Crítica – Joker: Folie à Deux

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Joker: Folie à Deux tem imenso mérito técnico e artístico, mas falha em repetir o sucesso e impacto do original.

2019 foi um grande ano para o cinema. Pessoalmente, considero Joker um dos melhores filmes desses 12 meses repletos de obras memoráveis e instigantes, mas não recebi o anúncio da sequela de forma propriamente positiva. Afinal de contas, nunca tal foi planeado e, quando assim é, o mesmo nível de sucesso raramente se verifica. Além disto, após o casting de Lady Gaga (A Star is Born) como uma versão de Harley Quinn, iniciou-se uma campanha de marketing marcada pela falta de clareza sobre o facto de Joker: Folie à Deux ser ou não um musical, algo que, naturalmente, impossibilitou inúmeros espetadores – incluindo eu próprio – de construir expetativas justas e realistas.

Após os eventos do primeiro filme, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é aprisionado em Arkham enquanto aguarda pelo seu caso em tribunal relativo aos crimes cometidos como Joker. Entretanto, não só encontra amor, mas também a música que sempre esteve dentro dele. Se as dúvidas sobre o género e a premissa narrativa não geravam muita confiança, o facto de toda a equipa técnica original regressar – Lawrence Sher (cinematografia), Hildur Guðnadóttir (banda sonora), Jeff Groth (montagem), entre outros – assim como Todd Phillips e Scott Silver para o argumento e o primeiro para a realização, traziam uma determina certeza de qualidade audiovisual. E, claro, Phoenix de volta a um dos melhores papéis da sua carreira.

Permitam-me começar por afirmar aquilo que o próprio estúdio já devia ter informado e publicitado há meses atrás: Joker: Folie à Deux é um musical, ponto. O enredo e, principalmente, as personagens desenvolvem-se através de canções com letras que partilham o que estas pensam e sentem e de sequências musicais de produção elevada com sets enormes recheados de luzes, palcos, figurantes, cores e muito mais. Chega mesmo a ser inacreditável como é que a Warner Bros. Pictures tenta esconder a essência da sequela que tanto forçou a existir, quase como que com vergonha da ambição e coragem de Phillips e companhia em subverter o género de super-heróis e adaptações de histórias de banda desenhada.

Consequência desta falta de honestidade perante o próprio projeto? Perdi conta à quantidade de suspiros frustrados na minha sessão devido à impaciência do público para com “mais uma” improvisação a capella ou “sequência de ação” musical. Joker: Folie à Deux será uma experiência muito desapontante e até negativamente chocante para quem entre na sala de cinema com ideias de ver uma sequela dentro do mesmo estilo que o filme de 2019. Pessoalmente, mesmo antecipando um musical – mais um género que adoro – a mistura de tons é demasiado desconcertante e distrativa. Simplesmente, não funcionou.

No espaço de poucos segundos, Joker: Folie à Deux passa de um momento extremamente negro, perturbador, inquietante e violento para Fleck ou Lee – como assim é referida a personagem de Gaga – iniciarem uma nova canção do nada para transmitir os seus sentimentos ou enfatizar os temas centrais do desenvolvimento de enredo respetivo. Esta transição frequentemente abrupta repete-se ao longo dos 138 minutos de duração de maneira formulaica, monótona e com um ritmo lento perante a falta de eventos narrativos.

Mas, mais importante ainda, é o quanto esta mudança de estilo transforma o filme. Não desejo entrar no campo de “uma sequela a Joker nunca pode ser um musical“, mas a verdade é que Joker: Folie à Deux não ajuda a contrariar esta afirmação. Desde a banda sonora sombria de Guðnadóttir – que se destaca novamente – à cinematografia interior claustrofóbica e propositadamente escura e pouco colorida de Sher, os elementos mais negros deste mundo fictício onde Fleck vive são tão fortes e bem assentes que é difícil aceitar um salto drástico para um palco cheio de cores vibrantes, holofotes brilhantes e guarda-roupa teatral. 

Em adição a tudo isto, a vasta maioria das canções caem no esquecimento mal terminam devido a melodias desinspiradas, letras banais e uma prestação vocal de Phoenix que, sendo simpático, deixa a desejar comparativamente com o talento inegável de Gaga. Infelizmente, apesar da atriz-cantora voltar a impressionar dramaticamente, creio que o seu casting acabou por levar a músicas mais pop e parecidas umas com as outras, para lá de possuírem um ritmo totalmente distinto daquele da narrativa. Excetuando um par de sequências musicais – volto a elogiar a cenografia, guarda-roupa, cinematografia, coreografia e todos os departamentos envolvidos nestas sequencias visualmente magníficas – e canções admitidamente impactantes, a componente musical em si também tem os seus problemas.

Se musicalmente Joker: Folie à Deux não impressiona, narrativamente e tematicamente parece andar em círculos. A obra original oferece um retrato cru e perturbador da divisão de classes sociais e a sua alienação, assim como o impacto da doença mental não tratada. É um estudo sombrio, provocador e intenso sobre como a evolução de determinadas normas e comportamentos da sociedade pode levar a transformações humanas tremendamente negativas. A sequela… não acrescenta propriamente nenhum tema totalmente novo, voltando a insistir na dicotomia Fleck-Joker como dupla personalidade sem realmente transmitir nenhuma mensagem significante única.

Mesmo Lee apresenta-se rapidamente com um diálogo direto e superficial, não recebendo mais nenhum pedaço de desenvolvimento individual interessante ou profundo, terminando Joker: Folie à Deux como uma personagem com potencial infinito por explorar. Estranhamente, a sequela guarda poucas surpresas e possui pouco valor de choque comparado com o original, apesar de conter alguns momentos memoráveis dentro do tribunal e, a espaços, em Arkham nas interações entre Fleck e os guardas, nomeadamente Brendan Gleeson (The Banshees of Inisherin).

O que salva Joker: Folie à Deux de um desastre total é, de facto, o seu valor artístico e técnico. Vão-se dizer mil e uma coisas sobre este filme de Phillips, mas não se pode negar a sua ousadia em tentar algo de diferente e que, inevitavelmente, irá gerar tanto ou mais debate que o primeiro filme. E não custa repetir os elogios aos inúmeros aspetos técnicos de destaque que irão agarrar à audiência até ao fim, por mais desesperados que fiquem, tal como Phoenix, Gaga e todos os atores presentes ao longo da obra. Pessoalmente, o risco não compensou, mas prefiro algo deveras original e corajoso do que obras esquecíveis assim que os créditos começam a rolar.

VEREDITO

Joker: Folie à Deux tem imenso mérito técnico e artístico, mas falha em repetir o sucesso e impacto do original. A ousadia de Todd Phillips ao transformar a obra num musical é admirável, mas a execução acaba por ser incoerente, com transições bruscas entre o drama sombrio e os números musicais, resultando numa experiência desconcertante, para além de algo inesperada tal o secretismo embaraçoso do estúdio sobre o formato do filme. Embora visualmente impressionante e com desempenhos notáveis de Joaquin Phoenix e Lady Gaga, a falta de desenvolvimento temático e de personagem faz desta sequela uma tentativa ambiciosa, mas ultimamente desapontante e que não acrescenta mais nada ao estudo instigante realizado em 2019.

Manuel São Bento
Manuel São Bento
Crítico português individualmente aprovado no Rotten Tomatoes com uma enorme paixão pelo cinema, televisão e a arte de filmmaking. Uma perspetiva imparcial de alguém que parou de assistir a trailers desde 2017. Membro de associações como Online Film Critics Society (OFCS), The International Film Society Critics (IFSC) e Online Film & Television Association (OFTA). Portfolio: https://linktr.ee/manuelsbento
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