Antes do ano terminar, a PlayStation 4 recebe um dos jogos mais antecipados da geração, Death Stranding, o misterioso título de Hideo Kojima, criador da série Metal Gear, que teve aqui a oportunidade de criar algo novo e de desenvolver a sua visão sem barreiras ou limitações.
Depois de uma jornada de mais de 60 horas, onde atravessei uma versão condensada de uns Estados Unidos da América destruídos e separados por um evento apocalíptico, posso concluir que Death Stranding é o que acontece quando dão a Hideo Kojima um cheque em branco. Estranho, misterioso e emocional, é uma amálgama de ideias, filosofias, referências, simbolismos e histórias, tudo retirado de uma panóplia de obras de diferentes meios do entretenimento, de registos históricos e de ideais político-sociais.
Death Stranding é um jogo, um filme, um concerto e uma rede social, mas é, acima de tudo, uma mensagem de esperança e perseverança, com o objetivo de, aos poucos, podermos mudar o mundo todos juntos.
Foi com este tipo de discurso que Kojima, ao longo do desenvolvimento do projeto, tentava explicar a sua criação, com metáforas e discursos adoráveis, ao mesmo tempo que ia lançando trailers misteriosos, cheios de horror, desespero e melancolia, que se tornaram objetos de estudo e de dissertações filosóficas entre os fãs.
Mas esta foi, sem dúvida, a forma mais segura de guardar os segredos de Death Stranding até ao seu lançamento, com descrições vagas que alimentaram a imaginação dos fãs e dos curiosos, que, ao longo da produção do título, foram partilhando teorias, fanarts e um enorme entusiasmo nas redes sociais e fóruns da Internet, ligando assim toda a gente. Quando, em 2016, Kojima explicava que o jogo já tinha começado, não estava longe da realidade. Na verdade, o que estava a fazer era educar e incentivar todos os seus fãs a seguirem as pistas e a consumirem os seus filmes, séries, músicas e livros favoritos, que se mostram influências importantíssimas em Death Stranding.
Há um pouco de tudo em Death Stranding. Sci-fi, fantasia, sobrenatural, comédia, romance, tudo isto e muito mais entre missões, principais e secundárias, e em extensas cinemáticas que tentam eliminar a linha que separa o jogo de um filme.
O secretismo e antecipação por Death Stranding podem criar um ricochete nas expectativas dos jogadores, ao levantar questões duvidosas a quem passa as primeiras horas a entregar pacotes entre refúgios ao controlo de Sam, o nosso herói que empresta a cara e a voz de Norman Reedus, na versão portuguesa interpretado por Pêpê Rapazote.
Sam é um estafeta sem rumo, a quem lhe é dada a missão de resgate da futura presidente das Cidades Unidas da América, enquanto faz as ditas entregas e liga uma rede de comunicação entre diferentes cidades e refúgios isolados entre si. Controlado na terceira pessoa, Death Stranding aparenta ser uma experiência muito singular e despida de muitas mecânicas tradicionais dentro do género.
Tem um design simplista, que, apesar de ser visto como um “walking simulador” (de forma cómica e muito exagerada) é muito mais do que isso. Ao longo do jogo, vamos controlando melhor Sam, quer por hábito, quer pelas várias ferramentas que vamos desbloqueando, desde escadas e cordas que nos ajudam a atravessar rios, vales e penhascos, a exosqueletos que nos aumentam a força de suporte de cargas e capacidade de equilíbrio em situações mais delicadas.
Contudo, isto é apenas a ponta do iceberg, e, eventualmente, temos um jogo, com uma jogabilidade e mecânicas mais reminescentes de um Metal Gear Solid 5, onde as missões de transporte e entrega se transformam em sequências de ação furtiva, onde todo o cuidado e precaução são essenciais e onde temos a oportunidade de usar armas letais, ainda que o jogo nos dê muitos motivos, em particular narrativos, para nunca matar ninguém.
A grande parte de Death Stranding passa-se em ambiente de mundo aberto, com várias áreas para explorar que podem ser atravessadas a pé ou com recurso a veículos, quando assim é possível. As missões são quase todas ditas fetch quests, onde entregamos itens entre postos e onde é necessário ter atenção aos cuidados especiais que os pacotes requerem no transporte, ao tempo mínimo de entrega e as suas condições, ao mesmo tempo que temos de equacionar todos os itens de sobrevivência necessários para a nossa viagem.
De certa forma, este é também um jogo de sobrevivência, onde vamos estar sempre dependentes do que podemos levar às costas e nos bolsos, causando sensações de urgência e ansiedade únicas.
Armas, ferramentas, armaduras e até consumíveis, todos eles apresentam um espaço físico que alteram na forma como controlamos Sam. Quanto mais coisas levarmos, mais cuidado teremos que ter e mais a carga fica pesada e mais difícil de equilibrar. Por vezes, somos confrontados com a hilariante imagem de Sam a levar uma torre de equipamentos, embora existam soluções para contornar esse cenário, como usar os tais veículos, cargas flutuantes ou até a possibilidade de simplesmente deixar algo para trás ou num dos pontos criados por nós ou outros jogadores. A gestão não só é feita na partida e chegada, é também feita durante toda a jornada.
Apesar da premissa aparentemente simples, de pegar num pedido e levá-lo a sítio X, todos estes elementos estratégicos são os que tornam o jogo profundo. As oportunidades apresentadas durante cada missão motivam-nos a explorar mais ou a fazer tarefas secundárias durante horas, o que pode resultar numa fuga acidental ao lado mais narrativo do jogo.
Com longas viagens entre zonas desoladas e quase alienígenas, outras controladas por humanos maldosos ou assombradas por criaturas espectrais, o mundo de Death Stranding é tão belo como aterrorizante, com zonas desoladas por cataclismos inexplicáveis e outras onde a vida parece espreitar timidamente com flora verdejante, mas rasteira, tudo acompanhado por visuais e paisagens fantásticas e fotorealistas.
Para além da simples exploração ou da curiosidade em ver todos os cantos do mapa, existem mais mil e uma razões para explorar o mundo, onde vamos ter todas as oportunidades para dar uso das mecânicas de jogo centrais. Na verdade, existem tantas razões como o número de jogadores com quem partilhamos os servidores, porque Death Stranding, apesar das jornadas isoladas, é uma das experiências mais sociais desta geração (e não necessita de PlayStation Plus para se ter esta experiência).
Em Death Stranding, as nossas ações podem interferir com as jornadas de outros jogadores, mas sempre de forma positiva. As ferramentas que levamos connosco podem servir para criar pontos de controlo com diferentes funções, que são automaticamente partilhados no mundo de outros jogadores.
Alguns exemplos disso são bases personalizadas onde podemos descansar, pontos de controlo onde podemos largar itens ou pacotes que podem estar em excesso para a nossa missão, pontos de descanso onde podemos recondicionar os ditos pacotes e esperar que a chuva passe, pontos carregamento de baterias, entre outros. Há um sistema de sinalética para trocar mensagens e podemos deixar itens espalhados no mapa já prontos a usar, como veículos, cordas e escadas que ajudam na travessia de diferentes ambientes.
Mas talvez o elemento cooperativo mais impressionante destes todos seja a existência de uma estrada no mapa principal, que vai sendo construída ao longo da nossa jornada, por nós, com materiais que lá colocamos, mas também por outros jogadores que foram colocando também os seus materiais durante as suas jornadas.
Sem querer, os nossos objetivos e motivações passam a ser objetivos comuns, de construção, ligação e evolução. O sentimento de estarmos todos a ajudar para um bem comum torna-se aparente e recompensador. Ajudar o outro torna-se uma prioridade. A linha que separa os objetivos secundários dos principais desaparece e todo o jogo transforma-se, de alguma forma, numa experiência cooperativa. E tudo isto acaba por ter repercussões simbólicas que irão ajudar a entender o que vamos testemunhar na reta final do jogo.
A cada missão principal, temos a oportunidade de ajudar outros jogadores, levando pacotes perdidos até ao seu destino ou largando no seu destino outros pacotes que foram largados no mundo aberto. Esta cooperação torna-se rapidamente natural e, de alguma forma, necessária, especialmente em ambientes mais inóspitos, onde quando tudo parece perdido, lá temos um sinal ou uma ferramenta largada por outro jogador para nos ajudar a ir um pouco mais além sem termos de voltar para trás ou recomeçar o jogo.
Desde regiões reminiscentes dos desertos e praias rochosas da Islândia, a cenários quase empoeirados que parecem Marte, a montanhas nevadas onde tempestades e pequenas avalanches dificultam a nossa jornada, Death Stranding é tão vasto em dimensões como na quantidade de cenários que apresenta.
Com um mapa bem grande pronto para explorar, que se vai abrindo à medida que progredimos na história e que vamos ligando várias cidades e outras personagens secundárias, o jogo raramente se torna aborrecido, mesmo quando temos que repetir caminhos, simplesmente porque estas áreas também se transformam. Os trilhos feitos anteriormente transformam-se em caminhos gastos, há itens largados por NPCs que vão surgindo no mundo, há mais humanos (amigos e inimigos) a vaguear e a chuva letal que traz consigo entidades sobrenaturais vai, também, mudando de posição.
Death Stranding é, como é óbvio, mais do que um jogo de transporte e carga, com muitos momentos de ação e outros de tensão e suspense, suportados por uma história muito visual com cinemáticas espalhadas entre missões e episódios. Temos momentos mais contidos e reservados a conversas entre Sam e NPCs, os tradicionais Codex de conversa à distância (também eles reminescentes de Metal Gear) e muitos documentos informativos sobre os mistérios de Death Stranding.
Depois de um mundo tão compreensivo e cheio de mecânicas de jogo extremamente bem concebidas e conscientemente integradas no ritmo da história, é na narrativa onde encontramos as forças e as fraquezas do lendário produtor. Com uma história que é, por um lado, íntima e pessoal, mas igualmente grandiosa em escala, Kojima contou com a ajuda dos seus amigos da indústria cinematográfica para partilhar esta sua visão. Nomeadamente, recrutou Guillermo Del Toro e Nicolas Winding Refn, ambos realizadores de cinema, que, para além de emprestarem as suas aparências a duas das melhores personagens do jogo, foram as portas abertas para um elenco de estrelas, com Kojima a ter assim, no seu título, alguns dos seus ídolos pessoais.
Temos o badass de The Walking Dead, Norman Reedus, no papel principal; a Bond-Girl dos filmes atuais de 007, Léa Seydoux; o próprio Hannibal (também vilão em 007 – Casino Royale), Mads Mikkelsen; a jovem Margaret Qualley de Once Upon a Time… in Hollywood; o veterano de vozes em jogos Troy Baker; e a cereja no topo do bolo, a “mulher biónica”, Lindsay Wagner. Ainda no elenco principal, mas menos conhecido, temos Tommie Earl Jenkins, que irá certamente ganhar muitos fãs depois de Death Stranding.
A este elenco juntam-se ainda muitos cameos surpreendentes ao longo do jogo (como a aparição recentemente revelada de Conan O’Brien), provando que Kojima tem um star-power e uma influência tão grande nesta indústria como qualquer um dos seus atores e colegas.
Todas estas personagens apresentam um grau de complexidade enorme graças às suas histórias e passados, que dão origem aos seus hilariantes nomes e alcunhas. Há, no entanto, uma ou outra personagem que se destaca pelas piores razões, nomeadamente o arquétipo clássico que representam, mas, no geral, transpiram o carisma e o charme necessário para criarmos um laço especial com elas. O jogo faz um ótimo trabalho a apresentar cada personagem do elenco, com cinemáticas longas acompanhadas por missões dedicadas que ajudam a avançar na história.
Não há dúvidas de que Kojima consegue realizar algo que já se tinha testemunhado em jogos anteriores, mas o seu “calcanhar de Aquiles” está na escrita convoluta e na exposição, que muitas vezes dificultam a compreensão dos eventos e das motivações das personagens no meio de tanto “ruído”. Apesar dos documentos longos (que sinto que são de leitura obrigatória para a compreensão dos eventos de Death Stranding), as cinemáticas e as interações com as diferentes personagens por vezes arrastam-se e repetem-se vezes sem conta para explicar coisas relativamente simples e outras tantas que já foram explicadas nesses mesmos documentos.
Kojima parece ter medo que as coisas fiquem por explicar e, para além de tornar alguns bons momentos enfadonhos, retira também o impacto de muitos twists, que, sem querer, acabam por ser revelados com as migalhas que o jogo vai largando, tornando o curso da narrativa relativamente previsível.
Isto também revela alguma falta de subtileza por parte de Kojima. Um dos exemplos mais claros está nos nomes de cada uma das personagens, como já referi, ou pela nomenclatura de tudo o que constrói o mundo de Death Stranding, que é 99% construído à base de simbolismos, alguns geniais, outros nem tanto. Nada é subtil e, por vezes, desnecessariamente complicado, mas, para a mensagem que o jogo quer passar, é, talvez, necessário. No fundo, é a experiência Kojima como todos já esperávamos e adoramos.
Passando por uma espécie de fetiche pela “América”, Kojima faz um discurso muito forte com Death Stranding, muito além do comentário sobre o estado governativo atual dos EUA. Da mesma maneira que, em 2001, fez um comentário geopolítico sobre o futuro da sociedade e da guerra, em Metal Gear Solid 2: Guns of Liberty, com Death Stranding Kojima é mais audaz.
Preocupa-se com a forma como o mundo interage atualmente entre si, como o capitalismo e o consumismo controlam e limitam as nossas vidas e a perceção da realidade, ou como o mundo caminha para um futuro negro, poluído, distante, desconecto e cínico. A exposição e a escrita dos seus textos não escondem o receio e o medo que Kojima tem pelo futuro da humanidade e aplicam todas as suas paixões da ficção para apresentar uma epopeia interativa, que implora para que todos abram os olhos e trabalhem por um mundo melhor, de preferência em conjunto, em equipa, da mesma forma como as pontes e os trilhos criados ao longo do jogo ligaram os jogadores.
Ao contrário das suas inspirações mais diretas, e facilmente reconhecidas pela maioria do público, como Neon Genesis Evangelion e 2001: Odisseia no Espaço, Death Stranding é frontal, mas não deixa de estar minado de simbolismos, de ser estranho e misterioso o quanto baste para nos deixar agarrados ao ecrã durante horas, especialmente quando a sua história desenvolve de forma tão emocional e catártica, depois de aprendermos a andar e de nos ligarmos aos outros via algo tão simples como um videojogo.
Death Stranding é um jogo onde a maioria das suas falhas parecem existir de forma consciente e, no fim, é bem maior que a soma das suas partes. Hideo Kojima fez mais um título que irá ser certamente falado e discutido durante anos. De uma forma ou outra, independentemente da opinião e da tolerância dos jogadores aos clichés da visão do Kojima, no fim de contas, o seu objetivo está cumprido, pois ligou-nos a todos.
Death Stranding é, por estas e muitas outras razões, difícil de explicar nesta fase do campeonato sem entrar em spoilers, mas pode-se dizer que é, sem margem para dúvidas, absolutamente arrebatador, provocante e imponente. Cumpre todas as promessas feitas ao longo dos últimos cinco anos de expectativas de forma triunfante e ainda tem espaço para nos surpreender. É, sem dúvida alguma, uma obra-prima que transcende o meio, uma experiência interativa rara, que apela à esperança e à perseverança de todos.
Death Stranding chega à PlayStation 4 dia 8 de novembro.
Death Stranding
Plataforma: PlayStation 4
Este jogo foi cedido para análise pela PlayStation Portugal.
Death Stranding é o culminar de anos de hype, mistérios e expectativas, num jogo que transcende o género e numa experiência interactiva extremamente emocional e provocante, apresentada de uma forma que só é possível num videojogo.