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Música rebenta com todas as expetativas, sendo a grande surpresa do ano até à data e servindo de testamento para o talento imensurável de Rudy Mancuso

Não sei se o que vou afirmar a seguir provocará reações de choque ou total indiferença, mas Rudy Mancuso era-me completamente desconhecido até assistir a Música. Não tenho qualquer familiarização com o seu trabalho aparentemente famoso nas plataformas Vine e YouTube. Pessoalmente, Camila Mendes (Do Revenge) era a principal ‘atração’ deste filme e o que me fez sentar à frente da televisão, tal é o seu talento e charme natural, mas a curiosidade despertou quando me apercebi que Mancuso não ia apenas atuar, mas também realizar, escrever, produzir e compor a banda sonora daquela que é, no fundo, uma obra baseada na sua vida.

Música conta a história de Rudy (Mancuso), um jovem que tem sinestesia – fenómeno percetual em que a estimulação de um sentido leva a experiências involuntárias em outros sentidos como, por exemplo, ouvir um som evocar uma imagem em particular ou um cheiro ser associado a uma cor – e que vê a sua vida complicar-se ao ter de lidar com a pressão de um futuro incerto influenciado por amor, família e cultura brasileira de alguém que vive em Newark, Nova Iorque, nos Estados Unidos. Neste caso em particular, Rudy consegue associar barulhos do dia-a-dia a melodias e ritmo, criando música na sua própria cabeça.

Todos os anos cinéfilos possuem surpresas inimagináveis. Obras que nunca antecipamos assistir caem à nossa frente e, sem que nada o previsse, ultrapassam quaisquer expetativas pré-definidas. Música é o mais recente exemplo e a grande surpresa de 2024 até à data. Mancuso eleva uma premissa admitidamente genérica e que, no fundo, é desenvolvida através de uma narrativa formulaica, mas a criatividade imensa e estilo distinto deste artista transforma por completo um filme que facilmente seria de esquecer sem a sua visão única, original e até inédita em alguns aspetos.

Começando mesmo por aí, Mancuso é capaz de ser o primeiro cineasta a trazer sinestesia para o grande ecrã não só de maneira deslumbrante e cativante mas, acima de tudo, compreensível e empática. O cineasta ‘sofre’ da mesma condição – aliás, o personagem Rudy é, para todos os efeitos, uma versão bastante próxima da pessoa que o representa – e Música retrata a mesma sem tabus, abordando os problemas que traz, mas também o dom que pode ser. Por tudo isto, seria de esperar que a música fosse o único destaque técnico de relevo…

Não poderia estar mais enganado. Música é uma obra multi-departamento genuinamente impressionante. É o tipo de filme que me fez apaixonar por cinema, onde literalmente todas as áreas que perfazem uma obra possuem um impacto palpável na frente do ecrã. Desde a construção de sets móveis à cinematografia dinâmica de Shane Hurlbut (Into the Blue), não esquecendo o guarda-roupa culturalmente adequado e o uso solto e fluente da língua portuguesa – aleluia -, assim como a mistura de sons ordinários e coreografia rítmica, Mancuso conta com uma equipa fantástica cujo trabalho fenomenal culmina num take longo ininterrupto que atravessa inúmeras cenas com diferentes personagens, enredos, iluminação, localizações e, claro, música.

Música pode ser descrito de várias maneiras, pois tem caraterísticas narrativas associadas a histórias crescimento e filmes de comédia romântica, mas também contém uma camada musical. No entanto, tal como nunca ninguém interrompe uma cena dramática para começar a cantar, Mancuso também não deixa cair a sua semi-autobiografia no poço das fórmulas e cliches baratos, quebrando muitos elementos convencionais destes (sub)géneros como, por exemplo, a transmutação de um “triângulo amoroso” para um “pentágono amoroso” – perdoem-me, reconheço que soa mal.

Em determinada altura do filme, Rudy não só tem que lidar com uma relação antiga – representando um caminho de vida seguro mas pouco atrativo e até infeliz – e uma paixão recente – representando um futuro incerto mas sonhador e esperançoso -, mas também com a pressão da sua mãe e respetiva cultura, assim como o seu amor por marionetes e música. É uma demonstração bem realista do stress tremendo que jovens sentem ao serem quase ‘obrigados’ por outros a ter a sua vida toda preparada e planeada do ponto de vista profissional, pessoal e romântico. No seu centro, Música é história sobre aprendermos a amar-nos a nós próprios, o que fazemos e o que gostamos.

O romance entre Isabella (Mendes) e Rudy é difícil ser mais natural, tendo em conta que os próprios atores se encontram atualmente envolvidos. A química entre ambos salta para fora do grande ecrã, contribuindo imenso para o investimento emocional dos espetadores nas personagens. Muitos olharão para uma interação entre os dois num hospital como o momento mais importante da sua relação, mas uma sequência anterior num parque revela um aspeto fundamental de qualquer laço romântico e um dos grandes temas de Música: a consideração pelos sentimentos do outro. Apesar de Isabella não conseguir ver e ouvir o mesmo que Rudy, consegue sentir o que ele sente, criando uma conexão íntima frequentemente inexplicável de seu nome ‘amor’.

Enquanto realizador e compositor, não existe medida para o potencial de Mancuso – tomara muitos cineastas possuírem uma visão diretorial tão distinta. Enquanto argumentista – teve a ajuda de Dan Lagana (American Vandal) – e, principalmente, ator, nota-se mais a sua inexperiência. Aliás, se não fosse o facto de existir uma química verdadeira com Mendes e esta ser uma das atrizes mais interessantes atualmente – funciona muitas vezes como âncora neste filme – talvez Música fosse sofrer mais com certos diálogos – a mãe real de Mancuso interpreta a mãe do protagonista, o que levou a muita improvisação amadora, mas sempre com o coração no sítio certo.

Sinceramente, o único problema de maior de Música é o seu final apressado. Para uma obra que dedica tanto tempo a tratar os seus assuntos primários com o cuidado devido, arriscando até decisões narrativas que podem alienar alguns espetadores com expetativa mais básicas, é demasiado utópico que determinados problemas se resolvam tão rapidamente na conclusão da obra. Não me importava nada de ter visto mais 10 ou até 15 minutos acrescentados ao terceiro ato.

VEREDITO

Música rebenta com todas as expetativas, sendo a grande surpresa do ano até à data e servindo de testamento para o talento imensurável de Rudy Mancuso. Um sucesso multi-departamento que eleva uma semi-autobiografia sobre amor, família e cultura brasileira-americana, transcendendo muitas das barreiras dos géneros que representa e revelando o mundo da sinestesia de forma verdadeiramente cinemática. Tecnicamente impressionante e tematicamente rico com música viciante ao redor e química genuína entre todo o elenco. “Rudy did take it higher“.

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