Há muito para admirar em Avowed, com a sua alma de RPG à antiga, um mundo cativante e uma jogabilidade flexível, mas a escrita previsível e alguns elementos de direção dúbios tornam esta experiência da Obsidian muito menos envolvente do que poderia ser.
Muito no início de Avowed, ao chegar a uma das primeiras vilas, ouvi uma voz familiar. Demasiado familiar. A voz de um amigo de longa data, com quem, noutra altura, noutro universo – noutro RPG até – lutei lado a lado para salvar uma galáxia. Aqui apresenta-se como Kai, um ser humanoide e exótico, com a pele escamosa de um réptil. Um mercenário e antigo soldado, com uma bagagem emocional cheia de histórias por resolver e, agora, prestes a juntar-se à minha jornada. Rapidamente larguei o jogo e fui ao IMDb confirmar aquilo que era mais do que óbvio. Kai era exatamente quem eu achava que era: Garrus Vakarian, de Mass Effect — na vida real, Brandon Keener. Foi, sem dúvida alguma, uma enorme surpresa para quem tinha perto de zero expectativas para Avowed e, certamente, um elemento que me ajudou e motivou a avançar na sua proposta. Apesar da minha surpresa pessoal, não é de estranhar encontrar o espírito e a alma de Garrus em Avowed. Afinal de contas, a própria diretora do jogo, Carrie Patel, afirma que Mass Effect é uma das suas sagas favoritas e que Garrus é a sua personagem preferida da série.
As comparações com o épico da BioWare encontram-se espalhadas por Avowed, mas, tirando um ou outro momento, são bem menos óbvias do que esta excelente primeira impressão, que rapidamente deu uma curva para revelar alguns dos meus problemas com o jogo. Após um primeiro combate ao lado de Kai, este responde: “Just like the good old days.” Uma observação adorável, que poderia funcionar de forma mais meta, dirigida a mim enquanto jogador e também fã de Garrus — que, em Mass Effect 2, também o exclama — mas que, na realidade, me fez começar a questionar um pouco a escrita de Avowed. Afinal de contas, eu e a minha personagem não conhecíamos Kai de lado nenhum.
Mas, regressando um pouco atrás, à sua premissa e promessa: Avowed é o novo jogo da Obsidian Entertainment, um estúdio com apostas bem curiosas, que, nos últimos anos, nos trouxe o incrível Pentiment, o divertido Grounded e The Outer Worlds. No seu catálogo, a Obsidian assina também o adorado Fallout: New Vegas, o esquecido Alpha Protocol e a saga Pillars of Eternity, talvez a mais importante desta lista, dado que Avowed se passa no mesmo universo. A Obsidian sente-se claramente confortável em experimentar géneros de ficção e estilos de jogo e, com Avowed, oferece-nos algo que, no fim do dia, até se consegue destacar como único. É uma aventura de ação em ambiente de fantasia, com foco na narrativa e no combate, que aproveita o seu mundo para o preencher com oportunidades de exploração e de expansão da mitologia já existente de Pillars of Eternity. Admito que não tenho conhecimento prévio desta saga e, francamente, também não tenho experiência com nenhum dos grandes jogos do catálogo da Obsidian, como Fallout: New Vegas ou The Outer Worlds, para tecer enormes comparações, mas esse afastamento acabou por permitir entrar em Avowed com expectativas bastante moderadas.
Avowed passa-se nas Living Lands, uma região de Eora, caracterizada por diversos biomas, que se encontra ameaçada por uma doença, a Dreamscourge — uma espécie de praga ambiental que consome fauna e flora através de mutações. Esta ameaça é manifestada de forma colorida, em tons cósmicos e hipnotizantes, altamente reminiscentes dos fenómenos apresentados no filme Annihilation, de Alex Garland. Enquanto jogadores, somos um enviado especial do Império de Aedyr, com a missão de descobrir a fonte da Dreamscourge e como travá-la. Pelo meio, somos envolvidos em tramas geopolíticas, contactamos com entidade divinas, confrontamos interesses imperialistas, questionamos sonhos de salvadores, assistimos a fações em guerra e envolvemo-nos em quezílias sociais e pessoais que apimentam a tensão de alguns momentos. É um RPG complexo e profundo, baseado em escolhas de diálogos, alianças e ações que podem alterar por completo o rumo e o status quo deste mundo à medida que avançamos na história. Para tornar tudo mais interessante, o jogador é especial. Para além de ser um enviado do Império, é também um Godlike, distinguindo-se por características físicas únicas que denunciam a sua natureza, estranhamente semelhante aos efeitos da Dreamscourge neste mundo e nos seus infetados.
Na sua base, Avowed é um RPG de ação moderno e tradicional, mas com aquele “sabor” a jogo da geração Xbox 360 – um jogo de médias-altas produções, muito contido e com aquele nível de charme e jank que distingue essa geração. E, claro, conta com todos os clichés normais de fantasia que se possam imaginar. Ao longo do jogo, vamos conhecendo personagens, construindo um grupo de companheiros com qualidades e personalidades variadas, participando em missões secundárias para ajudar a população das zonas que visitamos, subindo de nível para melhorar habilidades, apanhando melhor equipamento, fazendo atualizações e, claro, conversando imenso com os NPCs. Nenhum destes elementos – completamente naturais neste tipo de jogos – se destaca, exceto pela flexibilidade que Avowed nos dá na construção da nossa personagem através da árvore de habilidades, que não está restrita a uma única classe. Ao longo do jogo, à medida que vamos adquirindo pontos, podemos decidir onde concentrar as atenções de acordo com o nosso estilo de jogo, ao investir, por exemplo, mais em habilidades de mago do que de guerreiro, entre outras. É um sistema com um nível de complexidade bastante acessível, sem excessos e fácil de seguir — muito mais do que noutros jogos que fazem algo semelhante, como Cyberpunk 2077 ou Starfield, que, ao irem mais a fundo nessa complexidade, acabam por tornar este elemento de RPG mais confuso do que seria ideal.
Outro elemento de grande destaque de Avowed, muito associado a estas escolhas, é o seu combate e loop, numa mistura de géneros extremamente interessante e divertida de explorar. Avowed é, para todos os efeitos, um FPS. Pode ser jogado na sua totalidade na terceira pessoa, mas é na primeira pessoa que o jogo se sente bem mais imersivo, natural e intuitivo, oferecendo uma melhor perceção espacial dos ambientes durante o combate. Com a possibilidade de termos duas builds sempre prontas a trocar em tempo real (e editadas no inventário), é extremamente interessante como é possível, por exemplo, usar uma pistola numa mão e uma varinha mágica na outra. Ou um escudo e um livro de encantos. Ou até duas espadas. São combinações pouco comuns, mas que oferecem uma enorme profundidade ao jogo quando combinadas com as escolhas feitas na árvore de habilidades, incentivando-nos à experimentação e, eventualmente, ao conforto do seu combate.
Os encontros com os inimigos podem ser bastante intensos, consoante o número de adversários no ecrã ou do seu poder (e da dificuldade de jogo escolhida, como é óbvio). Com uma variedade de inimigos considerável, que inclui humanos, esqueletos, insetos e outras criaturas, há também a necessidade de os estudar e perceber os seus aspetos mais fracos, algo que pode ser particularmente útil para quem optar por uma build mais focada em magias e poderes elementais para os derrotar. Por exemplo, alguns inimigos são mais fracos a poderes elementais, como fogo, gelo e eletricidade, outros são mais fracos contra armas físicas como espadas, lanças, martelos ou pistolas. Dependendo do nosso nível ou do poder dos inimigos, estes encontros podem resultar em one-hit kills, com o nosso herói a limpar adversários com uma simples, mas pujante marretada, ou tornarem-se em combates de ataque e defesa rítmica e estratégica, algo normalmente reservado para bosses.
Nestes encontros, temos sempre dois companheiros que agem autonomamente, mas a quem podem ser dados comandos das suas habilidades especiais através de um wheel menu — novamente, semelhante a Mass Effect. E por falar em companheiros, infelizmente, estes não se destacam, pois mesmo com as suas habilidades especiais que nos ajudam a abrir portas e caminhos durante a exploração, temos sempre a alternativa das nossas próprias habilidades. Já a nível de personalização, temos uma árvore de habilidades individual muito linear e simples. Também digno de mencionar é que os nossos companheiros não contam com equipamento especial e o jogo apenas oferece dois fatos para cada um deles, cujo acesso está trancado à pré-reserva do jogo e à sua versão mais completa.
Regressando à nossa personagem, encontrar a build certa pode levar o seu tempo, com Avowed a dar-nos todo o tipo de incentivos para explorar em busca de melhor equipamento e participar em mais combates espalhados pelo mundo e pelas suas missões. No entanto, é importante destacar que os inimigos não sobem de nível ao mesmo ritmo que o jogador, tornando esse incentivo à melhoria da personagem numa necessidade para enfrentar e ultrapassar os desafios principais. Felizmente, a exploração em Avowed é bastante divertida. Em vez de um mundo aberto, a Obsidian dividiu as Living Lands em diferentes regiões amplas, altamente distintas, com identidade própria e muito bem desenhadas, apresentando belíssimas paisagens e pontos de interesse. Nota-se que houve um cuidado em povoar estes mapas com conteúdo substancial e significativo, com ruínas que contam histórias, caves que guardam segredos, torres que escondem tesouros, florestas que abrigam monstros, etc, com ótimos desgins adaptados à exploração, destacando-se a verticalidade de alguns ambientes que os tornam em autênticos níveis de plataformas. E, normalmente, tudo isto está associado a algo, seja uma missão, uma bounty ou um simples loot especial. São mundos com uma essência de RPG de exploração muito tradicional e bem afinada, que, felizmente, não caem nas armadilhas e tendências de game design que encontramos em jogos de grandes produções, como a progressão semelhante à de um jogo enquanto serviço, onde encontramos “loot aleatório” espalhado por todo o lado.
Não querendo aprofundar demasiado o conteúdo do jogo, há pelo menos quatro grandes regiões para explorar e o jogo não transmite aquela sensação de FOMO de precisar de ir a todo o lado. Senti que a sua exploração é bastante orgânica, com os objetivos das missões secundárias a orientarem de forma relaxada para locais novos, que, volta e meia, se desviavam para pequenas histórias pessoais quando decidia “ir ver” o que estava escondido numa gruta atrás de uma ruína.
Avowed não é, de todo, um immersive sim, mas estes momentos de turismo virtual são onde o jogo realmente brilha e faz justiça à sua direção artística, suportada pelo Unreal Engine 5, que recorre a iluminação global para oferecer cenários e paisagens extremamente realistas e palpáveis. Destaco os interiores e ruínas, onde a luz do sol entra e se espalha pelo ambiente ao refletir em superfícies de forma realista. No entanto, a escolha do Unreal Engine 5, apesar de proporcionar momentos visualmente deslumbrantes, resulta numa experiência gráfica bastante inconsistente em ambientes mais fantásticos, onde o realismo cai por terra – em particular numa das quatro zonas com um ambiente deprimente e nublado -, ou a nível técnico, quando analisamos o desempenho do jogo no PC e nas consolas.
Tive a oportunidade de jogar na Xbox Series X e no PC – nas duas versões disponíveis (Microsoft Store e Steam) -, e a experiência foi sempre diferente. Na consola, o jogo oferece três modos gráficos: Qualidade a 30FPS, Desempenho a 60FPS e um terceiro modo de 40FPS para ecrãs de 120Hz. A maioria dos jogadores terá de tomar a difícil decisão entre jogar a 30FPS ou a 60FPS, e essa escolha tem compromissos significativos. A 30FPS, o jogo corre a 4K, com uma ótima qualidade de imagem, mas a fluidez é insuficiente para este tipo de jogo. Foi a opção que escolhi, priorizando os visuais, mas senti necessidade de uma jogabilidade mais suave e sem a impressão de que a consola estava a esforçar-se demasiado. Já a 60FPS, a jogabilidade melhora substancialmente, mas o sacrifício visual é imenso, com uma resolução drasticamente mais baixa e um nível de detalhe inferior, resultando em ambientes ligeiramente menos preenchidos e decorados.
No PC, a experiência também foi inconsistente. Graças ao programa Play Anywhere da Xbox, a maioria dos jogadores com Game Pass poderá jogar a versão da Microsoft Store. No entanto, durante o período de teste, esta versão sofria de um problema grave – opções como FSR e DLSS, da AMD e NVIDIA, respetivamente, não ficavam ativas, o que fez com que, no meu PC (equipado com uma NVIDIA GeForce RTX 4090, um processador Intel Core i9-10900X, 32GB de RAM DDR4 e um SSD de alto desempenho), não fosse possível atingir os desejados 4K a 60FPS. Felizmente, também foi fornecido acesso à versão da Steam, que já não apresentava esse problema – aqui o jogo teve um desempenho significativamente melhor. De notar que notifiquei diretamente a Obsidian sobre os problemas da versão da Microsoft Store, que me garantiu que iria ser lançada uma atualização de correção a tempo do lançamento do jogo. E para quem tem intenções de jogar na Steam Deck, durante o período de análise, o jogo não me avançou para lá da compilação de shaders, apresentando um erro que também se espera que seja corrigido. Avowed representa também um exercício interessante do ponto de vista técnico, revelando a importância das novas tecnologias de suporte, como reconstrução de imagem e geração de frames, para jogos e motores gráficos modernos. Sem acesso a estas tecnologias, torna-se necessário otimizar as definições do jogo até atingir um desempenho 4K a 60FPS ideal. E, curiosamente, Avowed até permite que o Ray-Tracing seja desligado, mas apenas no PC.
A inconsistência da experiência visual de Avowed também se reflete na sua apresentação narrativa e nas interações com as personagens. Se, por um lado, temos tecnologia de ponta a suportar o jogo, por outro, a direção sofre imenso com algumas decisões de game design e a falta de “vida” no mundo. Foi extremamente dececionante ver um jogo com um potencial cinematográfico tão grande a não apostar nesse ângulo. Na verdade, contam-se pelos dedos das mãos os momentos em que a câmara entra em modo cinemático, e mesmo esses têm uma qualidade dúbia, sendo, por vezes, até desnecessários, por não adicionarem nada ao momento. Adicionalmente, Avowed recorre a momentos expositivos através de ilustrações narradas, com um estilo visual claramente distinto do aspeto geral do jogo.
A forma como Avowed conta a sua história pode ser comum nos jogos da Obsidian ou dentro do género, mas seria desonesto não mencionar o quanto não gostei da apresentação das conversas e interações com NPCs. Nenhuma personagem parece real, todas se movem de forma extremamente robótica e são enquadradas com ângulos de câmara que não consigo descrever de outra forma que não seja como “amadores” e mal-executados.
Há também outros fatores que comprometeram a minha imersão, como a decisão de termos uma personagem muda, enquanto todas as outras falam. É um RPG à moda antiga, e entendo essa escolha, mas o dinamismo das interações teria sido muito maior com uma voz ativa, em vez de o jogo recorrer constantemente a personagens secundárias para verbalizar as nossas escolhas e pensamentos. Isto liga-se diretamente à escrita do jogo, que não me conseguiu cativar. Durante as interações, é comum as personagens fazerem comentários e observações óbvias, com um nível de previsibilidade frustrante. Muitas vezes, eu analisava o caráter de uma personagem e, de imediato, o meu companheiro olhava diretamente para a câmara de forma robótica para repetir, em voz alta, exatamente aquilo que eu tinha acabado de pensar. O resultado é estranho e excessivamente artificial. Aqui, também recuo ao início desta análise, onde a minha admiração por contar com Brandon Keener, na voz de Kai, revelou que um bom ator de voz, por si só, não carrega uma personagem. A direção e a escrita são igualmente importantes e, neste caso, não lhe fizeram justiça.
Outro elemento frustrante, para além da previsibilidade do texto, é o tom do jogo, cheio de contrastes e sem identidade. Se, num momento, temos uma voz interior a gritar por ajuda de forma críptica, no outro temos personagens a despejar exposição misturada com termos linguísticos daquele universo e expressões genéricas contemporâneas. Há um termo que define este tipo de escrita, chama-se “Millennial Writing” (um termo e argumento que, infelizmente, é abraçado pelas franjas mais intolerantes da sociedade), que se torna ainda mais evidente com tentativas de pequenas piadas desnecessárias, como se estivessem à espera de um riso enlatado. Sem querer soar exagerado, houve momentos em que senti que estava a assistir a um clipe de The Big Bang Theory, mas sem os sons da audiência.
Estas observações menos positivas sobre Avowed foram ganhando peso à medida que avançava no jogo, tornando a experiência mais aborrecida e menos envolvente do que o potencial desta aposta da Obsidian sugeria. À medida que me aproximava do fim, a minha ligação emocional com as personagens que me acompanhavam não foi melhorando e o meu desejo de salvar as Living Lands era praticamente inexistente. A vontade de passar à frente missões secundárias e as longas conversas cheias de exposição sem dinamismo foi sempre maior, o que acabou por afetar a forma como abordei algumas das decisões mais importantes da história.
Avowed é um jogo sólido e não vou mentir ao dizer que não me diverti. Houve momentos em que sim. Mas há uma verdadeira tragédia nesta aposta, não na sua narrativa em concreto, mas na forma como se apresenta e como não me conseguiu prender, apesar de ter tanto para admirar – desde a direção de arte à jogabilidade, passando pelo talento envolvido na sua produção. Infelizmente, os aspetos mais determinantes para uma experiência de RPG memorável – a história, as personagens e a forma como tudo é apresentado – ficaram aquém do que poderia realmente oferecer.
Avowed tem lançamento a 18 de fevereiro para Xbox Series X|S e PC e fica disponível no Xbox Game Pass Ultimate e PC Game Pass no mesmo dia.
Cópia para análise cedida pela Xbox Portugal.
Boa review David.
Não é a primeira vez que a versão gamepass pc não inclui Dlss, recentemente o Ninja gaiden 2 também não tinha Dlss no lançamento, mas depois também lançaram um update.
Definitivamente estou interessado no jogo, mas provavelmente só compro depois de acabar o Kingdom Come Deliverance 2, Monster Hunter Wilds e o Yakuza Pirates.
Obrigado! Sobre o DLSS, a Obsidian vai lançar um patch já a tempo do early access que vai afinar isso. O jogo já oferecia as opções de FSR e DLSS, mas durante o período de testes, essa versão simplesmente não acusava as escolhas. Em principio, os jogadores não terão esse problema, mas achei importante referir especialmente por causa de casos como o Ninja Gaiden 2 no lançamento:)