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Companion pode não reinventar a roda dentro do seu género, mas a forma como Drew Hancock trabalha um conceito familiar com um toque pessoal e uma execução tecnicamente notável, resulta numa experiência incrivelmente cativante.

Sou obrigado a iniciar esta crítica com um aviso urgente sobre os trailers e algumas sinopses oficiais de Companion. Entendo que, hoje em dia, seja quase impossível entrar numa sala de cinema sem saber absolutamente nada sobre o filme em questão. Seja através das redes sociais ou do próprio departamento de marketing das distribuidoras, manter os elementos-chave de um novo lançamento em total segredo é algo extremamente raro. Infelizmente, a estreia de Drew Hancock na cadeira de realizador-argumentista de longas-metragens é negativamente afetada por uma campanha de publicidade vergonhosa e seriamente prejudicial para o sucesso global do filme.

O conceito narrativo criativo que marca Companion é ridiculamente apresentado e explicado em todos os trailers lançados até à data, retirando um fator de surpresa gigante a um filme que, visto pela primeira vez no grande ecrã sem qualquer conhecimento prévio, promete uma experiência de choque e de estupefação genuínos que transforma por completo as expetativas sobre o caminho que a história vai seguir, assim como os temas principais aprofundados. Para os efeitos deste artigo, a premissa a ter em conta não passa do seguinte: a morte de um bilionário desencadeia uma série de eventos chocantes para Iris (Sophie Thatcher) e os seus amigos durante um fim‑de‑semana de férias numa casa à beira de um lago.

Pessoalmente, tive a sorte de conseguir evitar qualquer informação sobre Companion, tirando o elenco liderado por Thatcher (Yellowjackets) e Jack Quaid (Scream), e logo senti o impacto das revelações entregues poderosamente por Hancock. Com um argumento repleto de reviravoltas surreais, o primeiro ato destaca-se como o melhor estruturado, apresentando uma mistura de tons propositadamente estranha entre comédia, romance e mistério. A atmosfera inquieta e a sensação palpável de que algo não bate certo é constante e os temas de abuso na relação, amor como vício e falta de controlo pessoal são desenvolvidos de forma bem evidente.

Mas eis que chega o momento em que Companion é virado do avesso com um ponto de enredo que espero genuinamente que a maioria do público não se tenha apercebido previamente através dos tais trailers carregados de spoilers. Aliás, uma das razões pelas quais esta decisão terrível de marketing me afeta tanto é precisamente pelo facto de ser bastante claro que Hancock constrói a primeira meia hora do filme para culminar num twist narrativo teoricamente imprevisível e “fora da caixa”. A obra não é arruinada para os espetadores que entrem no cinema já sabendo para o que vão, mas a experiência nunca será igual.

A fórmula-base por detrás desta mudança drástica naquilo que é a nossa noção de quem são as personagens e do tipo de mundo em que vivem não é propriamente inovadora – aliás, se descrevesse a premissa real de Companion, seria fácil mencionar dezenas de obras recentes que utilizaram um conceito semelhante – mas a execução técnica e narrativa, assim como alguns detalhes únicos que Hancock insere neste seu projeto, tornam uma ideia genérica em algo deveras especial e que marca este início de ano surpreendente positivo – Janeiro não costuma ser, nem de perto, um mês memorável.

A banda sonora de Hrishikesh Hirway (Save the Date) e as respetivas escolhas musicais contribuem, de forma geral, para a camada mais cómica e divertida da obra, com músicas de festa rítmicas e energéticas, sendo que existe espaço durante o filme para algumas gargalhadas. No entanto, o tal tom sombrio nunca desaparece, em muito devido aos planos aproximados desconfortáveis de Eli Born (The Boogeyman). Companion cria um sentimento consistente de contradição entre o que se está a assistir e a atmosfera em si, um paralelismo inteligente com os próprios sentimentos da protagonista.

Iris é uma mulher perdidamente apaixonada por Josh (Quaid), um homem que não aparenta partilhar o mesmo nível de carinho e amor que a suposta alma gémea. Pequenos momentos de faltas de preocupação e até de respeito levantam dúvidas sobre a sua relação, mas algumas certezas sobre a dependência perigosamente tóxica que Iris tem com Josh. Como a própria refere numa conversa particular durante Companion, é como se algo dentro dela quisesse sair e explodir, mas existe sempre outra parte dela que empurra essas emoções mais fortes para baixo e mantém-se calada, quieta, sorridente e complacente com tudo aquilo que Josh lhe pede para ser ou fazer. Desde que Josh esteja feliz, Iris está “feliz”.

A partir do segundo ato, Companion insere outros temas importantes e que tomam inclusive as rédeas da narrativa, mas devido à sua conexão inerente aos tais spoilers, ficam para análise posterior. A hora final traz muitos contratempos para Iris, mas existe uma certa repetição de sequências de perseguição e ação gerais provocadas por momentos mais forçados em prol do entretenimento que, apesar de manter níveis altos até ao fim, peca por insistência em demasia para esticar uma duração que seria curta para os requerimentos do estúdio, muito provavelmente.

Normalmente, os filmes guardam os trunfos na manga para o fim, mas Companion toma a decisão arrojada de colocar as cartas todas na mesa ainda nem a obra vai a meio. Por um lado, traz a vantagem de capturar a audiência mais cedo e manter a sua atenção bem focada no grande ecrã durante os grandes momentos. Por outro lado, perde-se a sensação de se terminar na fase mais climática da história, parecendo que a partir de certo ponto, a curva do entretenimento passa a ser descendente.

Nota final para a prestação de Thatcher. O resto do elenco também merece elogios, nomeadamente Quaid como contra-parte principal, mas Companion é o espetáculo de Thatcher que demonstra a cada novo papel ser uma das jovens atrizes mais promissoras da sua geração. Um alcance emocional tremendo, capacidade expressiva extremamente versátil e até um timing cómico perfeito. O seu talento é impressionante e conseguir elevar uma personagem tão dinâmica e complexa como Iris não é tarefa nada fácil. Uma interpretação que torna tópicos delicados como auto-controlo, afirmação e humanidade em assuntos altamente relacionáveis através de um arco inspirador. Absolutamente fantástica!

VEREDITO

Companion pode não reinventar a roda dentro do seu género, mas a forma como Drew Hancock trabalha um conceito familiar com um toque pessoal e uma execução tecnicamente notável, resulta numa experiência incrivelmente cativante, especialmente para quem conseguir evitar os trailers criminalmente reveladores. A mistura de tons, a atmosfera inquietante e a exploração de temas complexos como abuso, amor e controlo elevam a obra de horror acima de meros jumpscares baratos, deixando uma marca emocional e narrativa que se prolonga para lá dos créditos finais. Com uma prestação arrebatadora de Sophie Thatcher a servir de âncora, este thriller psicológico com toques de comédia, romance e até ficção-científica destaca-se como uma das primeiras surpresas do ano que recomendo ver no cinema sem qualquer conhecimento prévio da mesma.

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