Um mundo interessante envolvo num conjunto de mecânicas que dão vida a um dos roguelikes mais divertido e mecanicamente exigentes do ano.
Com a crescente popularidade dos roguelikes, é interessante assistir à lenta, mas progressiva transformação do género. Longe vão os dias em que os roguelikes eram apenas conhecidos pela sua dificuldade e repetição, onde um simples descuido – ou se a sorte não estivesse do nosso lado graças ao RNG – ditava o fim de uma tentativa que parecia ser de sucesso. Desde Dead Cells e Hades, arrisco-me a dizer que o género procurou encontrar um ponto de equilíbrio entre as suas mecânicas tradicionais e sistemas que permitiram tornar as suas campanhas mais acessíveis a um público mais vasto. Se a progressão permanente foi um passo na direção certa, onde podemos desbloquear habilidades e atributos que estarão disponíveis numa próxima tentativa, a estrutura da campanha e a aposta numa ambiência mais narrativa foi a solidificação desta mutação do género. Mas sem a jogabilidade certa, sem o loop perfeito e o incentivo para voltar, qualquer roguelike cairia – e é aqui que entra Deadlink.
Entre os seus circuitos cyberpunk, onde megacorporações controlam o quotidiano, bate um forte coração mecânico. A estrutura é a mesma de sempre, constituída por vários níveis que se sucedem por arenas e bosses onde o único objetivo é sobreviver para chegar à próxima fase. Os níveis são compostos por cenários restritos com uma certa verticalidade – enaltecida por opções de mobilidade como um duplo salto, um gancho e painéis de propulsão que nos permitem navegar os cenários sem interrupções ou pontos mortos – e os inimigos são apresentados através de hordas que temos de eliminar. Quando mudamos de nível, temos a oportunidade de escolher uma melhoria temporária, seja um novo implante – que podemos equipar de acordo com os seus valores de energia, o que significa que não poderemos equipar tudo o que encontramos –, melhores atributos, habilidades para as armas ou então pontos de experiência e de vida, caso estejamos em perigo. Se morrermos, voltamos ao hub com a experiência que colecionamos e podemos desbloquear melhorias permanentes que ajudarão numa próxima tentativa. É a estrutura clássica dos roguelikes em todo o seu esplendor, sem grandes novidades, fora a presença de NPC entre níveis que servem para desbloquear novas opções de combate e novos detalhes sobre o mundo do jogo.
No entanto, Deadlink não se resume ao combate e traz-nos aquela que podemos considerar como a nova fórmula dos roguelikes. Acredito que o impacto que Hades teve no género não pode ser desconsiderado, ainda mais agora, quando tantos tentam imitar ou inovar dentro da sua própria estrutura. Deadlink é um exemplo dessa tentativa, já que tenta expandir a progressão narrativa através da repetição, criando assim a ilusão de que estamos constantemente a desbloquear algo novo ou a recebermos novos detalhes que aprofundam a sua narrativa. Mesmo que percamos na primeira zona, o jogo contabiliza a nossa prestação e define os conteúdos que serão desbloqueados na derrota. Quando regressamos ao hub, podemos ter acesso a um novo detalhe vindo das personagens secundárias ou desbloquear um novo modo de jogo que nos permite ir além da campanha principal. Podemos até ter acesso a novas armas e classes que estão dependentes do número de tentativas ou então da longevidade da nossa prestação anterior. O que importa é que Deadlink quer manter-nos investidos e colmatar um dos maiores problemas do género: a repetição.
A aposta num worldbuilding mais presente nunca deixará de ser fascinante porque é uma ferramenta importante no combate à estrutura de recomeço que está na génese do género. Se a jogabilidade perder a sua força, a narrativa incentivará o jogador a procurar mais e a tentar novamente. Aliada à progressão permanente, o género ganha contornos mais tradicionais e uma progressão mais compreensível que não se restringe às habilidades inerentes de cada jogador ou à aprendizagem das mecânicas – é algo mais psicológico do que isso. Através de boas personagens e uma narrativa que se constrói em torno de um mistério, juntamente com melhorias permanentes – e que suavizam a aversão à perda que está associada ao género -, os jogadores menos experientes têm mais tempo e espaço para dominar as mecânicas e voltar a entrar no loop de tentativa e erro. Talvez não seja necessário apostar desta forma na narrativa, mas é um escape e considero como uma evolução, onde até jogos como Deadlink, que são mecanicamente exigentes, acabam por ganhar uma profundidade inesperada.
Mas sem uma jogabilidade sólida, nenhum roguelike, por melhor que seja o seu mundo e narrativa, conseguiria subsistir e Deadlink não é diferente. O que me agarrou não foi a sua estética cyberpunk ou as temáticas que trouxe ao género, mas a sua jogabilidade. Deadlink é absolutamente viciante e um dos melhores FPS que joguei este ano. A fórmula é a mesma – arenas divididas por níveis, só avançamos quando derrotamos todos os inimigos –, mas a fluidez dos controlos e a utilização de mecânicas simples, mas difíceis de dominar – muito devido ao fluxo de inimigos e aos vários tipos que são introduzidos ao longo das zonas, tal como a curta duração de cada nível – que tornam cada combate numa verdadeira dança de balas e habilidades. Deadlink podia ser limitado em oportunidades de combates, já que só permite a utilização de duas armas em combate e duas habilidades, mas está tudo tão equilibrado e bem implementado que basta usarmos os seus vários sistemas para a aparente limitação ser apenas ilusória.
Ao contrário de outros roguelikes, Deadlink aposta num sistema de classes ou loadouts. No total, temos quatro classes que diferem na sua abordagem ao combate e a campanha está construída para que possamos desbloquear estas classes progressivamente e à medida que nos habituamos melhor às mecânicas. Pensem em Risk of Rain 2 e perceberão o que vos espera. A primeira classe, Soldier, é talvez a mais equilibrada e assente na movimentação. Temos uma shotgun e um rocket launcher à disposição, e as habilidades de gancho e Scrambler que se compensam lindamente. A primeira permite-nos agarrar a qualquer inimigo ou objeto e a segunda é uma técnica de atordoamento que nos permite criar também uma certa distância dos nossos adversários ou aproveitar para atacar os seus pontos fracos. É uma classe perfeita para curto e médio alcance, ideal para aprendermos os controlos e mecânicas de Deadlink.
A segunda classe, Hunter, é um monstro diferente. Com um revólver e uma arma de energia, com uma maior zona de ataque, é uma classe que procura distância, mas também o momento certo para contra atacar. As habilidades focam-se na troca de lugar com os inimigos e invisibilidade temporária, fulcrais para a fuga a qualquer momento. A maior surpresa, surgiu com o desbloqueio da terceira classe, Engineer. O que parecia ser uma classe mais fraca que as anteriores acabou por se revelar como a mais divertida de utilizar devido às armas e habilidades de ataque à distância. Com uma rifle, temos acesso a ataques menos poderosos, mas rápidos que tiram dano de forma incremental se explorarmos os pontos fracos dos inimigos. A turret é perfeita para enfraquecer grupos inimigos enquanto procuramos manter a distância e a habilidade Wormlink é a mais complexa de compreender, mas talvez a mais satisfatória. A sua função é semelhante ao Scrambler, no sentido em que atordoa os inimigos, mas é capaz de disferir algum dano e, mais importante, afetar outros adversários quando rebenta. No meio de um grupo, um Wormlink é capaz de alterar a direção do confronto e dar-nos alguma vantagem.
Em Deadlink, é tão importante saber como e quando atacar, como compreender quando devemos fugir e manter a distância. Os níveis seguem esta filosofia de combate através de cenários com várias plataformas superiores e a utilização de várias camadas que procuram dar aos jogadores um escape ou então uma forma de contra-atacar. A mobilidade é essencial e um mau desvio, ou a espera pelo seu recarregamento, poderá ditar o nosso fim. Isso é acentuado não só pelas táticas dos inimigos, equilibrados entre ataques a curta e longa distância – que estão constantemente a cercar-nos e a pressionar-nos em combate –, mas também pela necessidade de recolhermos balas para a arma secundária. Em Deadlink, as armas não têm carregadores extensos e muito menos podemos guardar balas. Se utilizarmos todos os rockets, ficamos sem opções e temos de navegar pelos cenários à procura de munições. Felizmente, as munições estão sempre visíveis em campo e posicionadas nos locais estratégicos para nos dar vantagem, mas é refrescante estar em combate e sentir que estamos a ficar sem balas. Desta forma, Deadlink inspira-se um pouco nos clássicos arena shooters, como Quake III Arena e Unreal Tournament, ao obrigar os jogadores a movimentarem-se para terem acesso a balas e granadas. Os enormes ícones decoram os cenários e são pontos de esforço para os jogadores conseguirem finalmente uma possibilidade para mudarem o rumo do confronto. É refrescante sentir esta pressão constante e saber gerir as munições, mas também o espaço para conseguirmos estar sempre um passo à frente.
Se a utilização de munições em campo é uma forma de manter a distância e injetar algum oxigénio à ação de Deadlink, a mecânica de Marking é a sua antítese. Fora os elementos sistémicos do combate, como os barris em campo e os ataques elementais – que nos permitem disferir golpes de eletricidade, pegar fogo aos inimigos ou até envenena-lo para disferirmos golpes incrementais –, temos a possibilidade de marcar e atordoar os inimigos. Esta habilidade já seria importante por permitir pararmos um ataque ou então conseguirmos alguma distância dos grupos de inimigos, mas serve também o propósito de termos acesso a pontos de armadura e vida. A única forma de recuperarmos energia em combate é através do Marking. Se eliminarmos um inimigo marcado, este desfaz-se em pontos de armadura ou ouro. Nós temos de ser agressivos em combate e utilizar uma combinação entre habilidades e granadas para marcarmos inimigos sempre que precisarmos de recuperar energia. Com as várias classes, modificadores para as armas – e que ativamos ao realizarmos determinadas ações, como trocar de arma –, as habilidades que se concentram em ataques e nas opções de mobilidades, e a mecânica de marking, Deadlink torna-se numa dança caótica onde a ação nunca para.
Apesar de cair nos erros incontornáveis do género, já que a jogabilidade depende sempre do nosso investimento e paciência para aguentarmos o constante recomeço da campanha, Deadlink é um forte exemplo do que é possível fazer nos roguelikes. Parte experiência clássica e assente nas mecânicas, parte campanha mais abrangente e acessível com foco na narrativa, é um mestre de dois mundo sem nunca deixar de ser divertido e desafiante.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Super GG.