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A série A Quiet Place, criada por John Krasinski, estreia-se no mundo dos videojogos com uma história pessoal, algumas boas ideias, mas com os mesmos problemas de consistência e lógica que tanto afetam os filmes.

Das atuais franquias de terror, acredito que A Quiet Place, criado por John Krasinski para o cinema – e que agora se expande como transmidia com o lançamento de A Quiet Place: The Road Ahead –, seja a série que mais necessite de uma entrega total às suas contradições para funcionar sem desvirtuar o seu conceito, rivalizada apenas por Smile e o seu demónico parasítico. São exemplos do que acontece quando o conceito suplanta a forma e a lógica narrativa para que possa fazer o mínimo sentido dentro do universo estabelecido. No mundo de A Quiet Place, o planeta Terra foi invadido por criaturas alienígenas dotadas de uma audição perfeita, onde a mais pequena frequência é capaz de despoletar o ataque dos seres quadrúpedes sem hesitação. Apesar de não serem dotadas de uma inteligência que vá além da sobrevivência – cuja natureza ainda não foi bem explorada nos filmes, deixando muito ao acaso e à especulação do público –, a sua sensibilidade auditiva é o contraposto perfeito para a nossa realidade progressivamente mais ruidosa. Como pode a Humanidade coexistir em pleno silêncio, longe dos aparelhos eletrónicos que tanto marcam as nossas vidas, cuja interação não pode ir além de sussurros ou linguagem gestual? Assim se constrói A Quiet Place.

A natureza das criaturas e a sua sensibilidade aos sons, tal como a sua feracidade quando localizam um novo som, são os elementos que separam os fãs de A Quiet Place dos seus maiores críticos. Podemos ignorar facilmente o dramatismo que envolve o núcleo familiar dos Abbott, cujo falecimento do filho mais novo quebrou por completo a sua união até ali imbatível, e até é possível desculpar a ausência propositada de regras no que toca ao funcionamento do mundo em A Quiet Place, mas a metodologia dos alienígenas e a sua audição é o momento de quebra: ou se aceita ou não se aceita. É por esse motivo que nunca compreendi o que levou tantos espetadores às salas ao ponto de A Quiet Place ter expandido ao formato de série através de uma sequela e uma prequela, lançada ainda este ano, porque as regras nunca me fizeram sentido. Afinal o que é permitido em A Quiet Place? O que é um som perigoso e que elementos são capazes de absorver eficazmente os sons para que os nossos protagonistas possam gozar de uma certa normalidade quotidiana? Fora a utilização da água, nomeadamente cascatas, como abafadores do som, as regras apenas pareciam funcionar quando o realizador/guionista assim necessitava.

No entanto, a estreia de A Quiet Place nos videojogos não é uma surpresa. As criaturas alienígenas e a sua sensibilidade aos sons pareciam estar destinadas à adaptação ao formato interativo, encaixando-se perfeitamente ao género de terror de sobrevivência onde a furtividade é a única arma contra inimigos indestrutíveis e um único erro é o que basta para sermos descobertos e eliminados. Arrisco-me a dizer que a falta de consistência na construção deste mundo e no comportamento dos monstros são mais facilmente desculpáveis e digeríveis quando temos um comando em mãos. A tensão é mais palpável e não podemos descurar os efeitos psicológicos que despertam assim que compreendemos que somos nós numa situação de vida ou morte, onde são os nossos erros – e não os erros de personagens que estão separadas de nós por um ecrã imutável – que ditam o desenrolar da ação. Mas tal como os seus semelhantes cinematográficos, A Quiet Place: The Road Ahead é sufocado pelo mundo e regras que herda, obrigado a aceitar clichés e sequências de ação que nem sempre funcionam, acabando por ser vítima da sua dependência ao drama forçado e à dinâmica familiar; mas ao contrário do cinema, a indústria dos videojogos é muito mais impaciente e o que parecia ser uma adaptação lógica de um novo meio narrativo para a série, acaba por ser antes a revelação dos seus problemas mais íntimos.

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A Quiet Place: The Road Ahead (Stormind Games)

A Quiet Place: A Road Ahead segue a história de Alex, uma jovem sobrevivente na pós-invasão alienígena. Alex vive com o seu pai numa comunidade fechada, quase autoritária, que luta contra a falta constante de recursos num mundo apocalíptico. Para garantir a sobrevivência da comunidade, Alex e os restantes membros têm de se aventurar pelas regiões mais próximas ao hospital, o que significa lidar com a presença constante dos alienígenas. Um só ruído poderá ditar a morte de Alex e dos seus entes queridos. É durante uma destas excursões que Alex descobre que está grávida, um eco premeditado e quase estratégico ao primeiro filme da saga, quebrando por completo a sua já frágil realidade quotidiana. Evitando alguns spoilers, apesar de serem previsíveis e nem sempre a surpresa que a Stormind Games julga que sejam, Alex é obrigada a fugir da sua comunidade e a encontrar uma nova segurança para o seu filho ainda por nascer, onde a pressão da sobrevivência colide com os receios da maternidade.

A criação de John Krasinski estreia-se nos videojogos como um jogo de terror e aventura na primeira pessoa, semelhante a títulos como Call of Cthulhu e SOMA. A campanha divide-se por zonas principais extensas que constroem a viagem de Alex à procura de uma nova comunidade enquanto foge ao seu passado e às criaturas que ainda a caçam. Os níveis são fechados, repletos de colecionáveis e recursos, onde a linearidade é soberana, apenas quebrada pelo ocasional caminho secundário que reserva aos mais curiosos documentos ou itens que aprofundam a história de fundo de A Quiet Place e dos seus protagonistas. As sequências de exploração são limitadas e quase sempre condicionadas pela furtividade, com os cenários a apresentarem perigos elementais que obrigam a uma maior leitura do espaço e a descoberta de caminhos que nos permitam evitar os alienígenas. É um jogo furtivo que quebra a sua fórmula com momentos de exploração e o ocasional puzzle lógico, que se limita à descoberta da chave certa ou da placa que está algures escondida no nível para passarmos à próxima fase.

A estrutura é familiar, mas The Road Ahead mune-se do elemento mais emblemático da série A Quiet Place: o som. Tal como nos filmes, é imperativo evitar qualquer som mais agudo que possa atrair a atenção das criaturas. Então navegamos pelos cenários a um ritmo lento, sempre sobre os caminhos de areia que outros sobreviventes traçaram pelos exteriores e interiores para absorver o som dos passos, sempre desafios pelos elementos e objetos decorativos que estão posicionados à espera que nos desleixemos. Em The Road Ahead, uma poça de água é tão perigosa como uma das criaturas, tal como a gravilha, os vidros quebrados, as folhas secas ou então as latas e pedras que decoram os caminhos lineares do jogo. Podemos controlar a velocidade de Alex, mas também das suas ações, como abrir e fechar portas, puxar e mover objetos, subir e descer por janelas ou estruturas: tudo pode originar ruído. Então movemo-nos devagar, destrancamos as portas fechadas sob tensão e tentamos manter a calma perante qualquer desafio que tenhamos pela frente.

A sensibilidade auditiva das criaturas já é suficientemente ambígua e abstrata no cinema, e tal não deveria acontecer na sua adaptação a videojogo – os resultados não são sempre positivos e existem inconsistências nas reações dos alienígenas, como seria de esperar –, mas a Stormind Games deu o seu melhor para traduzir este elemento narrativo a uma ferramenta mecânica. Desta forma, temos o phonometer, um aparelho que nos permite captar o som à nossa volta. Através do phonometer, um dispositivo que Alex utiliza na sua mão esquerda e que pode ser ativado sempre que queiramos, The Road Ahead define o limite sonoro permitido numa determinada zona. Se passarmos esse limite, representado pela barra azul, e o volume chegar ao vermelho, as criaturas atacam naquele que é um estado quase automático de Game Over. A campanha é dividida entre a furtividade e o controlo do som, sempre de olhos no phonometer para certificarmo-nos que não estão a ser demasiado descuidados.

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A Quiet Place: The Road Ahead (Stormind Games)

O aparelho é uma escolha acertada e é um mecanismo eficaz na construção da tensão porque vemos em tempo real os ruídos que fazemos. A Stormind Games tentou exponenciar esta ferramenta através da utilização do microfone interno do DualSense, à semelhança do que Alien Isolation já havia feito – e até Evil Below, o jogo português lançado em 2022 para PC e as consolas PlayStation –, onde um ruído real será traduzido para o jogo. Se fizermos barulho com o comando, as criaturas respondem. Qual é o efeito realístico deste gimmick? Sons de aviso constantes e pouco mais. Uma escolha que não considero prático e muito menos eficaz naquilo que se propõe a dar aos jogadores: muito à semelhança do sistema de furtividade de The Road Ahead.

Outra mecânica que funciona tematicamente em The Road Ahead, mas nem sempre na jogabilidade é a asma de Alex. As ações da protagonista não só têm um efeito positivo ou negativo devido ao som. Cada ação tem efeitos negativos na respiração de Alex e na sua resistência, agravando-se exponencialmente se não utilizarmos uma das bombas para a asma. Se subirmos uma janela, carregarmos uma placa de madeira, se inalarmos demasiado pó ou se estivermos frente a frente com as criaturas, a respiração de Alex piora até que ela deixa de conseguir avançar. O ataque de asma transforma-se num ataque de pânico se não gerirmos a sua respiração. Se chegarmos ao ponto mais baixo, despoletamos um QTE que nos permite acalmar Alex. Se acertarmos no timing correto, Alex acalma-se. Se não acertarmos, ela fica ainda mais ansiosa e a sua respiração chamará a atenção das criaturas. Um sistema funcional que peca por se tornar cansativo devido às ações constantes e à irregularidade nos comportamentos das criaturas, eliminando o impacto mecânico e emocional da condição física ao ponto de perder o seu significado na jogabilidade.

The Road Ahead é um jogo de equilibrismo, sempre preso ao IP. A necessidade de termos uma experiência furtiva, onde o som é o nosso maior inimigo, condicionou o design dos níveis e obrigou a Stormind Games a depender de uma estrutura mais linear e previsível. The Road Ahead é cansativo e a sua narrativa, à semelhança dos filmes, rege-se demasiado pelo drama forçado e nem sempre pelos momentos merecidos de crescimento pessoal e tensão. Então ficamos com um jogo previsível de furtividade, cujos desafios procuram um equilíbrio entre a presença das criaturas, o controlo da asma e a descoberta de chaves ou utensílios que nos permitam avançar para a próxima zona de interessa. Não vemos uma expansão do mundo de A Quiet Place e sentimos mais as restrições constantes em manter a experiência o mais centrada neste episódio singular do que o oposto, o que é uma pena. Para os fãs, este jogo talvez seja a concretização de um desejo há muito esperado, já que os filmes demonstram o que parecem ser sistemas ideais para um jogo de terror, mas para quem não tem uma ligação emocional aos três filmes, a estreia de A Quiet Place nos videojogos não é mais do que um jogo de terror previsível, pouco assustador e quase sempre repetitivo nos desafios que apresenta e na estrutura da campanha. Apesar dos saltos para o passado e as tentativas em contar a história de Alex através de diferentes perspetivas temporais, pouco é memorável, apenas funcional. A Quiet Place: No Road Home está longe de ser um mau jogo, mas tem poucos motivos para investirmos na sua campanha.

Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Honest PR.

João Canelo
João Canelo
Crítico de videojogos, Guionista, Professor e o responsável pelo melhor mortal nas aulas de Educação Física em 2002. Um aficionado por jogos peculiares.
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