Crítica – Titane

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Titane é um híbrido que, tal como a fusão de máquina com humano, merece ser visto.

Um filme sobre uma jovem serial killer que engravida depois de fazer sexo com um carro e tenta assumir a identidade de um rapaz desaparecido para escapar às autoridades. Parece promissor.

Em Titane, Alexia, uma jovem impulsiva e curiosa, sofre um acidente de carro por culpa do seu pai. Traumatizada com gravidade, ela recebe um implante de titânio no crânio que a deixa com uma cicatriz para o resto da vida. Mas a sua transformação é mais profunda. A partir desse acontecimento, ela fica alterada e torna-se estranhamente atraída por carros. Agora em adulta, Alexia tornou-se uma dançarina de showrooms de carros, e com um trauma que vai para além da atração sexual por essas máquinas. Cedo descobrimos que Alexia é uma serial killer que, em meses recentes, tem aterrorizado o sul de França. Eventualmente os seus crimes fogem de controlo, forçando Alexia a eliminar todos os traços da sua vida. Agora procurada pela polícia e sem rumo, a única forma que Alexia tem de escapar é assumir outra identidade. Eis que ela faz-se passar por Adrien, um rapaz desaparecido há dez anos. Entra em cena Vincent, o bombeiro veterano que vê em Alexia a oportunidade não só de recuperar o seu filho perdido, como de reencontrar um propósito na vida.

Juntando esta premissa ao facto de que o filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes, há a expetativa de que Titane seja um filme original e surpreendente. Além disso, sabendo que o filme vem no seguimento de Raw, de 2016, e que Julia Ducournau tem um fascínio por body horror, há a expetativa de que seja também o filme mais grotesco do ano. Na verdade, não é um filme perfeito, mas é um filme muito bom, um dos melhores do ano, e que felizmente vai para além do mero género body horror para mostrar uma narrativa subversiva sobre a solidão.

O filme conta com um elenco reduzido, mas muito forte. Quer Agathe Rousselle como Alexia, ou Vincent Lindon como Vincent, estão ambos muito bons, ao ponto de deixarmos de questionar algumas lacunas no guião. Coisas que seriam impossíveis de acreditar que aconteçam, em circunstâncias verosímeis, tornam-se credíveis graças à honestidade das performances dos atores.

A realização de Ducournau está em forma, com o trabalho de câmara e iluminação a coexistirem quase perfeitamente. Há incríveis momentos visuais, desde um exercício de simulação de incêndio, à incrível sequência de introdução do filme, ou uma entrada perturbadora por uma floresta em chamas. Titane brilha mais pela câmara e banda-sonora, do que propriamente pelos tais elementos de horror corporal que nos foram prometidos.

Titane

Mas falando em body horror, o que querem mesmo saber é quão forte o filme é e o que é que se vê? Digamos que Titane dá bom uso à ideia do horror aludido. Há óbvios momentos mais gráficos, desde o assassinato de um stalker patético com uma agulha de tricô na orelha, a um momento sensual que descamba quase num ataque canibalístico, para não falar dos detalhes da gravidez em si. Mas fora isso, o filme não mostra nada de muito insólito. Destaco, por exemplo, uma sequência em que Alexia tenta abortar o seu feto aberrante com a tal agulha de tricô – a sua arma do crime durante todo o filme – que apesar de impactante e forte, não nos mostra nada em concreto. O grotesco está todo retratado por um magnífico trabalho de som e graças à atuação de Rousselle. Por isso ficam avisados: se são fãs de body horror, Titane viaja muito rapidamente para o campo do drama existencial, mais do que pelos meandros do terror em si.

Quando Alexia assume a identidade de Adrien, o rapaz desaparecido, ela é acolhida por Vincent, um autoritário e disciplinado capitão de bombeiros, que passou a última década preso à memória do filho. Um homem que não consegue largar o passado – tudo muito bem ilustrado pela sua recusa em falar do seu filho, em ver o óbvio na figura que assume a sua identidade, e por uma dependência de esteróides trágica – Vincent é o pai carinhoso e compreensivo que Alexia merecia, mas nunca teve.

Esse momento em que Vincent acolhe Alexia como o seu filho foi para mim o momento mais chocante do filme. Não foi a violência dos assassinatos, os pormenores da gravidez abominável ou a macabra cena de sexo entre Alexia e o carro.

E eu explico porque esse momento foi tão chocante. Porque nesse momento percebi que o filme era sobre a procura por amor, não um filme de género. Tenham consciência disso quando entrarem na sala: Titane é um drama sobre uma rapariga à procura de um pai.

Em qualquer outro filme com um enredo clássico, não acreditaríamos que Vincent reconheça Alexia como sendo o seu filho. Mas conforme a trama progride, a viagem dramática dos personagens é tão credível que suspendemos a descrença nos elementos mais fantásticos e aceitamos que estamos a ver uma história de realismo mágico. A possibilidade de se engravidar de um carro aceita-se porque o filme vai além disso. Titane usa as metáforas como uma carapaça, ou melhor ainda, como uma carroçaria, e o fruto da união macabra que Alexia carrega e que está a consumi-la é tão real e verosímil quanto a ideia de que esta é uma rapariga consumida pela solidão.

Só quando Alexia é aceite por Vincent é que ela começa a mudar. Ao ser tratada com respeito e carinho, sendo integrada no quartel e passando a assumir responsabilidades, vemos esta rapariga violenta a abandonar o seu instinto defensivo. Habituada a retribuir amor com dor, Alexia passa de monstro a ser humano. Esquecemos as mortes que pertencem ao seu passado, o parricídio, o amor retorcido pela máquina, tudo isso tornam-se quase memórias dentro da história. O próprio Vincent vai de pai torturado, condenado a autodestruir-se, a um salvador, alguém que literalmente recebe a oportunidade de começar de novo.

Não revelando o final, devo dizer que é um belo momento de cumplicidade e entrega total, de renascimento. Relembro que a premissa do filme assenta na ideia de que Alexia está grávida de um carro e, como acontece com toda a gravidez, tem que haver um parto. O resto… é realismo mágico.

No fim de contas, Titane é um híbrido que, tal como a fusão de máquina com humano, merece ser visto. É neste intermédio entre terror e drama, entre a máquina e o orgânico, entre o clássico e o irreverente, que se encontra a humanidade.

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