Barron’s Cove é uma estreia notável de Evan Ari Kelman, marcada por uma realização corajosa e interpretações profundamente sentidas, especialmente de Garrett Hedlund, que entrega aqui uma das performances mais poderosas da sua carreira.
Enquanto amante de cinema, assistir à estreia de um cineasta em longa-metragens será sempre entusiasmante. Existe algo de especial na descoberta de uma nova voz cinematográfica, livre de expetativas prévias ou de uma carreira para comparar. E quando se entra numa sessão completamente às cegas, sem trailers ou até imagens promocionais – apenas um título e a promessa de uma história – o impacto emocional e narrativo torna-se ainda mais puro e poderoso. Barron’s Cove, escrito e realizado por Evan Ari Kelman, é o mais recente caso desse tipo.
Após a trágica morte do seu filho, Caleb (Garrett Hedlund), um homem com um passado violento, é consumido pelo luto. Quando o sistema judicial falha em responsabilizar o jovem culpado por essa morte, Caleb decide fazer justiça pelas próprias mãos, sequestrando a criança envolvida no acidente, Ethan (Christian Convery). Este ato desesperado desencadeia uma intensa perseguição, alimentada por uma comunidade em choque e pelas forças policiais determinadas a impedir que se ultrapassem os limites. Barron’s Cove conta ainda com Brittany Snow (Pitch Perfect), Hamish Linklater (Midnight Mass) e Stephen Lang (Don’t Breathe) em papéis secundários.
A obra explora de forma comovente e crua os efeitos da violência doméstica e do abuso infantil, não só na vida das vítimas diretas, mas também no círculo mais alargado de amigos, famílias e comunidades. Ao longo de cerca de duas horas, acompanhamos uma jornada de redenção, justiça e perdão, onde o luto atua como catalisador de todas as decisões – boas e más – das personagens. Hedlund carrega o peso de Barron’s Cove nos ombros com uma entrega absolutamente impressionante. Caleb é uma figura marcada pelo sofrimento, cuja raiva contida ameaça constantemente explodir, mas que, ao mesmo tempo, demonstra uma humanidade surpreendente. O ator transita com fluidez entre momentos de fúria quase animalesca e instantes de uma vulnerabilidade comovente. Para alguns espetadores, a sua prestação poderá parecer demasiado teatral ou exagerada, mas, pessoalmente, essa intensidade encontra-se perfeitamente alinhada com o tom da obra. Trata-se de um homem a tentar manter-se inteiro num mundo que constantemente o empurra para o abismo. É uma performance arrebatadora, claramente uma das melhores da sua carreira.
O resto do elenco também merece elogios. Mesmo com um tempo de ecrã reduzido, Snow deixa uma marca emocional vincada, num papel pequeno mas significativo, provando uma vez mais a sua capacidade de comunicar dor com subtileza. Já Convery (The Monkey) surpreende com uma das interpretações jovens mais memoráveis dos últimos tempos. Participando em cenas de grande carga emocional e até física, o jovem ator mostra uma maturidade notável, nunca caindo em maneirismos forçados nem no sentimentalismo fácil. Por fim, Linklater domina cada uma das suas cenas com um controlo sublime dos seus discursos que tão bem conhecemos.
Do ponto de vista técnico, Barron’s Cove encontra em Gavin Brivik (How to Blow Up a Pipeline) e James Newberry (Buck) uma dupla de compositores que potenciam de forma admirável os momentos mais pungentes do filme. A banda sonora, fortemente apoiada em cordas pesadas, realça as emoções sem se tornar intrusiva, criando uma envolvência sonora que acompanha o espetador do início ao fim. A cinematografia de Matthew Jensen (Wonder Woman) aposta em muitos planos fechados, intensificando o peso das interpretações e não recua perante a brutalidade emocional ou física da narrativa. Essa proximidade visual, por vezes desconfortável, serve de espelho à dor e aos conflitos internos das personagens.
No entanto, nem tudo em Barron’s Cove funciona na perfeição. O argumento de Kelman apresenta uma estrutura narrativa que tenta abraçar demasiados elementos de mistério e thriller político. Há fios condutores relacionados com corrupção, jogos de poder e conspirações que se intrometem numa obra claramente mais eficaz quando se foca na dimensão humana das suas personagens. Estes desvios temáticos não só retiram tempo e impacto ao núcleo da história, como também se sentem excessivamente genéricos.
Apesar disso, enquanto realizador, Kelman revela uma mão surpreendentemente firme e uma clara identidade estilística. As suas preferências por cenas intensas, confrontos verbais brutais e reviravoltas inesperadas demonstram um gosto assumido pelo choque emocional, mas nunca gratuito. A sua abordagem privilegia a crueza das emoções e a exposição sem filtros das cicatrizes (físicas e psicológicas) das personagens. Mesmo que o guião precise de uma maior contenção e foco – um “limar de arestas” narrativas, por assim dizer – a realização segura mostra um cineasta com muito potencial para crescer e solidificar a sua voz no panorama independente norte-americano.
Tematicamente, Barron’s Cove propõe uma reflexão profunda sobre como o passado nos molda, mas não nos define. A violência, sobretudo quando infligida na infância, deixa marcas que podem contaminar toda uma existência, mas o filme não se limita a uma visão determinista. Pelo contrário, acredita na possibilidade de redenção, mesmo que esta não apague a dor, nem reescreva o que foi feito. Caleb não é nenhum herói. Carrega um passado condenável e as suas decisões ao longo da história nem sempre são moralmente claras. Mas é precisamente nesse espaço cinzento que a obra encontra a sua força: no retrato de um ser humano imperfeito a tentar desesperadamente fazer o bem, mesmo quando já ninguém acredita nele – talvez nem ele próprio.
A mensagem de que ninguém deve ser definido pelo seu pior ato é particularmente importante num mundo cada vez mais dado à polarização moral e à condenação imediata. Barron’s Cove nunca desculpa os erros das suas personagens, mas convida à compreensão e à empatia. E, acima de tudo, mostra que o perdão – tanto o que damos como o que recebemos – pode ser o passo mais difícil e, simultaneamente, o mais libertador.
É, por isso, lamentável que a última cena abandone essa linha emocionalmente satisfatória para tentar uma última reviravolta que, sinceramente, parece completamente deslocada. Ao invés de encerrar a narrativa com a coerência e solenidade que o resto da obra vinha a construir, Kelman opta por uma última cartada que levanta mais perguntas do que dá respostas e que acaba por enfraquecer ligeiramente o impacto final da obra. É um daqueles casos em que menos teria sido mais.
VEREDITO
Barron’s Cove é uma estreia notável de Evan Ari Kelman, marcada por uma realização corajosa e interpretações profundamente sentidas, especialmente de Garrett Hedlund, que entrega aqui uma das performances mais poderosas da sua carreira. Apesar de alguns tropeços narrativos e de um desfecho que fragiliza ligeiramente o impacto emocional acumulado, a obra permanecerá na memória pela honestidade com que aborda temas como o trauma infantil, a culpa, o perdão e a possibilidade de redenção. É uma história que desafia o público a olhar para além dos atos isolados, confirmando que vale sempre a pena apostar na descoberta de novas vozes no cinema independente.