Crítica – Resident Evil: Welcome to Raccoon City

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Infelizmente, ainda não foi desta que surgiu um filme genuinamente bom de uma adaptação de Resident Evil para o grande ecrã.

Já vi a nova adaptação de Resident Evil ao cinema e, por muito que eu tenha cruzado os dedos por uma boa experiência, essa não existiu. Resident Evil: Welcome to Raccoon City tenta homenagear o videojogo em que se baseia com uma adaptação fiel, mas muito sintetizada e forçada de uma experiência que deveria ser mais visceral e coerente. Agora, isso não quer dizer que não valha a pena ser visto. Há coisas boas aqui neste diamante bruto. Ou pedaço de carvão em bruto, digamos. Atenção, vão haver spoilers nesta crítica.

Está a tornar-se difícil, como fã de cinema de terror, justificar este género perante os outros, quando recentemente todos os filmes de terror descuram aquilo que é a coisa fundamental em qualquer filme, o guião. Mas lá chegaremos.

Resident Evil: Welcome to Raccoon City, conta a história de Claire Redfield, interpretada por Kaya Scodelario, uma órfã que regressa à sua terra natal de Raccoon City, para alertar o irmão, Chris Redfield, interpretado por Robbie Amell, um jovem policial das forças especiais da cidade, que a corporação farmacêutica Umbrella está a realizar experiências perigosas que podem ter envenenado os habitantes reminiscentes desta cidade quase fantasma. Quando um vírus escapa dos seus laboratórios, os habitantes e animais locais começam a transformar-se em zombies canibais e qualquer pessoa que caia no seu caminho é presa. Agora, os irmãos Redfield e um punhado de outros sobreviventes, personagens da saga conhecidos como Leon Kennedy, Jill Valentine e Albert Wesker, têm que tentar escapar da cidade antes que as hordas mutantes e a corporação Umbrella a destruam. Mas para escapar de Raccoon City, vão ter que enfrentar horrores mutantes que vão para além de tudo o que temem.

Quase 20 anos depois da primeira adaptação para cinema de Resident Evil, em 2002, pela mão do visionário Paul W.S. Anderson, a Constantin Films, a produtora por trás dos direitos cinematográficos, decide lançar uma nova versão sobre este universo cinematográfico. Seis filmes sob a alçada de Paul W.S. Anderson, todos bem sucedidos na bilheteira, e eis que o realizador-produtor decide passar as rédeas da saga para as mãos de Johannes Roberts, um realizador de terror talentoso, com uma carreira infelizmente cheia de altos e baixos. Mais recentemente, ficou conhecido pelo sucesso dos filmes 47 Meters Down e pela surpreendente sequela The Strangers: Prey at Night.

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É um realizador que eu admiro pela sua devoção ao género, mas acima de tudo pela persistência. Começando a carreira com um seguimento de maus filmes de terror, Johannes foi mesmo assim crescendo de filme para filme e, a partir de F, de 2010, começou a dar mostras de verdadeira habilidade como cineasta, pelo menos tornando-se competente, com momentos de originalidade técnica e narrativa nos seus filmes. A prova disso é a já referida sequela de The Strangers que, sendo um filme mais simples, é uma experiência mais interessante e original que o primeiro filme, que não era mais que um plágio de Ils, de 2006.

Infelizmente aqui, o realizador-guionista não conseguiu consolidar a narrativa com a sua visão. Quer venham pelos videojogos, pelo género ou só pelo entretenimento, vão encontrar um filme disfuncional em termos de narrativa, de protagonismo e de apresentação ao universo, mas com momentos brilhantes.

Welcome to Raccoon City acaba por ser mais uma síntese dos dois primeiros jogos do que um filme com um princípio, meio e fim bem estruturado. O guião usa personagens, cenários, elementos do universo e algumas das criaturas mais conhecidas para tentar criar uma adaptação fiel dos dois primeiros videojogos, mas, como narrativa coerente, sente-se que nenhuma das duas narrativas funcionam muito bem juntas. É como se Johannes, também o guionista do filme, por alguma obrigação contratual ou vontade própria, tivesse que contar uma narrativa apressada sobre o que se passa naqueles dois jogos, mas integrando elementos visuais. É algo que acaba por sacrificar tensão e drama e, pior que isso, não é ambicioso a explorar os cenários.

O filme tenta focar a aventura em dois locais divergentes para tornar a ação mais contida e fácil de gerir, mas quer a esquadra da polícia da cidade de Raccoon City, onde decorre a maior parte da aventura do filme, quer a Mansão Spencer, nos arredores da cidade, são pouco aproveitados em termos de aventura. Quando o filme terminou, senti que tinha visto uma daquelas adaptações toscas do início do século 21, “dois, três cenários do jogo, roupa igual aos dos personagens, uma sequência idêntica ao jogo e pronto, lá está”. Chama-se a fórmula “Príncipe da Pérsia”, que é um filme bem pior que este, diga-se de passagem, senão mesmo uma ofensa quer aos videojogos, quer ao cinema.

Mas continuando, eu acredito sinceramente que a resposta para o filme falhar vai para além do guião básico… e está no orçamento. A razão porque o filme decorre numa Raccoon City mais pequena do que é retratada nos videojogos, e que a própria cidade se tornou uma cidade fantasma depois do abandono dos recursos da Umbrella, não é só para simular uma sátira a desastres químicos corporativos como a cidade de Flint ou Chernobyl, mas para justificar a ausência de meios. O filme mal aproveita os cenários quer da mansão, quer da esquadra da polícia ou orfanato onde decorrem boa parte da narrativa. Não há circunstâncias aqui retratadas que possamos dizer que capturam realmente estes cenários de acordo com os jogos (não, não há cá cobras nem crocodilos gigantes), não nos deparamos necessariamente com uma aventura de sobrevivência contra hordas de zombies, porque os personagens rapidamente afastam-se destes canibais cambaleantes e, no final do filme, perguntamo-nos, onde é que esteve a aventura e o terror? Para quê ter uma equipa especial de polícias infiltrar uma mansão cheia de segredos e horrores mutantes, apenas para serem quase dizimados nos primeiros cinco minutos, e fugirem de lá nos 10 minutos restantes?

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O mesmo para Leon Kennedy e Claire Redfield, que dão por si juntos na esquadra da polícia, cercados por zombies, mas a única coisa que acabam por fazer é matar um cão mutante e fugir num corredor quando os zombies rebentam com as portas. Mesmo que não tenham jogado os videojogos, vocês vivem no século 21. Como fãs de cinema, ou até apreciadores casuais, o vosso inconsciente sabe que há uma necessidade de escalonamento no conflito. Não basta uma apresentação ao elemento antagonista, e um confronto superficial, sem um aumento progressivo desse conflito através de uma série de peripécias que nos mostram como os protagonistas vão superando as adversidades, mas torna-se cada vez mais difícil fazê-lo e, logo, o conflito fica maior, e o objetivo mais impossível de alcançar. Aqui não há isso porque temos uma subida de tensão muito súbita.

O filme começa, o cenário interessante é apresentado, o conflito também, o elemento de antagonismo também, há duas ou três interações separadas com elementos muito básicos desse conflito e, de repente, a estrutura dá um salto de 10 metros para o fim do filme. Por fim, temos que ver um climax pouco inspirado e, infelizmente, resolvido sem qualquer tensão. Ou seja, tudo o que sabem sobre guião clássico é reduzido a um nível básico e pouco funcional. Welcome to Raccoon City é mais um esqueleto de filme do que um filme. E isso não é má escrita, meus caros. Isso é pressa e tostões contados na bolsa dos produtores. Alguém tinha que viabilizar a propriedade e os primeiros meses parados durante a pandemia e parece que foi Welcom to Raccoon City e Johannes Roberts que foram colocados nessa posição ingrata.

É uma pena, porque dá para ver que o realizador quis imbuir no filme um carisma e personalidade dignos do género. Por exemplo, com os personagens, Johannes fez o seu melhor para lhes dar pathos, mas infelizmente, o guião perde tanto tempo com o estabelecimento dos cenários e personagens do universo, sem estabelecer adequadamente as regras do universo, que não só não percebemos bem o porquê de todo este conflito, como temos pouco desenvolvimento dramático dos seus protagonistas.

E atenção, isto é um multiplot, e cada um destes personagens tem realmente um conflito. Chris tem o conflito de lealdade para com William Birkin, o cientista da Umbrella que o criou; Claire quer vingança pelos abusos cometidos pelo mesmo cientista; Leon quer encontrar o seu lugar no mundo; Wesker quer escapar da cidade; Jill recusa-se a aceitar a morte de Raccoon City… tudo isto está apresentado no guião, mas depois, com exceção de Wesker e Leon, é pouco desenvolvido, e quando o é, não é o suficiente. Tanto que chegamos à conclusão e percebemos que não estamos realmente a sentir nada pelas conquistas dos protagonistas. Não ajuda que estes protagonistas tenham momentos em que se comportam sem coerência, quer com situações de alto risco, quer com conflitos previamente estabelecidos.

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Custa-me escrever esta crítica e ser tão mordaz, porque antes demais, como fã, queria que o filme funcionasse. Mas além disso, quer o guião, quer a realização, têm coisas boas que nos mostram aquilo que o filme poderia ter sido. Desde as referências a clássicos de terror como Assault on Precinct 13 e The Thing, ambos de John Carpenter, o ídolo de Johannes, ou as referências visuais dos videojogos, tanto nos cenários e design das criaturas, ou adaptar literalmente o uso da planificação dos videojogos, neste caso a mudança súbita de um plano médio para um plano aberto para nos mostrar uma ameaça ao virar da esquina e criar um susto idêntico à da experiência imersiva dos jogos, o filme faz um trabalho de adaptação estético bom. Além disso, tem uma direção de fotografia impecável – uma composição de planos com recurso à escola dos anos 70, panavision, planos mais abertos, iluminação outonal e, acima de tudo, algumas sequências de verdadeira tensão e horror. Destaco o início do filme, que nos prepara para uma experiência de terror arrepiante, ou um momento brilhante de tensão e comédia, quando um Leon encarregue da receção da esquadra recebe a visita “calorenta” de um zombie, ou a sequência em que Chris Redfield tenta sobreviver sozinho dentro da mansão a uma horda de zombies. Com pouca munição, sem orientação e sem luz que o valha, Robbie Amell, o realizador e toda a equipa fizeram um trabalho brilhante a capturar uma sequência de verdadeiro terror de sobrevivência que faz juz à série. Infelizmente, estes momentos são poucos e muito espalhados no filme, e não são suficientes para sustentar o fator de terror ou diversão.

Um guião mal aproveitado, falas difíceis de engolir e um terceiro ato apressado não ajudam a experiência. Literalmente, falta quase uma hora de filme, com reviravoltas, aventuras, momentos de tensão, dificuldades para serem ultrapassadas e exploração do antagonista do filme – Neal McDonough no papel de William Birkin, mais uma vez a fazer uma prestação coerente e de qualidade – que, apesar de ter todos os pressupostos para ser um grande vilão, é desperdiçado num terceiro ato que não nos convence.

Está na hora da Constantin Films começar a apostar mais na qualidade das suas produções e menos no mérito da marca para levar pessoas às salas, ou corre o risco de se tornar a Cannon europeia. Talvez seja esse o objetivo da produtora. Qualquer que seja, quem sofre são os artistas, e nós, o público.

Infelizmente, ainda não foi desta que surgiu um filme genuinamente bom de uma adaptação de Resident Evil para o grande ecrã. O filme tem bom aspeto, boas ideias, bons conflitos, mas pouca capacidade de levar tudo isto a ponto porto, culminando numa versão apressada e limitada do que a experiência imersiva de terror de sobrevivência merece.

Mas lá está, vale a pena ver, não só pelos momentos ocasionais de qualidade, mas para reconhecerem o mérito de se falhar em grande. Johannes Roberts tentou fazer o melhor que podia com pouco ,e isso produziu um filme mal resolvido que merecia melhor.

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