Troleu – Review: Um bilhete de ida para o caos

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Sem se livrar de alguns problemas de dificuldade e repetição, Troleu é o tipo de videojogo que comprova que tudo pode ser adaptado a uma experiência interativa, desde que exista uma ideia e visão fortes.

Por mais que possamos escrever sobre a indústria dos videojogos e a sua direção ultra-capitalista, onde os orçamentos e preços crescem, mas os estúdios pouco produzem e inovam, é preciso elogiar em igual medida as produções independentes. Não se trata apenas de fazer uma comparação facilitista, de “bons contra os maus”, como muitos adoram pregar em textos que sabem todos ao mesmo, mas antes perceber onde está o fator diferenciador entre as duas faces da indústria dos videojogos. O que importa aqui é perceber que um estúdio AAA está limitado pelo mercado, pelas vontades dos CEO, até pelas modas da indústria, dos jogadores e dos serviços digitais. Um sistema corporativo onde uma ideia pode ficar para sempre perdida apenas porque não é comercialmente viável, abafada muito antes de ser concretizada e de se perceber o seu potencial – e assim o disse o diretor criativo de Hell is Us, Jonathan Jacques-Belletête, no podcast Friends per Second. Um estúdio independente não se rege pelas mesmas regras, ainda que o orçamento e a rentabilidade sejam os mesmos monstros papões que seriam para qualquer outro estúdio. Se alguém sonha em fazer um jogo sobre um revisor de trólei (autocarro elétrico, se preferirem), esse projeto, se o dinheiro não falhar, acontecerá a seu tempo. Esta é a diferença.

Claro que estou a simplificar um enorme problema que merece uma discussão séria e adulta sobre a direção de uma indústria que está a perder o seu encanto enquanto se torna mais rentável e previsível. Não quero relativizar questões que são pertinentes e que podem moldar a próxima geração através de más práticas de produção e na gestão de equipas enquanto o mercado consome quem não tem milhões e milhões de euros no bolso para fazer sempre o mesmo jogo, mas é preciso conhecer as origens de Troleu e sublinhar como não seria possível produzir este jogo – bom ou mau, ainda não importa para a questão – em qualquer outro cenário económico no monstro que é a indústria dos videojogos. Com ou sem relatividade, com ou sem comentário social, a verdade é que Troleu nasceu dos sonhos da andrground, materializou-se e teve a audácia de existir sobre uma ideia que podia ser descartada por tantos outros criativos e apagada para sempre da história. Contra todas as adversidades, Troleu está aqui, quase como uma ameaça para todos aqueles que mal conhecem as verdadeiras entranhas da indústria que tanto julgam conhecer.

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Troleu (andrground)

Quero também que tenham consciência que o tom quase apoteótico que utilizei até aqui serve para introduzir um jogo que se foca numa única e exclusiva experiência, das mais mundanas, banais e quotidianas possíveis: a fiscalização de transportes públicos. Para alguns, a figura da autoridade, o revisor e pica que determina quem é expulso e quem levará uma multa avultada para quem viaja. Para outros, uma figura que representa um sistema que mais se preocupa a fiscalizar do que a proporcionar aos seus utilizadores um serviço melhor e à altura das suas exigências. O que poderá Troleu fazer de tão criativo e único com o simples ato de pedir bilhetes, verificar passes e garantir a manutenção de um trólei? A resposta é simples: anarquia total.

Em Troleu, nós somos um fiscal, um funcionário público, responsável pelo funcionamento do transporte em que trabalhamos. Entre rotas, que se dividem por várias paragens e trajetos únicos, temos a obrigatoriedade de gerir os passageiros que entram e garantir que todos têm bilhete ou um passe válido. Até ao final da viagem, esta é a nossa missão, zelar pelos passageiros, mas também pela rentabilidade do transporte público. As viagens seriam mais tranquilas se Troleu não existisse num universo paralelo onde tudo pode acontecer no interior de um veículo. Na verdade, as nossas responsabilidades não se resumem a passar bilhetes ou a verificar passes enquanto os passageiros entram e procuram por um lugar. Na nossa lista de tarefas, podemos também encontrar obrigações como “atirar os passageiros para fora do trólei”, limpar o chão, perfumar passageiros com maus odores corporais, lutar contra passageiros mal-humorados e até roubar pertences a quem tentou entrar sem pagar bilhete. Isto tudo enquanto o trólei segue a sua viagem, de paragem em paragem, enquanto a intensidade aumenta e um simples ato de vender um bilhete passa a ser uma luta contra o tempo.

Troleu vive no caos absoluto e quer apanhar-nos de surpresa. Durante as primeiras viagens, as tarefas são relativamente simples. Os passageiros entram e nós vendemos bilhetes ou então verificamos a fotografia e validade dos passes para garantir que está tudo em ordem. No entanto, estas ações não são automáticas, existe um leque de mecânicas e operações que temos de realizar para vender um único bilhete. O processo rege-se da seguinte forma: encontrar um passageiro, receber dinheiro, depois devolver manualmente o troco e finalmente entregar o bilhete vendido. Para tal, a ação fecha-se sobre um único passageiro e o nosso fiscal tem de aceder à sua bolsa para conseguir trocar moedas, dar bilhetes ou utilizar o multibanco. Estas são ações individuais e que requerem a combinação de tarefas enquanto o tempo passa, mais passageiros entram e o caso instala-se à medida que confrontos acontecem, roubos são perpetuados e o chão fica mais sujo e desconfortável.

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Troleu (andrground)

A gestão destas micro-tarefas é constantemente desafiada ao longo dos trajetos do trólei, não só pelos vários tipos de passageiros que entram – alguns temos de expulsar rapidamente, outros apresentam-se com passes e cartões de débito falsos -, mas também pela adição de imposições que mudam por completo a organização do transporte. Por exemplo, podemos ter o trólei com alguns idosos ou até jovens e o jogo decidir, entre paragens, que afinal não é rentável ter estes passageiros a bordo. Se não fizermos algo, seremos penalizados por cada um dos passageiros proibidos, o que poderá ditar o nosso fim. Sem dinheiro, não podemos comprar melhorias e bilhetes no mercado negro – sim, isto é um sistema no jogo – e se não alcançarmos o valor mínimo por rota, seremos obrigados a repetir a viagem. Então só temos uma solução: expulsar todos os passageiros proibidos. Mesmo que tenham pago, estes passageiros são pontapeados e depois atirados para a rua. Aliás, se querem usufruir de uma boa estratégia, obriguem as pessoas a pagar primeiro e depois atirem-nas para fora do trólei. Pensem como um verdadeiro capitalista em Troleu!

Apesar da aleatoriedade dos eventos e da constante gestão de tarefas, Troleu também se concentra na satisfação dos passageiros. Além do sistema de pontuação, pelo qual somos avaliados no final de cada percurso – numa pontuação já conhecida, de F a S, ainda que os parâmetros nem sempre sejam compreensíveis em campo devido à intensidade dos objetivos –, todas as nossas ações refletem-se no bem-estar dos passageiros. Se alguém é assaltado, se as luzes se apagam durante as carreiras noturnas – todos os níveis têm uma versão noturna e estas são ainda mais difíceis do que os percursos diurnos –, se o chão não é limpo ou se expulsamos alguém injustamente, o nível de insatisfação sobe, ao ponto de sermos alvo de uma fiscalização. O feitiço vira-se contra o feiticeiro e o destino do revisor fica nas mãos de outro colega, um verdadeiro tirano, que determina o número de bilhetes vendidos, se alguém entrou sem pagar ou se algum passageiro proibido ainda se encontra no interior do “autocarro”. Se o revisor determinar que não cumprimos o nosso dever, ele irá expulsar-nos e terminar ali a nossa viagem. Para escaparmos, temos de o derrotar ao atirarmos outros passageiros contra ele. Por isso, só temos duas opções: ou perdemos ou somos o pior revisor do mundo.

A intensidade dos níveis não demora a aumentar e é aqui que Troleu torna-se tão divertido, como exaustivo. Os níveis finais, que transportam o nosso trólei para o passado e até para o espaço, adicionam tantas tarefas adicionais que o simples e intuitivo ato de passar um bilhete ou expulsar um passageiro em incumprimento, fica enterrado sobre um enorme cansaço físico e mental. Um dos meus pontos de rutura foi uma combinação entre o nível pré-histórico, que nos obriga a expulsar constantemente insetos que perturbam outros passageiros, e a constante ameaça do revisor. Se a nossa prestação é negativa, aprecio a adição de um elemento penalizador, nem que seja para nos motivar a jogar melhor e a aprender as rotas e nuances do trólei, mas quando o revisor é capaz de terminar a nossa viagem automaticamente, a jogabilidade torna-se injusta. Mesmo que tudo esteja a correr bem, basta um deslize, um mau timing, e perdemos tudo. Nem sempre é fácil parar o revisor e isto cria a sensação de estarmos a lutar contra o jogo e não a tirar partido das suas mecânicas para ultrapassarmos um desafio inesperado.

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Troleu (andrground)

Troleu não é propriamente acessível, muito devido à gestão constante de tarefas e passageiros, sem falar na panóplia de objetivos aleatórios que são adicionados entre trajetos. O primeiro sinal deste caos controlado surge logo no terceiro nível, quando ficamos encarregues de uma linha rural, onde vários passageiros transportam comida, animais e bebidas para o trólei. A partir deste nível, é quase impossível abordar a jogabilidade com elegância porque precisamos ser meticulosos e abandonar quaisquer escrúpulos. O facto de termos de limpar o chão constantemente, usar perfume nos passageiros, controlar as entradas, parar o ruído de instrumentos musicais ou de colunas portáveis cria uma cacofonia de ações, efeitos e sons que podemos ficar facilmente perdidos dentro de um espaço tão claustrofóbico como um trólei.

Apesar destes problemas, Troleu funciona, muito por saber quando e como exagerar, e por apresentar um loop mecânico que combina muito bem com o género de ação e gestão. Pode não ser perfeito e talvez nem seja tão memorável como se esperava, mas Troleu é um símbolo como tantos outros projetos independentes, que demonstram que uma ideia pode ser mais do que apenas um sonho e ir além das exigências canibais da indústria: mesmo que seja, no final do dia, um jogo sobre o pior revisor do planeta.

Cópia para análise (PC) cedida pela Sandbox Strategies.

João Canelo
João Canelo
Crítico de videojogos, Guionista, Professor e o responsável pelo melhor mortal nas aulas de Educação Física em 2002. Um aficionado por jogos peculiares.
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