Pachinko conjuga drama e estilo épico, num retrato intercultural e intergeracional que resgata do passado e da treva do anonimato o sacrifício dos pais, dos antepassados coreanos.
Bem sucedida no seu conjunto, esta coprodução coreana e japonesa que irá estrear a 25 deste mês na Apple TV+ numa temporada de oito episódios retrata a história de uma família coreana nos difíceis tempos da ocupação japonesa.
Pachinko, à partida, designa um jogo que mergulha as suas raízes no velho Oriente (hoje em dia encontra-se vulgarmente nos jogos do tipo slot machine). Mas o facto de dar nome a esta série serve bem de enquadramento à história de várias gerações de uma família coreana cujas personagens têm de tomar difíceis decisões nos momentos mais críticos das suas vidas, tudo num pano de fundo que retrata a história de duas nações em tempos de guerra e inimizade – a Coreia e o Japão. Com uma ação que se inicia no século XIX e culmina na Nova Iorque de 1989, o destino das personagens arrasta-as na voragem do tempo e dos acontecimentos, num retrato pungente das consequências da opressão nipónica e do êxodo forçado de milhares de coreanos que, tal como é dito na sucessão de testemunhos verídicos do genérico final, gerou cerca de “600.000 coreanos apátridas“.
Com raízes na realidade social no Oriente oitocentista, a história inicia-se com o relato da vida de uma jovem que é vendida ao marido e, confrontada com a incapacidade de ter filhos, consulta a feiticeira local. Esta augura o nascimento de uma criança bem-sucedida que irá ter um papel crucial no futuro da família. Esta nota supersticiosa confere desde logo uma aura especial à protagonista, Sunja, a criança predestinada que irá atravessar os tempos e marcar várias gerações (primeiro como filha de um homem aleijado, depois como jovem mãe, e por fim como avó de Solomon, o neto que almeja o sucesso e ascensão social numa poderosa empresa nova-iorquina). A história vai sendo sucessivamente relatada sob o olhar da memória, numa teia de acontecimentos com enquadramentos temporais distintos.
Trata-se de uma história com muita força, dinamismo e ação, mas também com pausas poéticas e diálogo desenvolvidos, em que se aprofunda o sentido da existência na voz de personagens emotivas, cheias de orgulho pátrio, espírito de sacrifício e sentido de família; tudo numa teia narrativa simples mas bem urdida, na qual todas as peças se vão completando num cenário de maior alcance: a resistência daqueles que em tempos de má memória se equiparavam a si mesmos a «baratas enterradas» – metáfora recorrente que exprime a condição infra-humana dos coreanos explorados, perseguidos e aterrorizados pelas autoridades japonesas, mas também o espetro da sua própria autoconsciência e auto-censura.
Trata-se, sem dúvida, de um trabalho diferente das produções a que estamos habituados. O enredo nos primeiros episódios adquire até certo ponto uma velocidade morna de novela televisiva, com a história dos amores e casamento forçado de Sunja que a leva, como tantas outras, para o Japão e para longe da sua terra natal. Mas entretanto, a ação marcada pela história contemporânea vai ganhando corpo e ritmo com a ascensão e queda de Solomon, neto de Sunja, na Nova Iorque de 1989 e a sua busca desesperada por Hana, uma ex-colega de escola que, por razões misteriosas, lhe telefona sem chegar a revelar o seu paradeiro. Temos, assim, o retrato de duas épocas distintas que alcançam progressivamente um sentido maior, pela dimensão épica destas personagens e o seu papel no destino coletivo de um povo.
Entre os sacrifícios que Sunja tem de passar para se sustentar a si e à família, depois das peripécias que a levam para Osaka, e os ressentimentos das gerações mais novas, representados pela personagem de Hana, a figura misteriosa que Solomon tenta a todo o custo encontrar, há um drama familiar que se desenrola e só se desvenda no fim. Neste aspeto, nota também positiva para o facto de Pachinko se distinguir das produções ocidentais que têm tendência por narrativas abertas, depois de esticarem demasiado o pano. Neste caso, o final da série é digno de toda uma história processada em perfeito equilíbrio.
Entre as notas poéticas que tocam de perto os espetadores, não podemos deixar de realçar a qualidade excecional da fotografia, com grandes planos tirados de paisagens naturais e exóticas ou a partir de maquetas artísticas que reconstituem muito pitorescamente as velhas cidades de Osaka e Yokohama. Note-se, ainda, a beleza de certos quadros, como uma despedida num cais envolto em nevoeiro, ou a praia pedregosa dos pescadores que recolhem ostras em apneia, elementos que tiram partido da extraordinária beleza exótica do Oriente e pontualmente nos levam para lá da nostalgia de um país esmagado pela pobreza e pela tragédia.
Outro ponto igualmente forte é a banda sonora. Contrastando com a cantiga pop do genérico de abertura (também muito bem escolhida), a música épica de fundo acompanha o ritmo e densidade da ação, assegurando contornos intensamente emotivos.
Outra virtude que prende o interesse do espetador são os simbolismos recorrentes: desde um simples objeto que atravessa toda a história (diz Sunja sobre o relógio que lhe fora oferecido pelo amante da juventude, “este relógio salvou a nossa família”), passando pela tigela de arroz fumegante em cima da mesa que lembra à protagonista a mãe e a pátria deixadas para trás, até aos elementos narrativos mais elaborados que iluminam o significado mais profundo de tudo, o ajuste de contas com a História. É o caso da renitência da velha mulher em vender a sua propriedade à empresa americana e, enfim, uma Coreia moribunda falando pela voz de Hana, a amiga de Solomon que às portas da morte se reconcilia com a vida.
Trata-se, pois, de uma bem conseguida história de amor e ação que conjuga drama e estilo épico, num retrato intercultural e intergeracional que resgata do passado e da treva do anonimato o sacrifício dos pais, dos antepassados coreanos. A não perder!
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