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40 Acres é uma estreia impressionante de R.T. Thorne, que demonstra um belíssimo controlo tanto do lado técnico, como temático da obra.

Numa paisagem desolada, onde o mundo como o conhecemos já colapsou, uma família luta pela sobrevivência e pela preservação do seu legado. 40 Acres, marca a estreia na realização de longas-metragens de R.T. Thorne (Utopia Falls), co-escrita com Glenn Taylor, é um intenso drama distópico passado num futuro devastado por guerras e fomes. Hailey Freeman (Danielle Deadwyler, Till) é uma ex-soldada que lidera com mão de ferro a sua família numa quinta isolada no meio do nada, constantemente ameaçada por uma milícia que ambiciona roubar-lhe o seu precioso território, carregado de simbolismo histórico e pessoal. Ao lado de Deadwyler, encontramos Kataem O’Connor (Murdoch Mysteries), Michael Greyeyes (Wild Indian), Milcania Diaz-Rojas (The Bold Type), Leenah Robinson (1923) e Haile Amare.

Thorne imagina um futuro não tão distante, marcado por um colapso social generalizado, onde a ordem e a confiança se tornaram bens escassos. É neste contexto que 40 Acres se distingue – não só pela sua atmosfera tensa e, por vezes, claustrofóbica, mas sobretudo pela forma como insere questões profundamente enraizadas na história afro-americana e indígena da América do Norte. O título remete à promessa nunca cumprida feita pelo governo dos EUA em 1865, de oferecer 40 acres (cerca de 16 hectares) de terra e uma mula aos antigos escravos. Essa promessa falhada ecoa no centro da obra, funcionando como símbolo daquilo que foi negado a gerações e do que se tenta desesperadamente preservar num mundo em ruínas.

Deadwyler entrega mais uma performance absolutamente assombrosa. Hailey é uma mulher moldada pela violência do passado e pela ameaça constante do presente. Rígida, implacável e ferozmente protetora, lidera a família com um código quase militar. Contudo, é nos momentos de fragilidade e de amor reprimido que Deadwyler mais surpreende. A sua dedicação física e emocional eleva a personagem a um patamar raro de autenticidade, onde brutalidade e ternura coexistem com uma honestidade arrebatadora. É impossível não a considerar uma futura vencedora de Óscar.

Grande parte da força de 40 Acres reside na relação entre os membros da família, sobretudo entre Hailey e o seu filho mais velho, Emmanuel (O’Connor). A química entre o elenco é palpável, transmitindo uma dinâmica familiar credível e envolvente, que oscila entre o amor profundo e as tensões inevitáveis de uma existência marcada pelo medo. Cada uma das personagens jovens embarca numa jornada própria de auto-descoberta: enquanto Emmanuel explora o despertar do desejo e a ânsia de se ligar ao mundo exterior – através de Dawn (Diaz-Rojas), uma jovem misteriosa que conhece para lá da cerca -, outras figuras como Raine (Robinson) e Cookie (Amare) enfrentam os desafios de crescer num ambiente onde a infância é um luxo e a desconfiança uma necessidade.

Esses rituais de passagem e descobertas íntimas são habilmente equilibrados com momentos de ação explosiva, mas nunca gratuita. Thorne privilegia o suspense e a construção atmosférica, fazendo com que cada embate pareça inevitável e carregado de tensão. Quando a violência explode, fá-lo com impacto emocional, apoiado por uma montagem eficaz (Dev Singh e Sandy Pereira) e uma fotografia crua e envolvente de Jeremy Benning (The Expanse), que tira o máximo partido da paisagem isolada e da geografia do local.

No coração de 40 Acres está uma meditação poderosa sobre trauma geracional, soberania e resistência cultural. O realizador – inspirado pela educação recebida de uma mãe solteira que o alertava para os perigos de ser um jovem negro num mundo hostil – transpõe para Hailey essa mesma filosofia de sobrevivência e proteção. O medo do “outro” não é só externo, mas também interiorizado, ameaçando corroer os próprios alicerces da família. No entanto, o filme não se limita a pintar um retrato sombrio – oferece também momentos de ternura, esperança e até humor, sobretudo em cenas de celebração e comunhão familiar.

A narrativa segue por rumos inesperados, com desenvolvimentos de enredo corajosos e um final que certamente deixará poucos espetadores indiferentes. Sem cair em resoluções fáceis, o clímax de 40 Acres confronta as personagens (e o público) com a dura realidade daquilo que estão dispostas a fazer para proteger o que lhes pertence – não só em termos materiais, mas também afetivos. A tensão construída ao longo de quase duas horas culmina num desfecho intenso, emocionalmente poderoso e repleto de ambiguidade moral.

VEREDITO

40 Acres é uma estreia impressionante de R.T. Thorne, que demonstra um belíssimo controlo tanto do lado técnico, como temático da obra. É um filme que, embora inserido no género pós-apocalíptico, transcende os seus limites ao oferecer um estudo de personagem profundo e uma análise social pertinente. Sustentado por uma performance magnética de Danielle Deadwyler e por uma equipa técnica e artística de grande nível, esta é uma das obras mais surpreendentemente memoráveis do ano. Um testemunho de resiliência, pertença e da luta por um lugar — físico e simbólico — num mundo em colapso.

Manuel São Bento
Manuel São Bentohttps://linktr.ee/msbreviews
Crítico português com uma enorme paixão pelo cinema, televisão e a arte de filmmaking. Uma perspetiva imparcial de alguém que parou de assistir a trailers desde 2017. Individualmente aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Portfolio: https://linktr.ee/msbreviews
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