Um filme que não teria melhor altura para chegar.
Atenção esta crítica tem spoilers… Não há como falar sobre este filme sem revelar alguns detalhes das histórias que aqui vão encontrar. E o que vão encontrar é mais um retrato excêntrico de um realizador excêntrico sobre um assunto excêntrico, neste caso revistas jornalísticas. The French Dispatch (em português Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun) é uma carta de amor aos jornalistas e escritores, não só pelo seu papel como comentadores do mundo e da verdade, mas, e isto talvez seja mais importante, pela forma como o fazem. Assim se resume a obra de Wes Anderson. Não é a mensagem, é a forma.
Wes Anderson conta uma história sobre o jornalismo e a forma como capta o irreverente, o contemporâneo e cultural, os factos e loucuras do mundo da arte, política e até os detalhes minuciosos de um dia mundano numa cidade igual a tantas outras, mas não menos única, com um romantismo e estilo que acaba por valer mais que as próprias narrativas do filme (e essas em si já são bastante encantadoras).
O filme conta a história do jornalismo levado a cabo na cidade de Ennui, na França, onde a revista The French Dispatch transformou-se numa das revistas mais lidas do mundo. Neste universo ficcional, caricato e quase tirado das páginas de uma banda-desenhada franco-belga, cedo descobrimos que o mundo do jornalismo sofre um abalo quando o seu editor, Arthur Howitzer Jr, o editor da dita revista, falece antes sequer do filme começar. À semelhança de Citizen Kane, mas com uma lente de comédia e carinho, acompanhamos os detalhes da sua carreira não pelos seus feitos, mas pelo tipo de histórias que caracterizaram a sua revista. A partir do seu obituário, somos lançados numa aventura onde vemos como três crónicas surgiram de três circunstâncias tão únicas, divertidas e melancólicas.
O primeiro, The Concrete Masterpiece, conta sobre a criação de uma obra de arte e a fama subsequente do seu pintor, Moses Rosenthaler, um recluso artista, um Benicio Del Toro brilhante, aqui inspirado pela sua musa, a guarda prisional Simone, interpretada por Lea Seydoux, e guiado/explorado pelo pernicioso Julien Cadazio, um encantador Adrien Brody. A segunda, Revisions to a Manifesto, apresenta-nos Lucinda Krementz (Frances McDormand), como uma jornalista solteirona que segue o processo de uma revolução estudantil na cidade e no decorrer procura fazer um perfil do seu líder de facto, o jovem Zeffirelli, interpretado por Timothy Chalamet, com quem acaba não só por se envolver, mas guiar na sua jornada revolucionária e na sua vida.
E finalmente, The Private Dining Room of the Police Commissioner, em que Jeffrey Wright conquista-nos no seu papel de Roebuck Wright, uma homenagem a James Baldwin, aqui representado como um famoso cronista com memória fotográfica e um segredo pessoal que o assombra, recontando em detalhe a sua aventura na noite em que um mero jantar que serviria de tema para um artigo da secção de culinária transforma-se numa crónica sobre o submundo do crime, raptos e a cruzada de um pai para salvar o seu filho.
E isto serve para dizer que, à sua maneira, The French Dispatch vale pelo seu todo e pela soma das partes. Agora, como eu referi, tudo isso depende muito da forma. O estilo excêntrico, vaudevilliano, caricatural, de Wes Anderson, está a todo o gás neste seu mais recente filme. Apesar de cada uma destas histórias individualmente não ser estrondosa, o guião nunca ascende a píncaros nunca antes vistos na sua obra, mas as narrativas são elevadas pela estética de Anderson, que parece entregar-se completamente aos seus caprichos como realizador. Se forem aficionados de estrutura e guião, podem ficar insatisfeitos porque o filme funciona mais como uma antologia, cujo tema central acaba por ser a humanidade que transparece nestes retratos de vidas, e não necessariamente um conflito com príncipio, meio e fim. Esse elemento arquetipal está mais presente em cada crónica, mas não é seguido com a seriedade de um guionista perfecionista. Anderson preza mais o caricato e os momentos de humanidade no insólito do que contar uma história que deve seguir aquelas batidas férreas da estrutura clássica de guião. Isso perdoa-se porque a sua realização é incrível, como já é sabido. Se o trabalho de um realizador é dirigir a nossa atenção, aqui Anderson mostra que está a dominar a sua arte.
Das crónicas em si, cada uma delas tem um estilo diferente que corresponde à narrativa, mas também a estilos de cinema da época. Há elementos de Bunuel na primeira, de Truffaut na revolução estudantil da segunda e, curiosamente, tanto de Jean Pierre Melville e de Jacques Tati na aventura cómico-criminosa da terceira história. Anderson acaba por abordar não só os feitos da New Yorker e do jornalismo, mas também da história do cinema dessa época dos anos 60 em França.
De destacar é uma pequena e encantadora crónica – narrada do início ao fim por Owen Wilson – sobre a própria cidade de Ennui, inspirada em Angoulême, onde o filme foi filmado, que nos leva numa viagem maravilhosa sobre o dia a dia de uma cidade que, por ser mundana, é complexa e mágica. Desde os telhados que pertencem aos gatos, aos meninos do coro indomáveis nas ruas, aos becos dos carteiristas e os cadáveres que flutuam nos canais, tudo está representado com um nível de caricato que nos faz rir só de ver o enquadramento dos planos.
No entanto, há um desequilíbrio na qualidade das crónicas. Algumas destacam-se mais, já outras sofrem pela falta de um tema concreto. Só na terceira crónica temos uma sequência de animação que é capaz de superar qualquer outro momento do filme em termos de diversão. Mas apesar disso, o filme termina de forma brilhante, apesar de se sentir que queremos ver mais sobre o cenário de fundo, os bastidores do trabalho de edição da revista. No entanto, quando percebemos que os eventos aqui retratados, e a forma como são retratados, enquadram-se perfeitamente com a estética, sentimos que estamos a ver uma adaptação real da experiência que é ler aquela revista, transportada para o grande ecrã.
Agora, um grande elenco, um ritmo que nunca desaponta e a variedade estética, juntamente com um bom equilíbrio entre comédia e drama, tornam o filme numa das experiências cinematográficas do ano mais encantadoras.
Há momentos de tocante humanidade, em que Anderson nos aproxima dos personagens e os despe da excentricidade do seu estilo, remontando ao seu trabalho inicial, com as comédias negras Bottle Rocket e Rushmore, onde sentimos uma proximidade maior com os seres que habitam este filme. No início do filme vemos Bill Murray – tocante no papel de Arthur Howitzer Jr, o editor da revista The French Dispatch, baseada na lendária The New Yorker e o seu igualmente lendário editor e co-fundador, Harold Ross – editar um escritor e percebemos que, para ele, esse trabalho de edição é tanto guiar o escritor, como protegê-lo de si mesmo. Este momento e outros, como o momento em que Roebuck reconta o seu primeiro encontro com Harold na cadeia de Ennui, ou o momento em que o mesmo reconta as tocantes palavras do cozinheiro da policia, o Tenente Nescaffier, um brilhante Steve Park, no final da temerosa aventura de resgate, dão ao filme um retrato de humanidade brilhante pela sua simplicidade e impacto.
The French Dispatch é um filme que não teria melhor altura para chegar. Não só como último bradar da imprensa em papel, como homenagem ao cinema e às salas e um apelo a um retorno, se não a dias passados, às qualidades esquecidas desses dias passados. Os dias em que a palavra tinha significado, a escrita era prezada e as experiências queriam-se saboreadas, não com gratificação imediata.
No final do filme, ficamos com um sentimento de nostalgia que pode cair perigosamente na melancolia, não só pelas memórias de tempos e costumes que estamos a abandonar na literatura, cinema, no fundo, nos comportamentos culturais, mas pelo prazer de saborear algo novo que nunca acreditávamos que existia. Neste caso, é um filme, uma crónica sobre crónicas, que dita o fim de uma geração, mas não o seu esquecimento. Como Roebuck diz, “nunca esqueço a palavra escrita”. Nunca esquecerão este filme.