notar que Dordogne não descarta as vossas decisões nestes momentos e procura realça-las ao longo da campanha. Como a escolha da caneca, durante um dos momentos mais calmos de Dordogne, com Mimi a fazer um chá no presente. Momentos depois, descobrimos que essa caneca, que escolhemos aleatoriamente, era afinal a caneca que Mimi utilizava quando era mais nova, criando assim a ideia que a sua escolha não fora inocente, mas sim um reflexo do passado.
Não existe propriamente uma evolução mecânica em Dordogne, mas sim uma aposta crescente num lado mais emocional e impactante. Um reflexo desta aposta é a introdução do caderno de Mimi, anteriormente dos seus avós, que a jovem utiliza para registar as aventuras e pensamentos dos dias passados em Dordogne. As páginas podem ser decoradas por stickers, poemas, fotografias e até sons gravados por Mimi, muito à semelhança do que vimos em Season: A Letter to the Future. Mas ao contrário do título da Scavengers Studio, que apostava na liberdade de decorarmos o caderno à nossa maneira, Dordogne é mais comedido e fecha a criação das páginas aos seus capítulos. O mesmo acontece com a câmara fotográfica e o gravador de som, que só podem ser utilizados em momentos-chave da campanha e não quando queremos.
Esta ausência de liberdade é um problema porque Dordogne é belíssimo. É uma pena não podermos simplesmente parar e tirar fotografias aos cenários que nos rodeiam, mas presumo que esta decisão seja motivada por limitações técnicas e não por falta de vontade da equipa. Isto porque Dordogne ganha vidas através de cenários pintados em aguarelas, desde a casa de Nora até aos jardins, florestas, rios, cavernas e mercados da vila. Tudo é uma pintura em movimento, com os modelos 3D das personagens a apresentarem cores suaves e um foco delicioso na animação – ainda mais nas suas expressões -, ao ponto de parecer que estamos no interior de uma banda desenhada. Esta é a comparação mais fácil de fazer, mas é incontornável quando Dordogne apresenta uma estética tão forte e nostálgica, como se fosse aquele livro de quadradinhos que encontrámos em casa da nossa avó ou de um familiar distante.
Este é um mundo consistente, pintado com cores fortes – à exceção do presente, que se apresenta em tons mais escuros e castanhos – e uma forte direção artística até na planificação e na escolha dos seus ângulos de câmara. Dordogne é familiar, quente e quase palpável. Presumo que a escolha de pinturas em aguarelas seja para criar uma imagem menos clara ao longe, mas cujos supostos borrões de tinta ganham vida e definição quando nos aproximamos – muito à semelhança da história de Mimi e do seu regresso a casa da avó. Cada área é fascinante por causa desta consistência e não existem grandes problemas na forma como navegamos entre estes cenários pintados.
Dordogne é uma experiência especial e que irá afetar-vos de diferentes maneiras. Eu fui transportado para aqueles verões no Alentejo, mas também senti como as memórias são fugazes. Sem registos daqueles dias, será que tudo aconteceu como me recordo? E até quando irei recordar-me daquelas tardes em que fugia das chamadas com os meus pais porque queria continuar a brincar? Só o tempo o dirá. Mimi viu-se numa encruzilhada sem conhecer o seu passado e foi preciso o presente tombar para querer voltar ao local onde fora feliz.
Dordogne leva-nos numa viagem emocional pela história de uma família problemática, como tantas outras, mas com um enorme carinho pelas suas personagens. Faltou-lhe um final mais impactante e uma maior coragem na jogabilidade, mas a força está lá. Talvez a vossa história tenha sido semelhante, talvez nem sintam nada com a aventura de Mimi. Talvez sejam apenas as saudades a falar mais alto – ó tempo volta atrás.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Focus Entertainment.