The Killer é, sem qualquer dúvida, a obra mais simples e direta da carreira de David Fincher, para o bem e para o mal.
As expetativas para uma porção considerável dos filmes nesta 80° edição do Festival de Veneza foram altas, mas o novo filme de David Fincher, um dos meus cineastas favoritos de sempre, encontra-se noutro patamar. Desde Se7en a Mank, o realizador simplesmente não consegue entregar uma má obra cinemática, sendo que é comum observar-se vários dos seus projetos em artigos e listas sobre os melhores filmes do ano, década e da história do cinema. The Killer possui uma premissa vingativa tão direta quanto o seu título, mas faz por merecer a antecipação gigante?
Admito o erro pessoal de colocar imensa, talvez demasiada, responsabilidade nesta obra de Fincher para me deixar completamente arrebatado. Da mesma maneira que expetativas baixas podem transformar uma visualização medíocre numa experiência surpreendentemente agradável, o desejo tremendo que um filme seja uma obra-prima perfeita pode prejudicar a leitura, análise e desfrutação do mesmo. Assim, não consigo esconder a desilusão por The Killer não ser o que esperava, mas é necessário enfatizar que não deixa de ser uma obra incrivelmente competente e carregada com níveis de tensão e suspense elevadíssimos.
Fincher afirmou que um dos objetivos com esta sua 12° obra – 11° se ignorarmos Alien 3 – era precisamente renovar noções que possuía sobre como contar histórias e sobre o que realmente prende o espetador. Juntamente com a sua curiosidade pelo subgénero de arcos vingativos como uma experiência de tensão constante, The Killer é, sem dúvidas, a narrativa mais simples, direta e superficial da sua filmografia. Naturalmente, estes aspetos possuem os seus prós e contras…
Por um lado, Fincher não perde tempo em colocar o público no decorrer da missão que origina a tal premissa de um assassino contratado que falha o seu objetivo. The Killer é narrado pelo próprio protagonista (Michael Fassbender), usando os seus pensamentos não só como um dos múltiplos mecanismos de tensão e suspense, mas também como um método bastante eficiente de marcar o tom e ritmo do filme. No fundo, a obra é uma coleção de sequências atmosféricas com builds-ups excecionalmente manobrados através de cinematografia tenebrosa (Erik Messerschmidt) e banda sonora pulsante (Trent Reznor & Atticus Ross), culminando num clímax onde a antecipação, planeamento, agilidade, criatividade, intensidade, frieza e dedicação do assassino é demonstrada de forma imprevisível e deveras fascinante.
Por outro lado, Fincher decide propositadamente retirar a The Killer qualquer componente emocional, world-building, linhas de enredo secundárias ou arcos de personagem. A obra peca por falta de qualquer conexão com o protagonista e os seus alvos, assim como respostas às centenas de perguntas geradas pelos conceitos introduzidos pelo filme, especificamente sobre a organização de assassinos, os meios e recursos ao dispor dos mesmos ou até razões palpáveis sobre a origem das missões. A própria estrutura narrativa facilmente torna-se repetitiva e redundante, caindo num padrão previsível sem acrescentar nenhuma informação relevante ou motivação impactante – Tilda Swinton (Asteroid City) é criminalmente subutilizada.
Simplicidade e superficialidade são dois termos distintos, e The Killer é inquestionavelmente caraterizado por ambos. O primeiro conceito encaixa na perfeição na missão de Fincher em criar uma viagem de pura vingança, sem desvios nem pausas. Evidentemente, a narração de Fassbender (Dark Phoenix) aborda temas éticos e morais que assombram ou guiam um assassino, dependendo de como este os vê, mas eis que entra o segundo termo em ação. A falta de uma backstory para o protagonista, de motivações mais potentes e de uma justificação emocionalmente convincente para acompanhar o assassino são buracos narrativos demasiado grandes para aceitar incondicionalmente.
The Killer é um dos típicos casos cinematográficos onde a ideia e execução do cineasta encontram-se perfeitamente sincronizadas, mas que um espetador admira e respeita mais do que desfruta. Tecnicamente, Fincher e o argumentista Andrew Kevin Walker (Windfall) – que volta a trabalhar com o realizador depois de Se7en – entregam a obra tal e qual como imaginaram, mas não é fácil experienciar uma história onde é suposto não sentirmos nada pelas personagens apresentadas no grande ecrã. Felizmente, a tal camada – talvez a única do filme – de tensão contínua é suficiente para levar a obra para porto seguro, com a ajuda de aspetos técnicos notáveis e uma prestação principal hipnotizante.
Fassbender é assustadoramente fascinante na sua representação ameaçadora e subtilmente poderosa de um assassino sem escrúpulos nem misericórdia. A sua voz de narração impressionantemente calma e serena é essencial para o ambiente sombrio de The Killer, tal como a cinematografia e banda sonora mencionadas no início do artigo. Estes três elementos são cruciais para o sucesso da obra, firmemente controlada por Fincher que, independentemente dos problemas mencionados acima, nunca perde o rumo que deseja seguir.
The Killer encontra-se dividido em seis capítulos, mais um epílogo. Tal como todos os outros aspetos narrativos da obra, possui as suas vantagens e desvantagens. Ajuda a marcar as sub-missões, fazendo com que cada capítulo pareça uma espécie de curta-metragem cuja premissa é o assassínio de um alvo em concreto – o quinto capítulo contém uma sequência de luta brutalmente coreografada que merece menção. No entanto, também deixa ainda mais à vista o momento em que o tal ciclo repetitivo volta a iniciar-se, gradualmente perdendo o fator surpresa. Na verdade, a partir de certo ponto, a única imprevisibilidade do enredo encontra-se no quando e como Fassbender irá tentar assassinar o próximo alvo.
Pegando no segundo parágrafo deste artigo, The Killer pode perfeitamente encaixar nessa situação, mas também existe uma certa parcialidade subconsciente que poderá tornar-me mais leniente para com um dos meus cineastas favoritos. Não é, de todo, uma posição incomum no mundo da crítica, mas nunca deixa de ser um cenário complexo. Normalmente, uma segunda visualização longe do hype que rodeia as primeiras experiências ajuda a solidificar uma opinião e precisamente isso que irei fazer no próximo Festival de Londres. Até lá, fica esta opinião com desilusão q.b., mas com aspetos positivos suficientes para me manter minimamente satisfeito.
VEREDITO
The Killer é, sem qualquer dúvida, a obra mais simples e direta da carreira de David Fincher, para o bem e para o mal. Por um lado, a narração melancólica e prestação magnética de Michael Fassbender, assim como a cinematografia atmosférica e banda sonora pulsante, contribuem para a experiência imersiva totalmente guiada por tensão e suspense notavelmente idealizada e executada pelo cineasta. Por outro lado, a falta de qualquer camada emocional relativa ao enredo superficial e personagens sem nome, juntamente com uma estrutura repetitiva e desprovida de arcos secundários, afasta gradualmente os espetadores do mundo fictício igualmente subdesenvolvido. Caso de admiração mais do que desfrutação.