Dreams of Another – Review: Um Sonho de Balas e Memórias

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Com uma abordagem minimalista, mas igualmente filosófica, Dreams of Another, o novo projeto de Baiyon (PixelJunk Eden) poderá ser um dos lançamentos mais divisivos do ano e também um dos mais inesquecíveis.

Para Pablo Picasso, qualquer ato criativo exige destruição. A criação é um processo de transformação, onde um objeto é trabalhado até ganhar uma nova forma. Nesse processo, o que poderia ser considerado como um objeto mundano, igual a tantos outros, transforma-se assim numa obra de arte. O mármore, a tela, a tinta e a película desaparecem neste processo e dão lugar a algo novo, único e até pessoal. O que perdura é a destruição do objeto original, ao ponto de conseguir existir enquanto obra independente do processo que a criou.

Com Dreams of Another, Baiyon procura retratar este processo de destruição e criação através de um meio interativo. Esta é uma escolha única, desafiante e filosófica que brinca com as mecânicas e sistemas que tanto associamos aos videojogos para criar uma experiência diferente, mais humana e tematicamente desafiante. O surrealismo de Dreams of Another e dos seus trechos narrativos, às vezes desconexos, não procura uma abordagem acessível, nem sempre preocupado em encaminhar os jogadores ao longo da sua narrativa desconexa, mas a emoção nunca se dissipa e com o tempo, as histórias tornam-se reconhecíveis. Os fragmentos ganham ordem, as pequenas histórias assumem um rumo temático e o que era um mundo aparentemente absurdista, pintado como se fosse uma pintura pontilhista, transforma-se numa história pessoal sobre a relação entre o artista e a sua arte.

O que acho fascinante em Dreams of Another é a sua determinação em assumir-se como um objeto artístico num meio interativo ao apropriar-se de convenções mecânicas para dar aos jogadores uma experiência mais familiar. O que poderia ser apenas um jogo narrativo com momentos de exploração, focado quase exclusivamente na beleza surreal e abstrata de um mundo tecido por sonhos, constrói-se aqui como um paralelismo entre a identidade dos videojogos enquanto peças artísticas e a forma como jogamos. Desde a sua conceção que os videojogos nos colocam atrás de veículos armados ou então com uma arma na mão, prontos para disparar, eliminar e destruir. O processo de disparar é-nos natural e existe uma desassociação entre a realidade e o virtual que nasce desta longa relação com os videojogos. Então Dreams of Another abraça essa desassociação e questiona-nos sobre o valor de uma bala, sobre o ato de disparar e sobre a nossa própria relação com a arma virtual que pensamos controlar.

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Dreams of Another (Q-Games)

O processo de destruição é assim invertido em Dreams of Another e reapropriado para criar. O nosso Homem de Pijamas, ou o sonhador, se preferirem, viaja entre mundos sempre com a sua metralhadora nas costas e até tem acesso a novas armas e granadas para o auxiliar na exploração. No entanto, não existem inimigos. Não temos de eliminar ciborgues do futuro, soldados de outra fação ou goblins assassinos que estão a invadir os nossos sonhos. A nossa arma serve apenas para dar vida aos cenários, para desbravar a confusão dos sonhos e materializar estes conceitos na nossa própria mente enquanto tentamos perceber onde estamos e com quem devemos interagir. A arma transforma-se num pincel de metal ou então num martelo mágico que serve para concertar os cenários, objetos e personagens que estavam a perder a sua forma.

A exploração só é possível através do disparo. A progressão narrativa, a descoberta de novas personagens, os objetos que partilham os seus pensamentos connosco e até os colecionáveis só se materializam se dispararmos sobre eles. É uma dissonância temática e motora tão forte que o ato de apontar e depois pressionar o gatilho transforma-se à medida que desbravamos o mundo de Dreams of Another. Este processo de descoberta é eficaz e é mecanicamente satisfatório porque somos constantemente recompensados pelas nossas ações – os cenários ganham forma, os caminhos tornam-se acessíveis, as personagens recuperam a sua voz. No entanto, não somos pintores, escultores ou até realizadores que utilizam um pincel, martelo ou câmara para dar vida a estes mundos virtuais. Nós somos, como em tantos outros videojogos, um ser humano que se vê perante uma realidade desconhecida, onde o seu poder é disparar e procurar ordem e significado neste ato de violência.

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Dreams of Another (Q-Games)

Talvez seja esta subordinação ao conceito que torna Dreams of Another numa vítima das suas próprias intenções. Apesar de adaptar e confrontar mecânicas que damos como garantidas, e procurar reinterpretá-las sobre o conceito de criação artística, Baiyon ignorou o impacto psicológico da gamificação. O ato de disparar continua a ser divertido, talvez propositadamente, mas inseparável das décadas de experiência em cenários de guerra virtuais, espaciais ou mais realistas na sua abordagem, que são partilhadas por milhões de jogadores anualmente. A intenção pode ser dar aos jogadores a possibilidade de separarem o ato de disparar da sua intenção violenta, incutindo-lhe uma natureza mais criativa e pacifista, mas o ato em si continua a ser o mesmo e a diversão é inseparável da experiência. Então Dreams of Another corre o risco de perder os jogadores devido à sua jogabilidade, onde alguns poderão ficar presos à vontade de materializar os cenários devido à satisfação visual e tátil desse processo – é fascinante ver as bolhas coloridas a ganharem forma e o cenário a materializar-se devido à nossa ação – e pouco interessados sobre as questões filosóficas que nascem devido à nossa interação com objetos inanimados, que contam as suas histórias e partilham pensamentos, ou sobre os efeitos dessas mesmas ações na forma como percecionamos o que é um videojogo.

Esta dissonância talvez seja propositada e Baiyon ambicione o caos antes da reflexão. Como qualquer peça de arte, é preciso que Dreams of Another seja desafiante, nem sempre passivo, dificultando não só a sua mensagem e propósito, como capaz de abraçar estas particularidades do meio em que se insere. Para Baiyon, ambas as experiências, a filosófica e a mecânica, são ambas válidas na forma como abordam a narrativa de Dreams of Another, ainda que sinta pessoalmente que faltou ser-se ainda mais arrojado neste processo de desconstrução e reconstrução do que é um sonho e do que é um videojogo em igual medida. Mesmo que não concordemos com a sua abordagem, Baiyon quer que pensemos sobre estes temas e discrepâncias de design, onde interagimos com o mundo através do cano de uma arma, mas também ouvimos as histórias de uma toupeira que foi obrigada a abandonar o seu berço, um soldado que se vê incapaz de disparar até mesmo numa situação de vida ou morte ou quando somos questionados sobre o valor de um objeto quebrado. Dreams of Another desafia-nos assim, sorrateiramente, um pouco de cada vez, introduzindo novas ideias enquanto disparamos contra as bolhas de tinta. Entre disparos, a mensagem fica connosco e pensamos mais ponderadamente sobre o motivo pelo qual “podemos deitar fora algo que ainda é funcional e que retém o seu valor” e somos incapazes de “nos livramos de um objeto quebrado, sem remendo, só porque tem um valor emocional enorme”. Enquanto pensamos, o Homem de Pijama dispara contra tudo, materializa o que pode e até participa em batalhas contra bosses, que o são até na sua forma – ao ponto de terem pontos de fraqueza de temos de acertar para vencermos.

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Dreams of Another (Q-Games)

Não consigo abandonar a ideia que me escapou muito do simbolismo de Dreams of Another, talvez por me prender às convenções dos videojogos na sua forma e apresentação, mas apreciei imenso a forma arrojada com que Baiyon decidiu abraçar o conceito de criação e destruição, relevância e protecionismo, arte e realidade sem nunca abandonar as mecânicas que movem estas experiências interativas. É uma escolha peculiar que talvez não mereça ser tão dissecada como eu queria, antes sentida e experienciada sem condicionantes – e podemos compreender isso até pela inclusão de um modo VR-, mas fica também uma sensação de ausência e de falha de comunicação plena que me manteve afastado de Dreams of Another à medida que a história avançava e se moldava. Não aprecio a tutela de “não é um jogo para todos”, mas Dreams of Another é certamente uma experiência muito subjetiva que dependerá da forma como decidirem abraçar a sua jogabilidade e a mensagem que nasce desta relação entre arte e destruição.

Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Pirate PR.

João Canelo
João Canelo
Crítico de videojogos, Guionista, Professor e o responsável pelo melhor mortal nas aulas de Educação Física em 2002. Um aficionado por jogos peculiares.
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