Antes do início de qualquer festival de verão, é necessária toda uma preparação de bastidores. Meses de planeamento, contratação de artistas, definir programação de palcos e organização de horários, conseguir parceiros, arranjar novidades todos os anos… São tantos parâmetros que, sem uma equipa de trabalho, fica impossível construir o que quer que seja.
A convite do Bons Sons, fomos conhecer um pouco melhor o trabalho que se faz por detrás do que o publico vê, ou seja, tudo o que acontece antes de se transformar no festival.
O cenário em Cem Soldos nada tem a ver com os dias de festa. É a típica aldeia, igual a tantas outras. Passam alguns tratores com materiais, vemos gatos a dormir e algumas pessoas no Café da Tonita. Mas tudo isso muda uns dias antes, com o assunto Bons Sons a ficar na ordem do dia. Afinal de contas, é uma aldeia pequena – não tem mais de 700 habitantes.
Encontrámo-nos com João Silva, responsável pela assessoria de imprensa no Bons Sons, na SCOCS (Sport Club Operário de Cem Soldos), para uma breve conversa antes de passarmos ao campo de trabalho, um dos pilares do festival e que acaba por passar despercebido aos meios de comunicação.
“Eu sugeri o campo de trabalhos porque acho que passa um bocado ao lado. Apesar de ser falado, penso que é uma coisa muito importante do Bons Sons. E é preciso um bocadinho de sensibilidade para falar de certos temas”, desabafou João.
Questionado sobre o que traz o festival à aldeia, João referiu que é aí que o Bons Sons é importante. “Por exemplo em 2014, fizemos muitas ações de comunicação aqui na região. Festas de Abrantes, Festas do Entroncamento, Feira Medieval de Torres Novas… A adesão dependia muito do tipo de evento em si. Por exemplo, em Abrantes era um sucesso. Em Torres Novas já passava um bocado despercebido, até porque era um evento diferente e mais orientado para as famílias. Mas sempre adorei essa parte da comunicação, dava-me imenso gozo.”
Só quem vai ao Bons Sons é que consegue sentir o ambiente da aldeia. A edição de 2014 foi, talvez, a mais bem-sucedida. Não só pelo cartaz, pelo lucro, mas porque o próprio clima ajudou à festa. Se 2015 e 2016 foram um pouco mais frios, a edição de 2014 foi forte em altas temperaturas, e isso ajudou, até nas próprias fotos. Quem as viu, quase que conseguia sentir a alegria de quem por ali passava.
“Passámos a anual em 2015. Estou cá desde o início, mas em 2006 e 2008 fiz apenas alguns trabalhos. Já em 2010, quando comecei como voluntário a sério, e 2012, o Luís Ferreira (diretor do festival) confiava em nós. Lembro-me de uma vez, nessa edição de 2012, tivemos uns CDs, mas só chegaram domingo. Foi um grande flop. Ainda temos ali os CDs todos (na SCOCS) e temos estado a distribuir nas quermesses.”
E dificuldades para arranjar um cartaz de qualidade? “Neste momento já não há, já não temos dificuldades para trazer bandas ou artistas. Em 2010, era difícil trazer cá o Rodrigo Leão ou os Mão Morta, por exemplo. Já tivemos artistas a quererem vir tocar a Cem Soldos fora do festival, e também temos artistas que querem mesmo vir cá tocar ao Bons Sons porque gostam da experiência. O próprio José Cid vem cá dar um concerto exclusivo. Não sei se sabem, mas o Bons Sons é o único festival este ano a receber o concerto centrado no álbum ‘10.000 anos Depois Entre Vénus e Marte’.”
João Silva revela que Luís Ferreira acaba por ser “massacrado” com todas as sugestões que lhe são dadas, mas que é sempre muito aberto a todas elas. “Por exemplo, o ano passado, antes do programa estar feito, eu falei-lhe da Da Chick, e vais a ver e ela esteve no programa.”
Crescer dentro da aldeia não está nos planos. “Queremos manter este tamanho. Damos valor à descentralização, temos orgulho na capacidade que temos neste momento. Mas há imensos festivais que já se inspiraram no Bons Sons. Quando o festival nasceu, fomos um dos primeiros ou mesmo o primeiro dedicado à música portuguesa. E isso antes não existia.”, diz João, cheio de regozijo.
A maioria dos festivaleiros, se assim os podemos chamar, compra o bilhete à última hora, como manda a tradição do bom português. “Temos o nosso parque de campismo e recomendamos alguns locais para as pessoas ficarem alojadas aqui nas redondezas.”
Em termos de acessos, existem uns transferes que fazem o percurso Tomar-Cem Soldos-Paialvo (onde está a linha de Coimbra), e depois o percurso inverso.
O festival tem oito palcos, cada um com o seu estilo. É assim que é feita a divisão de artistas, consoante a sua popularidade e estilo musical. O Palco Lopes Graça recebe os artistas mais consagrados, no Palco Eira passam as bandas mais alternativas, no Palco Giacometti (limpo e preparado pelo grupo de trabalho), que é um coreto, atuam artistas que estão a emergir, na Igreja acontece a parceria com a Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, ao ar livre acontecem concertos no âmbito da Tarde ao Sol… E não há concertos em simultâneo, o que possibilita que toda a gente consiga ver todos os concertos.
O campo de trabalho é um dos pontos fulcrais do funcionamento do Bons Sons. São estes jovens, dos 12/13 aos 22/23 anos de idade, que se juntam, trabalham durante quatro semanas antes do festival, e mais uma depois do final. Após todo esse trabalho, a SCOCS recompensa estes jovens com uma semana de férias em São Martinho do Porto. “Antes existia a colónia de férias aqui em Cem Soldos, que acabava por juntar a comunidade. Sempre foi um ponto forte na aldeia. Eu não cheguei a apanhar a colónia de férias. O ano em que me inscrevi foi precisamente o ano em que acabou, infelizmente. Mas andam a tentar voltar com isso.”, refere João, algo nostálgico.
Percebe-se o porquê da importância destes jovens nos trabalhos de preparação do Bons Sons. Durante as quatro semanas, ficam a “trabalhar” os dias inteiros. “Estão aqui de manhã, depois almoçam e estão aí de tarde. Basicamente, preparam o trabalho para os mais velhos, que fazem limpezas de terrenos ou montagem de edifícios. Há trabalhos mais exigentes e que requerem pessoal mais qualificado ou experiente.”
O crescimento contínuo do festival também levou a que estes voluntários viessem de outras aldeias ou cidades. Ao início, apenas estavam presentes jovens de Cem Soldos, mas, hoje em dia, jovens dos arredores já participam nos trabalhos. E, acima do trabalho diário, acabam por fazer amizades para a vida.
“Eles vão e vêm todos os dias. Por exemplo, vieram aí duas raparigas, amigas da minha irmã, ter comigo, e trouxeram mais duas amigas com elas. O campo de trabalho corre bem, mas infelizmente não corre exatamente como nós esperaríamos. Até porque só participa normalmente pessoal mais novo, aqueles dos 16 anos para cima não se identificam muito com esta vertente.”
O papel do Bons Sons é de unir gerações. A escola da aldeia de Cem Soldos esteve para fechar, mas lutaram contra isso. Pensaram num método de ensino diferente para atrair mais gente, o que envolve muito a comunidade em atividades intergeracionais. “Os nossos campos de férias são muito engraçados porque diferem dos restantes, e isso reflete-se no método de ensino aqui na escola primária. Não há programa definido. São eles que decidem o que querem fazer. E é preciso uma grande confiança dos pais. E, de facto, eles confiam em nós.”
Como é que se fecha uma aldeia? Esta acaba por ser uma questão recorrente e complicada de responder. “Foi um processo longo e só em 2014 é que as pessoas começaram a aceitar melhor. Este ano fizemos um questionário, andámos pela aldeia a perceber o que é que as pessoas acham, e 95% das inquiridas concordam em avançar com o Bons Sons novamente. Nós fazemos uma lista de residentes para oferecer a pulseira e já recebemos mensagens de pessoas que têm cá casa, mas nunca estão pela aldeia, a perguntarem como devem fazer para dar o nome. A lista de residentes que tem direito à pulseira deve ser constituída por quem participa no Bons Sons, porque, no fundo, o festival é isso mesmo.”
Os trabalhos de preparação do festival começam com a festa da aldeia de Cem Soldos, em junho. Há coisas que já vão ficando, como barracas, e isso poupa bastante tempo.
Saindo da SCOCS para a igreja da aldeia, vislumbramos, ao longe, um grupo de jovens algo tímido. João confidencia-nos que a ajuda destes amigos é preciosa. “Sinceramente não sei como faríamos sem a ajuda deles. Nunca pensei muito nisso”.
Margarida e Raquel são duas das voluntárias que integram o campo de trabalho. “Somos aqui da terra. Começámos há dois anos, tomei conhecimento através do meu irmão”, refere Raquel, a mais tímida das duas.
“Tudo tem de se fazer. Gostamos mais de fazer umas coisas, menos de outras. É normal. Limpar casas é o que custa menos, e custa menos limpar a dos outros que a nossa própria casa!”, ri-se Margarida, que acaba por estar mais à vontade nesta pequena conversa.
Montam estruturas, levam sofás e mesas para a zona dos camarins e têm sempre de limpar muita coisa, para que fique tudo em condições antes de se dar início ao festival. Mas também se percebe que não é pela semana de férias em São Martinho do Porto que estas jovens participam no campo de trabalho, apesar de ser uma recompensa “justa”. “É mais pelo convívio”, senão ficavam em casa “ao computador ou a ver televisão”. Mas a união faz a força e, com todos, “acaba por ser super fácil fazer as coisas”.
Apesar de não se conhecerem na totalidade, a amizade vai surgindo no grupo de trabalho de forma fácil. E esse é também um dos objetivos, porque, em situações normais, provavelmente estes jovens não se relacionariam uns aos outros.
Por norma o dia começa às 10h. Reúnem-se no largo, ou no ATL, e fazem equipas. As raparigas ficam com tarefas mais leves, já os rapazes podem ter tarefas que requerem maior força física. Almoçam às 12h – e são as raparigas que cozinham para todos – e, normalmente, saem às 17h. Mas com o aproximar do festival, deixa de haver horas para sair. Por vezes, os rapazes têm de montar barracas na parte da noite. Mas ninguém se importa e ninguém considera isto um trabalho. Param para falar, sentam-se para descansar ou para contar piadas. Não é puxado, nem é difícil. E é importante realçar isso.
Margarida gostava de, daqui a uns anos, ficar responsável por um grupo de trabalho. “Acho que ninguém se importava. O Bons Sons é uma mais-valia para a aldeia e, se não houvesse uma direção com ideias, a aldeia morria. É ótimo, acho que toda a gente gostava de estar nesses lugares e ter ideias. Já temos algumas e vai-se concretizando o que é possível.”
Apesar do cartaz musical não se enquadrar bem nos gostos destas jovens, destacam a importância do mesmo para o convívio. Conhecem pessoas novas, criam relações. É mais do que música, no fundo. O festival traz vida à aldeia, caso contrário seria apenas mais uma aldeia como tantas outras.
Este grupo de trabalho tem uma importância extraordinária para a organização do evento. “Basicamente, sem nós a direção teria de contratar pessoas para fazerem as nossas tarefas.” Isto podia ser um entrave para a realização do festival, mas os jovens acabam por ganhar, também, valências importantes para a futura carreira profissional.
“Temos de saber trabalhar em equipa. Não posso só contar com aquilo que eu sei fazer. E eu acho isso ótimo. É melhor que na escola… e os horários não são rígidos!”
O passa a palavra acaba por ser importante para este grupo de trabalho, constituído por pessoas da zona, mas também por algumas de outras regiões.
Filipe, coordenador do campo de trabalho, junta-se à conversa e confessa que não é fácil gerir todas estas personalidades. “É um bocado complicado. Há situações mais apertadas, mas às vezes são muitas pessoas para gerir e muitas funções para delegar, então quando acabam fico sem saber bem o que hei de fazer (risos). Eles trabalham bem e portam-se todos bem.”
São perto de 30 voluntários. Em anos anteriores chegou a haver um maior número, mas, este ano, conta Felipe, está mais fraco. “Mas o que interessa é que a equipa tem qualidade na mesma!”
Para Felipe, “é uma mais-valia para o festival. Esta equipa consegue preparar muitas das coisas que aquela equipa mais forte do festival que monta grandes estruturas não conseguia fazer. Desde preparar camas, limpezas de alguns espaços como camarins… Ontem andámos a limpar o Eira. Agora andamos a colocar colchões em algumas casas para acolher malta da nossa equipa que vive fora. É um trabalho um bocado duro, mas vai correr bem. Esta equipa é mais nova, tem outra garra. Já esses mais velhos têm tarefas mais específicas – eletricidade, outros espaços, ou a programação, por exemplo”.
Esta é a terceira semana de trabalhos. As primeiras duas foram “muito soft”, confessa Filipe. Mas com o aproximar do festival, os prazos apertam. Costumam planear o dia. “Amanhã temos de fazer isto, vamos buscar material ali para colocar balcões no outro lado. Normalmente é assim que fazemos e normalmente corre sempre bem.”
Nesta altura, Filipe ainda se dá ao luxo de dormir uma média de “cinco a seis horitas por dia”. “Mas os dias vão passando e vai ser cada vez menos. Três, quatro horas. Ontem, por exemplo, saí de casa às 9h e só cheguei era 00h30”.
Nestes dias, o “chefe” campo de trabalho respira Bons Sons. Ficou responsável por este projeto de voluntariado em 2014, quando lhe começaram a pedir outras coisas. Em 2015, quando o festival passou a anual, chegou-se a maio/junho, e a organização pensou criar uma atividade, uma equipa de montagens. “Há pessoas que não gostam do nome grupo de trabalho”, esclarece Filipe. Bateram à porta de toda a gente, e, nesse ano, quase todos disseram que sim. A equipa foi aumentando, decidindo que, todos aqueles que tinham nascido em 1996, seriam monitores. Filipe, que neste caso já estava na equipa, ficou responsável pelos monitores. “Mas como haviam alguns que não tinham muita ligação com a SCOCS, eu acabei por ganhar uma posição de maior importância.”
Margarida e Raquel estão na cozinha. “Acho que já têm responsabilidade para isso”, assume o jovem coordenador. Questionado sobre os cozinhados das duas jovens, Filipe alega que “peixe não puxa carroça”. “A massa de peixe estava espetacular”, riposta Margarida. “Mas olha que febras com espinhas não dá, eu sempre disse”, conclui Filipe, divertido.
“Mas é com estas coisas que vão aprendendo. Por exemplo, a seguir ao campo de trabalho, fazemos uma colónia que é o “Remember Colónia”, em homenagem a uma colónia que acontecia antigamente (acabou em 2003). Basicamente vamos todos para São Martinho do Porto – vai ser o terceiro ano -, vamos lá para o campismo, fazemos o acampamento Cem Soldos, metemos lá a carrinha do Bons Sons e criamos várias atividades.”
Apesar de muitos dos voluntários serem bastante novos, Filipe sente neles uma diferença em relação a edições anteriores. Estão mais responsáveis. “O futuro deles começa aqui, não é? Eu próprio comecei muito novo e orientei logo uma equipa de 10 ou 15 pessoas.”
Há um elemento ou outro com outra idade que, por vezes, se junte à equipa, mas, regra geral, a idade anda sempre nos 22/23 anos no máximo. “As pessoas procuram-nos muito para fazermos outro tipo de trabalhos. Ontem à noite, quando eu saí daqui, veio o Pedro Fonseca, que é dos palcos, pedir se ajudava alguém para o ajudar no auditório a montar o sistema todo.”
Este ano, a média de idades anda nos 13 anos, muito por culpa da indisponibilidade de voluntários do ano passado. “Repara, o festival nasceu em 2006, a média de idades este ano anda naquela idade que te disse. Ou seja, a diferença é mínima, e o objetivo é ter sempre malta jovem a colaborar connosco. Há um ou outro que vem obrigado pelos pais, mas depois tudo se resolve”, declara Filipe. “É impossível não gostar”, conclui Margarida.
Deixámos os jovens voltarem ao trabalho. A volta final foi uma rota habitual que se faz com os jornalistas, desde a zona de imprensa até ao auditório, por exemplo. E é assim, o dia-a-dia em Cem Soldos, enquanto o festival não começa. Muita ajuda, muita comunhão, muita partilha. E ainda bem, porque, sem isso, dificilmente existia Bons Sons.
O Echo Boomer também falou com Ana Brazão, responsável pelo Plano Ecológico do festival, que este ano conta com novas e inovadoras medidas. Lê a reportagem aqui.