Americana – Review: A paixão de um western à procura de consistência

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Americana possui uma riqueza temática e personagens com arcos emocionalmente satisfatórios, interpretados por um elenco inspirado.

Preparar para assistir a um western contemporâneo é sempre um exercício de expetativa e de curiosidade. O género, tantas vezes revisitado, pode ser tanto um terreno fértil para a reinvenção como um campo minado de clichés. Tony Tost, na sua primeira longa-metragem como realizador e argumentista, parte desta premissa arriscada com Americana, um híbrido entre western moderno e thriller criminal, carregado de personagens peculiares e temas que abordam tradições antigas e atuais. Confesso que o meu estado de espírito era uma mistura de entusiasmo e desconfiança: o elenco prometia, as ideias soavam intrigantes, mas sabia que o risco de tropeçar no tom ou na estrutura era considerável.

A narrativa, dividida em cinco capítulos assinalados com os respetivos títulos, segue um conjunto de personagens que se cruzam através de um objeto central: a lendária Ghost Shirt Lakota, uma relíquia nativo-americana roubada e lançada no mercado negro. Penny Jo Poplin (Sydney Sweeney), uma tímida empregada com o sonho de ser cantora country, e Lefty Ledbetter (Paul Walter Hauser), um veterano de guerra de coração aberto, unem forças na tentativa de recuperar o artefacto. Pelo caminho, enfrentam figuras perigosas como Dillon (Eric Dane), um criminoso contratado para o roubo, ou Roy Lee Dean (Simon Rex), um negociante corrupto de objetos valiosos. Ao mesmo tempo, Mandy Starr (Halsey) luta por escapar de uma vida de violência e de um passado sufocante, enquanto o seu irmão mais novo, Cal (Gavin Maddox Bergman), acredita ser a reencarnação do líder indígena Sitting Bull, dedicando-se a devolver a Ghost Shirt ao povo Lakota. No meio destes cruzamentos, surge ainda Ghost Eye (Zahn McClarnon), líder de um movimento revolucionário indígena que confronta Cal com a apropriação cultural que o define.

Americana

A divisão em capítulos, ainda que visualmente clara, não acrescenta muito à experiência global. Tirando um pequeno desvio cronológico – o primeiro capítulo corresponde, na verdade, ao final do terceiro -, a estrutura parece servir apenas para introduzir novas personagens de forma mais assertiva. Pessoalmente, nunca fui fã deste recurso de começar uma história pelo seu clímax ou resolução, apenas para depois “voltar atrás” e explicar como lá se chegou. A maioria das obras não faz nada de interessante com este artifício, e Americana não é exceção: o efeito surpresa esgota-se rapidamente e, como o reencontro com a cena acontece pouco depois, o impacto narrativo é praticamente nulo. Aqui, a diferença – muito importante – está no facto de não se tratar da conclusão da obra, nem perto disso.

Mais interessante é o jogo de géneros que Tost propõe, mesmo que nem sempre resulte com igual eficácia. O equilíbrio entre drama, thriller e momentos de humor funciona na maior parte do tempo, mas há sequências que soam a desfasamento – como uma tribo indígena a ouvir hip-hop para simbolizar o afastamento das suas raízes. Estas tentativas de comentário social através de toques cómicos ou irónicos nem sempre assentam de forma orgânica. Ainda assim, Americana encontra uma harmonia surpreendente entre o peso das suas temáticas e a leveza que por vezes adota, mesmo que essa dualidade torne o final sombrio ainda mais desconcertante.

No coração da história está a reflexão sobre tradição – tanto a que limita como a que merece ser preservada. Cal, o jovem branco que se declara herdeiro espiritual de Sitting Bull porque cresceu a ver westerns na televisão, representa uma visão distorcida de identidade, uma procura desesperada de pertença que acaba por sublinhar a fragilidade da sua infância marcada por traumas. O confronto com Ghost Eye expõe esta ferida cultural, lembrando que a memória coletiva não pode ser reinventada ao sabor da imaginação de quem a observa de fora. Do outro lado, há a família Starr, dominada por um patriarcado grotesco que reduz as mulheres a objetos de submissão. Mandy, marcada por essa educação opressiva, tenta quebrar o ciclo e oferecer às irmãs uma vida diferente, lutando contra a herança de violência e misoginia.

Americana

Se Cal e Mandy representam duas faces da tradição – a apropriação inocente mas problemática e o legado opressor a ser destruído -, Penny Jo e Lefty encarnam o lado luminoso de Americana. A jovem sonhadora com uma gaguez que só desaparece quando canta encontra no veterano desajeitado, mas sincero, alguém disposto a acreditar nela. A química entre Sweeney e Hauser é palpável, carregada de ternura e autenticidade, trazendo ao filme uma energia calorosa que contrasta com a brutalidade que os rodeia. Sweeney, em particular, impressiona pela forma como traduz fragilidade em força, oscilando entre vulnerabilidade e coragem com naturalidade.

Este mosaico de personagens, cada uma com um arco bem delineado, sustenta a narrativa mais do que o próprio MacGuffin. A Ghost Shirt é importante como símbolo – da luta, da memória, do poder atribuído às tradições -, mas o que realmente prende o público são as histórias pessoais. Ainda que muitos destes arcos terminem de forma trágica, o impacto emocional é sentido, deixando uma marca mais duradoura do que o aparato de violência ou ação que conduz a história. Talvez por isso desejasse uma abordagem mais coesa e realista, sem tantos desvios tonais que atenuam a gravidade da conclusão.

Visualmente, Americana aposta numa estética de western contemporâneo que mistura cenários rurais com composições que evocam o legado clássico do género. Existe uma vontade clara de ligar o mito cinematográfico do Oeste com a realidade atual e, nisso, a cinematografia de Nigel Bluck (True Detective) e a música country de David Fleming (Superman) encontram o tom certo. O resultado é uma atmosfera que conjuga familiaridade e estranheza, onde tanto a iconografia do faroeste como os sinais da América moderna coexistem, mesmo que nem sempre em plena harmonia.

VEREDITO

Americana possui uma riqueza temática e personagens com arcos emocionalmente satisfatórios, interpretados por um elenco inspirado. É verdade que a narrativa perde impacto em escolhas estruturais discutíveis e numa fusão de géneros que, apesar de ambiciosa, nem sempre se concretiza, mas Tony Tost estreia-se com uma obra que revela paixão, identidade pessoal e uma clara ligação ao seu passado cultural. Com um pouco mais de consistência na execução, estaríamos facilmente perante um dos filmes mais memoráveis do ano.

Manuel São Bento
Manuel São Bentohttps://linktr.ee/msbreviews
Crítico português com uma enorme paixão pelo cinema, televisão e a arte de filmmaking. Uma perspetiva imparcial de alguém que parou de assistir a trailers desde 2017. Individualmente aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Portfolio: https://linktr.ee/msbreviews
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