Todos os realizadores, no meio de dezenas de trabalhos, têm um em específico que define a sua carreira. Ryan Murphy e Ian Brennan podem ter conseguido o seu com Hollywood.
A nova aposta da Netflix acontece em plena era de ouro de Hollywood (pós-segunda Guerra Mundial), acompanhando um grupo de jovens atores e filmmakers na missão de vingar na indústria cinematográfica. No entanto, acabamos rapidamente por perceber que essa missão não é pêra doce, visto que a indústria vive presa a uma mentalidade retrógrada relativamente à orientação sexual e à raça (que ainda hoje existe, se bem que numa porção pequena).
Numa época em que o racismo e a homofobia ainda são uma realidade presente, a Netflix confia na pessoa certa para tornar esta série o mais poderosa possível. Falo de Ryan Murphy, que assume o cargo de realizador (juntamente com Ian Brennan).
Com trabalhos como American Horror Story (já com uma longevidade de nove temporadas), Feud: Bette and Joan (indicada para seis Emmy’s) ou American Crime Story (duas temporadas extremamente premiadas), se há coisa que Ryan provou é que não tem medo de ser extremamente gráfico e de quebrar barreiras, expondo os tabus mais bem guardados a nu. Se estão à espera de mais uma história Hollywoodesca “same old, same old”, podem esquecer isso e prepararem-se para uma abordagem diferente.
O argumento é sólido e bem estruturado e a narrativa é fluida e intrigante. Contudo, muitas vezes dá a sensação de se tornar apressada e torna a história um pouco confusa. O elenco é diverso e bem balanceado, a caracterização é excelente, a fotografia ajuda bastante a conhecer as personagens e a cinematografia é completamente eye-candy. Está montado o setup perfeito para fazer uma série marcante.
Começando pelas tecnicalidades… Na minha opinião, é por trabalhos como este que dá gosto ir ao cinema ou tentar ver séries no maior ecrã possível e com a qualidade de som que merecem: absorver todos os pormenores, que estou certo que Ryan e Ian quiseram fazer passar para o lado de cá do ecrã. Torna-se tão fácil ser absorvido que a missão da história e a qualidade do cast acabam por ser um bónus extra.
O elenco é bastante equilibrado e adequado ao que é exigido. O protagonismo das personagens está muito bem repartido e, no geral, todas elas são bem exploradas ao longo dos sete episódios que compõem a série, sendo fácil criar laços emocionais com algumas delas.
Darren Criss, que ganhou bastante notoriedade em 2018 com o papel principal em American Crime Story (valendo-lhe um Emmy e Globo de Ouro), está de volta para um papel completamente diferente, e vê-lo na pele de Raymond Ainsley (um jovem realizador) é uma lufada de ar fresco. Curiosamente, Darren foi um dos produtores de um episódio desta temporada. Já David Corenswet recebe, por obra do destino, um papel perfeito para a sua experiência como ator (o de Jack Castello, um ator aspirante) e a sua contribuição é a principal fonte de humor da série.
Laura Harrier, ainda sem grandes trabalhos como atriz (à semelhança de David), protagoniza a doce Camille Washington (uma atriz com um início de carreira indesejável) e a sua transformação ao longo da temporada é das coisas mais empowering de se ver. Jeremy Pope, também com uma carreira relativamente curta, entrega-se de corpo e mente ao papel de Archie Coleman (um jovem afro-Americano guionista), e temos com ele uma performance bastante genuína que acaba por moldar o rumo e propósito da narrativa. Samara Weaving ganhou notoriedade nacional ao ser a protagonista no filme Ready Or Not (2018) e, em Hollywood, é Claire Wood (a típica atriz com potencial para ser Diva), acabando por surpreender uma vez mais pela forma como se adapta na perfeição ao papel de diva que lhe é confiado.
Dylan McDermott, para quem segue American Horror Story, já é um velho conhecido, sendo que a sua popularidade nasceu muitos anos antes com The Practice (onde ganhou um Globo de Ouro e carimbou mais duas nomeações). No entanto, é com o papel de Ernie que consegue uma das melhores prestações nos últimos anos, cheia de carisma, classe e charme. Assenta que nem uma luva e não consigo imaginar ninguém melhor para dar vida a esta personagem tão autêntica. Dylan é, sem dúvida, a wild card mais bem jogado de Ryan Murphy.
E o que dizer relativamente a Jim Parsons? É difícil imaginá-lo num papel que não o de Sheldon Cooper, mas, ainda assim, surpreende na pele de Henry Wilson (agente de atores), gerando um misto de sentimentos (bons e maus) que se vai metaforizando ao longo da série. Ao elenco principal juntam-se ainda Jake Picking, Michelle Krusiec, Maude Apatow e ainda uma série de veteranos da representação e produção, entre os quais Holland Taylor, Patti Lupone, Joe Mantello, Rob Reiner e Queen Latifah.
Ainda que muitas das personagens sejam baseadas em pessoas reais, com influência na história do cinema, são as personagens fictícias que tornam o enredo especial e a narrativa interessante, pois todas elas têm uma forma de estar/ser muito própria. Contudo, é o elo criado por essas individualidades que torna a mensagem forte. Gostando ou não, todo o acting é carregado de nuances típicas de Hollywood dos anos 40 (não por defeito, mas por excesso). A chave de ouro embeleza o argumento, tornando-o mais autêntica e fiel à realidade.
Hollywood é aquele tipo de trabalho que é especial. E o que o torna especial é algo que vai fazer comichão a muita gente (incluindo críticos), podendo vir a ter influência direta na classificação da série, como aconteceu com Watchmen. O paralelismo entre as duas séries em causa é a forma como usam a ficção para adaptar e re-escrever a história dos Estados Unidos, expondo o racismo e a homofobia que sempre estiverem presentes nessa história, mas que, nos “livros”, foram muitas vezes despenalizados, camuflados ou até omitidos. Tão simples quanto isto.
Esta não é apenas mais uma abordagem histórica sobre a era de ouro da indústria cinematográfica, mas por sua vez como a história deveria ter sido escrita. É incrível perceber após uma curta análise que foram precisos mais de 50 anos para a igualdade e respeito pelo próximo ganharem valor e espaço no cinema. Séries como Hollywood são uma alegoria urgente que o mundo precisa de ver, compreender e absorver com normalidade, pois quando isso acontecer é sinal que atingimos finalmente a plenitude como seres humanos.
Quando uma série chega ao fim, o que realmente importa não é apenas o entretenimento. É, sim, passar uma mensagem suficientemente forte e clara sobre o propósito da mesma, que permita a quem está a ver levar “algo” consigo para a vida. Posso dizer com certeza que, apesar das falhas relacionadas com a narrativa devido à densidade da história ser enorme para sete episódios, Hollywood é uma série que o faz com categoria.
Hollywood estreia na Netflix a 1 de maio.