Deadcraft – Parte Humano, Parte Zombie, Todo Carpinteiro

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Uma tentativa interessante de construir uma campanha mais linear e narrativa num género tão emergente como o de sobrevivência, que nem sempre funciona.

O género de sobrevivência não precisa de apresentações. Depois de um pico de popularidade, não preciso de vos explicar o que é, como funciona e qual é o tipo de experiência que procura proporcionar a um tipo de jogador muito específico. Basta lerem “sobrevivência”, sem o terror como prefixo, para compreenderem que um videojogo deste género predispõe-se a uma campanha assente na recolha de recursos, na criação de armas e equipamentos, na luta contra uma força inimiga muito intimidante e na construção de bases numa campanha maioritariamente a solo. Um verdadeiro “homem contra a natureza”, sendo que podemos substituir “natureza” por uma panóplia de adversários, como “zombies”, “humanos”, “orcs”, “tubarões”, entre outros. As mecânicas podem variar entre jogos, ora encontramos um foco na exploração, ora na construção de bases e no combate, mas o ADN mantém-se muito consistente de jogo para jogo e Deadcraft, da First Studio, segue o mesmo modelo. A diferença é que este novo jogo de sobrevivência, que se foca num mundo pós-apocalíptico, marcado por mortos-vivos e gangues saídos diretamente da mente de George Miller, aposta numa narrativa mais presente e em designs mais próximos dos RPG de ação japoneses.

O foco na narrativa será refrescante para aqueles que procuram uma maior consistência no desenvolvimento do mundo e das personagens destas demandas de sobrevivência. Deadcraft procura colmatar essa falha ao forçar o género a conciliar as suas mecânicas emergentes com uma narrativa mais clássica, assente num protagonista, Reid, e na sua busca por vingança. Reid não é um herói tradicional, muito menos para o género de sobrevivência, e em vez de ser um homem solitário num ambiente inóspito, ele é o elemento disruptivo de uma realidade à beira do fim. Reid é meio-humano, meio-zombie, vítima de experiências que alteraram a sua biologia para sempre, com o seu braço esquerdo a ser agora uma verdadeira monstruosidade que o coloca entre a vida e a morte. Para conseguir a sua vingança, Reid precisa de ajuda, de reconstruir o seu armamento e tentar chegar uma vez a Necron, o grande vilão de Deadcraft, e para tal, é necessário completar várias missões e ajudar os habitantes de Ark enquanto faz escolhas narrativas e luta contra o relógio.

A estrutura é muito mais linear do que seria de esperar, apesar de existir alguma liberdade na forma como evoluímos as habilidades de Reid. Deadcraft surge assim como uma boa porta de entrada para um género muito desafiante e nem sempre justo, ao permitir que sigam uma narrativa consistente que se constrói muito pelas suas personagens. Com a demanda de Reid no centro da aventura, conhecemos melhor o mundo de Deadcraft e as suas mecânicas, com cada missão a introduzir novas funcionalidades e adversários à medida que o nosso leque de habilidades e opções de construção aumentam significativamente. É uma boa forma de simplificar a experiência dos jogos de sobrevivência sem perder a sua essência, que continua a depender da gestão do bem-estar de Reid, desde a sua alimentação até à sua sede, mas também da energia que tem para realizar determinadas ações.

Deadcraft transporta a fórmula mágica dos jogos de sobrevivência não só para um futuro distópico, mas também para uma perspetiva que raramente vemos em experiências deste tipo. Não estamos perante mais um jogo de ação na primeira pessoa, mas sim numa aventura top-down, com Deadcraft a assumir-se como o elo perdido entre 7 Days to Die e Diablo III, à semelhança do que vimos em How to Survive 2, construindo a sua campanha como um RPG de ação, cujo foco mantém-se na recolha de recursos e no combate rápido contra hordas de inimigos, onde a gestão da energia é tão importante como o poder de ataque de Reid. Com uma perspetiva top-down, temos um maior contacto com as personagens, com Reid a ganhar maior destaque, e o jogo consegue esconder melhor algumas das imperfeições do motor de jogo, que está longe de ser visualmente marcante ou até interessante. A perspetiva traz-nos uma experiência mais familiar e até mais intuitiva para aqueles que não estão habituados ao género de sobrevivência, servindo de complemento para o foco narrativo que encontramos ao longo da campanha.

A nível mecânico, as surpresas são poucas e Deadcraft faz questão de simplificar ao máximo as suas funcionalidades. A evolução de Reid é próxima à de um RPG, com uma árvore de habilidades com várias categorias – com os pontos de experiência a surgirem através de cada ação realizada e da conclusão das missões principais e secundárias -, o combate é muito direto e focado entre armas de curto e longo alcance, e as missões focam-se maioritariamente na recolha de recursos ou na eliminação de membros de gangues rivais. A construção surge como a cola que une todos estes elementos, pois permite que possam construir novas armas, mas também opções que expandem o vosso acampamento. Se Reid começa só com uma cama onde passa as suas noites, rapidamente desbloqueia a possibilidade de construir uma fogueira, uma mesa de crafting, um campo de cultivo e até barracas, entre outras opções. É uma fórmula viciante porque sentimos que estamos sempre a evoluir e a expandir o nosso reportório de mecânicas e opções de personalização, onde cada ação tem repercussões claras na progressão da campanha.

Deadcraft também tenta recriar um ambiente mais familiar e humano através das várias cidades e acampamentos que encontramos, mas nem sempre é eficaz no seu retrato. Temos um leque de personagens interativas, mas também NPC que pouco fazem ou adicionam ao ambiente do jogo, e Deadcraft tenta constantemente criar um mundo supostamente vivido. Esta tentativa levou à implementação de um sistema de conduta dentro dos acampamentos, com Reid a ser julgado ou preso se cometer vários crimes. Deadcraft dá-nos a possibilidade de assaltar e intimidar qualquer NPC, mas controla as nossas ações ao permitir que sejamos julgados, uma troca interessante que, infelizmente, pode nunca ser sentida ao longo da campanha. São raros os momentos em que nos sentimos desesperados o suficiente para roubar alguém, o que retira muita da força que esta funcionalidade poderia ter. Encontramos regularmente recursos, tal como água e comida, para injustificar a presença desta opção, mas ao menos está presente e podem divertir-se a serem o pior humano à face da terra.

Talvez seja errado apelidar Reid de humano, visto que parte do seu corpo está infetada e transformada. O facto de ser um híbrido, algo raro no mundo de Deadcraft, surge felizmente como um epicentro mecânico para a sua experiência de sobrevivência, que é aproveitada ao longo da campanha e não apenas apresentada e rapidamente abandonada depois de umas horas. Não só Reid tem acesso a habilidades sobre-humanas, como é capaz de comandar outros zombies e ordená-los a realizar tarefas ou a atacarem inimigos em combate. Esta gestão de mortos vivos dá alguma personalidade a Deadcraft e ajuda-o a destacar-se entre tantos outros títulos do género, mas não se entusiasmem muito com as possibilidades que possam encontrar no jogo. A sua utilização em combate é limitada e o seu desbloqueio está restrito à mesma recolha e procura por recursos que se poderá tornar cansativa à medida que a campanha se torna mais exigente.

Felizmente, a Marvelous procurou explorar mais esta vertente híbrida do nosso protagonista ao obrigar-nos a controlar as suas duas personalidades. Se temos a tradicional gestão da fome e sede de Reid, como vemos em tantos outros jogos, aqui também temos o controlo das habilidades zombies. No canto superior esquerdo, mesmo ao lado da barra de energia e saúde, temos a representação visual do estado de Reid, se este se encontra mais próximo da sua humanidade ou do seu lado mais zombificado. Não existe propriamente um estado de derrota associado ao equilíbrio entre as duas partes, mas podemos influenciar os atributos de Reid ao escolhermos qual das suas personalidades decidimos alimentar. Se Reid estivermos mais próximo do lado humano, a sua saúde diminui, mas a energia aumenta e o nosso protagonista é capaz de falar com outras personagens e interagir com a história sem quaisquer problemas. Se Reid assumir a sua condição como zombie, a sua saúde aumenta, tal como os seus poderes, mas deixa de conseguir falar com as outras personagens. Esta gestão é controlada pelos alimentos que consumimos, com o lado zombie a ser alimentado por alimentados transformados ou contaminados com o vírus. O problema, no entanto, é que é muito fácil controlar ambas as partes e aproveitar os seus benefícios sempre que queiramos, visto que temos sempre acesso a todos os recursos que nos permitem influenciar esta balança biológica.

Deadcraft é uma abordagem clássica e narrativa ao género de sobrevivência, aproximando-se mais de um RPG de ação do que à experiência solitário e até assustadora de títulos como 7 Days to Die e The Forest. Esta aproximação à narrativa ajuda a criar uma campanha mais acessível e assente na agência da personalidade, tal como no desenvolvimento deste mundo povoado por zombies, mas perde o lado experimental, emergente e desafiante que associamos ao género. Deadcraft chega a ser demasiado fácil devido à quantidade de recursos e opções que oferece aos jogadores, condicionando a progressão não através de obstáculos mais significativos, mas dos atributos de Reid, que nos obriga constantemente a parar para beber água, comer qualquer coisa ou dormir quando a energia chega a zero.

É o normal num jogo de sobrevivência, mas Deadcraft abusa nas suas métricas, até porque quer exigir que apostemos no desbloqueio de habilidades que ajudam a cortar os tempos de espera. Não é fantástico, mas é divertido o suficiente para experimentarem e conhecerem o seu mundo de zombies.

Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Decibel PR.

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