Uma experiência única sobre a passagem do tempo e o nosso lugar enquanto jogadores.
É refrescante sentir, ainda que numa escala muito reduzida, que alguns produtores e estúdios estão dispostos a desafiar a ideia do que é um videojogo. Numa geração que se avizinha menos criativa do que poderemos esperar, é reconfortante ver o trabalho artísticos dos produtores independentes neste desafio que devia ser, na minha opinião, permanente. Mas é raro, muito raro, ainda que se encontre entre linhas nesta indústria interativa. The Longing é um desses projetos, um título point and click, com uma estrutura idle, que desafia a noção de tempo e divertimento dentro de um videojogo – dois dos grandes alicerces desta nova arte.
The Longing quer quebrar todas as convenções do que é, na verdade, um videojogo, e ataca a pés juntos a paciência e dedicação dos jogadores: só assim podia elevar o seu conceito ao máximo. O título da Studio Seufz, que chegou recentemente à Nintendo Switch, coloca-nos no papel de um servo, intitulado Shade, que tem de esperar que o seu mestre, um gigante colossal, desperte do seu sono e recupere as suas energias para que possa continuar o seu reinado no subsolo. Para tal, o pequeno ser tem de esperar, em tempo real, durante 400 dias para acordar o rei adormecido. Até que esse momento chegue, terá de se entreter no reino escuro e esquecido onde habita sozinho. Durante 400 dias, poderá explorar todos os recantos do reino, desde as cavernas até às alas em mármore onde o tempo está estagnado, com as pequenas alterações a surgirem não só pelas suas ações, mas com a passagem natural dos dias – como um riacho que se enche de dia para dia.
Esta noção de tempo e de espera vai contra todos os alicerces do meio. Até os movimentos de Shade são lentos e lânguidos, contrastando com a espera em tempo real. Não é um jogo que peguemos para jogar um pouco ou para nos divertirmos, mas sim para termos uma experiência invulgar, onde sentimos cada um dos passos da personagem. The Longing quer que aprendamos a ter calma, a absorver o seu ambiente e a criarmos uma relação com Shade que seria impossível sem este foco no tempo. Não existe fast travel, veículos ou outros acessórios que vos permitem contornar a espera: tal como Shade, vocês também estão fechados no mundo abandonado.
Na minha opinião, não interessam os vários finais ou opções que encontram na vossa aventura, mas sim a forma como se relacionam com esta personagem que espera devotamente pelo seu mestre, à medida que cresce e aprende mais sobre o mundo que o rodeia. Pequenos apontamentos, como a descoberta de livros e de outros elementos decorativos para o seu quarto, constroem assim uma maior humanidade num ser que, ao lado do seu mestre, poderia ser apenas mais um, mas na sua dedicação, em união com a espera intermitente dos próprios jogadores, recria-se como algo único e apenas seu. É uma análise psicológica que seria impossível de outra forma – não só da personagem, mas também do jogador que espera os 400 dias.
O crescimento de Shade está também associado à exploração e à vossa própria imaginação. Este reino no subsolo está dividido por várias áreas, algumas delas inacessíveis durante os primeiros dias, que escondem segredos, itens colecionáveis e trechos narrativos que pintam este quadro em movimento. É na sua exploração lenta que todos os elementos se conciliam para construir esta experiência sem igual. A caminhada é longa, mas existe sempre algo novo para descobrirem, seja um recurso precioso, para acenderem a fogueira, ou um simples papel onde Shade poderá desenhar e ter novas ideias no seu quotidiano. A progressão está, desta forma, sempre associada ao crescimento deste protagonista passivo, que evolui em trechos curtos de narrativa, mas cujo relacionamento com o jogador será permanente. A sua cave, por exemplo, começa por ser um lar frio, sem grandes elementos decorativos que representem Shade, mas à medida que exploram o reino encontram formas de a tornar mais acolhedora, melhorando assim a vida e o bem-estar da vossa personagem.
A variedade de cenários é enaltecida pela arte de The Longing, pelas suas texturas e cores pastel que criam uma proximidade aos jogadores sem nunca perder o seu lado mais místico, como se tratasse de um livro antigo e perdido no tempo. O mesmo pode ser dito da banda sonora – a cargo de Lord Redstone, Spectral Kingdom, Erdstall, Dungeontroll e Vindkaldr –, que se mune de tonalidades eletrónicas, de sintetizadores e de instrumentos de cordas para dar vida a este mundo estagnado, mas igualmente belo. É uma experiência etérea, tão quente como distante, onde a banda sonora faz respirar a lentidão do progresso e do caminhar deste servo emprisionado.
É, no entanto, difícil analisar e recomendar The Longing. É um jogo que depende de uma experiência muito pessoal, singular e que nasce exatamente do tempo que passam com ele. É um jogo em idle, o que significa que o tempo não para até quando estão afastados, mas as recompensas são morosas, muito espaçadas e contraproducentes para o que o género costuma oferecer. Existe uma satisfação diferente nas pequenas conquistas, há um valor mais emocional e pessoal do que sentir uma barra de progresso a aumentar. É a antítese de um videojogo e eu adoro-o por isso.
Foi desafiante aprender a lidar com o tempo, com a lentidão e com a necessidade de me embrenhar num mundo vazio, mas igualmente convidativo pelo seu mistério. O seu sistema point and click é uma mais-valia para as horas que passamos no jogo e, graças ao ecrã tátil da Nintendo Switch, é muito mais fácil navegar pelos cenários. Mas vão continuar a sentir todos os segundos que passarem em The Longing.
Andrei Tarvosky, o famoso realizador russo – que nos trouxe obras como Stalker e The Mirror – defendia que o cinema era tempo. Para ele, era na manipulação do tempo, na duração de um filme ou plano, que nascia a alma do cinema: o elemento que o tornava único em comparação a outras artes. A Studio Seufz não partiu com a mesma intenção de moldar os videojogos ao tempo, focando-se antes em lendas nórdicas, como o poema Kyffhäuser Mountains Barbarossa (de Friedrich Rückert), para recriar este mundo fantástico, mas The Longing é uma das maiores e mais mordazes recriações deste ideal de Tarvosky na indústria. Para um projeto de estreia, é impressionante encontrar uma ideia tão forte e tão bem conceptualizada dentro do seu conceito como The Longing.
Apesar de fazer algumas batotices, como a possibilidade de acelerarem o tempo na cave de Shade – que requer que encontrem mais elementos decorativos –, a verdade é que a ideia está lá, sempre viva e bem desenvolvida. Existem poucos jogos como The Longing.
Disponível para: PC e Nintendo Switch
Jogado na Nintendo Switch
Cópia para análise cedida pela Ash Games.