Existem momentos em que o título da Primal Game Studio funciona como um sólido RPG de ação 2D, mas quanto mais se aproxima dos soulslike e metroidvania, mais se sente vazio e até enfurecedor.
Apesar da experiência soulslike ser mais associada à perspetiva third person, em mundos tridimensionais, não existe propriamente uma exclusividade nesta abordagem ao género. A FromSoftware pode ter popularizado os mundos interligados e extensos, repletos de atalhos e caminhos alternativos que se multiplicam por inúmeras zonas que criam uma rede densa de opções em 3D que utilizam perfeitamente a profundidade e densidade de campo, mas a fórmula não está restrita a este modelo. Nenhum género vive apenas de uma perspetiva e tipo de câmara e os soulslikes não são diferentes. Se Lies of P, Lords of the Fallen, Nioh ou mais recentemente The First Berserker: Khazan são exemplos do género na terceira pessoa, já Hollow Knight, Blasphemous ou Slat & Sanctuary representam a outra face da moeda ao apostarem numa jogabilidade sidescroller que não necessitou de abandonar qualquer mecânica ou funcionalidade para se manter fiel à experiência soulslike.
Mandragora: Whispers of the Witch Tree, da Primal Game Studio, procura um lugar no panteão dos sidescrollers ao abraçar a fórmula soulslike, mas mantendo a experiência familiar para os fãs de 2D e ação. Mandragora é um jogo dividido em três identidades que se complementam e que retratam esta fantasia negra, de bruxas, criaturas e Inquisição com alguns resultados positivos, mas cujas partes não se complementam para uma campanha sólida, criando momentos dissonantes que revelam uma falta de polimento quanto mais interagimos com as suas mecânicas. É um caso interessante de termos três filosofias de design que funcionam em separado, mas cuja harmonia não é alcançada, apesar de fazer sentido. Então temos um mundo repleto de promessas, com uma narrativa auxiliada por vários atores que dão voz às personagens, bons valores de produção, arte sólida – ainda que um pouco cansativa devido à paleta de cores escura -, mas pouco memorável sempre que paramos de jogar e seguimos em frente.
A primeira identidade de Mandragora é a mais óbvia: RPG de ação. Num ambiente 2D, o título da Primal Game Studio comporta-se como uma mistura entre a exploração das zonas em busca de itens e recursos, intercalada por momentos de plataformas satisfatórios – sem surpresas, mas que requerem alguma navegação inteligente e leitura dos cenários para que possamos encontrar todos os segredos do jogo – e combates rápidos. O UI é tão familiar que parece ter saído diretamente de um RPG clássico, ainda que adaptado às particularidades do DualSense, na versão para PlayStation 5.
O ritmo de Mandragora mantém-se na recolha de loot, na criação e melhoria de equipamento e na busca por novas quests que nos levam a explorar as zonas principais e secundárias em “busca” dos conteúdos opcionais da campanha. É uma aventura sólida, no sentido em que as zonas complementam-se através de bons atalhos e uma escala mais reduzida nos seus biomas, mas aproveitando as suas particularidades para criar caminhos alternativos e tirar partido do seu minimalismo. Entre zonas principais, encontramos cidades e ainda o acampamento em Witch Tree, que serve como um HUB permanente para a nossa personagem, onde temos acesso a todas as opções de personalização, desde a criação de armaduras, armas, poções, mapas, magias, entre outros.
Como RPG de ação, a experiência mantém-se dentro dos moldes já conhecidos do género. O foco continua a ser a evolução por níveis, que aumentam os atributos da personagem – que é personalizável quando iniciamos a campanha, tal como a sua classe inicial –, e o desbloqueio de habilidades através de uma enorme e bastante variada skill tree. Entre níveis e novas habilidades, até com a possibilidade de assumirmos novas classes a partir do nível 25, temos diferentes armas e equipamentos para equipar que aumentam progressivamente os nossos parâmetros. No fundo, Mandragora é um RPG de ação com poucas surpresas nesta primeira parte da sua identidade, apresentando sistemas que funcionam tal como esperado e sem surpresas.
A segunda identidade do RPG da Primal Game Studio é a sua vertente soulslike. Talvez Mandragora seja mais RPG de ação do que propriamente um soulslike puro, mas as mecânicas estão presentes e foram deliberadamente implementadas para dar uma pitada de dificuldade a um jogo que seria muito mais acessível e até aborrecido sem elas. Então Mandragora mune-se dos clichés do costume, desde bonfires que podemos utilizar para evoluir a personagem e fazer fast travel, a perda de experiência sempre que somos derrotados – com a possibilidade de recuperarmos o que perdemos se conseguirmos voltar ao local onde morremos –, o combate ponderado e mais assente no desvio e defesa, e também nos bosses enormes e agressivos que se querem assumir como verdadeiras barreiras de progresso. A evolução e liberdade de personalização também são cunhos do género e Mandragora oferece opções suficientes para termos a liberdade de criar a personagem que quisermos.
No entanto, a dificuldade não é tão equilibrada como deveria ser, não só pela falta de algum feedback sonoro e visual, como os inimigos não apresentam uma AI desafiante ou variada, focando-se em ataques básicos e com pouco sentido de estratégia. A dificuldade nasce mais dos pontos elevados de vida e da sua resistência aos nossos ataques, do que propriamente de situações de combate que exigem mais da nossa destreza ou leitura dos cenários. O combate é quase sempre direto, “atacar até algo cair”, exigindo pouco do jogador, fora alguns momentos em que podemos tirar partido da distância e utilizar magias para controlarmos melhor os grupos de inimigos. Mas sentimos progressivamente mais este desequilíbrio na dificuldade, ao ponto de ataques inimigos tirarem metade da nossa barra sem qualquer explicação, quase como se as nossas armaduras não tivessem qualquer efeito – ainda mais se não seguirem pela via do cavaleiro de espada e escudo. A utilização de stamina também funciona em detrimento da jogabilidade, na minha opinião, e prejudica o ritmo dos combates ao obrigar a pausas constantes que nem sempre são eficazes devido à agressividade desmedida da inteligência dos inimigos.
A última identidade de Mandragora é quase inseparável do género soulslike quando adaptado para uma perspetiva sidescroller, até porque existem demasiados pontos em comum entre elas: metroidvania. A Primal Game Studio apresenta um mundo extenso interligado, repleto de atalhos e caminhos alternativos que criam uma rede conetiva entre as zonas principais, mas há também uma busca por novas habilidades únicas que desbloqueiam caminhos anteriormente inacessíveis. Desta forma, temos sempre um incentivo adicional para revisitarmos as zonas anteriores, não só porque podemos aceder a novas salas e caminhos, como sabemos que vamos encontrar novo loot ou então quests que nos permitirão conhecer melhor o mundo de Mandragora.
Apesar de tudo funcionar devidamente e sem grandes problemas, o foco numa arte mais negra e pouco variada, a lembrar demasiado um tom mais genérico de fantasia, retirou-me algum prazer na exploração e na descoberta de novas zonas. É tudo muito semelhante, monocromático, para se tornar convidativo ou passar ao jogador uma sensação de descoberta. Com fast travel sempre presente e com pontos de gravação constantes, a Primal Game Studio parece estar mais preocupada em garantir que podemos voltar e sair das zonas rapidamente do que criar oportunidades únicas de exploração e combate que tornem o backtracking mais empolgante ou até desafiante. Também não ajuda que as habilidades e ferramentas que desbloqueamos só podem ser utilizadas em pontos fixos dos cenários, e não têm qualquer utilidade na movimentação ou combate do jogo.
Mandragora: Whispers of the Witch Tree é um jogo com tripla personalidade, cujas partes funcionam entre si, mas nem sempre em total harmonia. Os sistemas RPG são suficientemente profundos para darem boas opções de personalização aos mais curiosos e loot que vos permitirá criar a melhor build para a vossa personagem, sem falar no sistema de crafting e skill tree. O combate é mais fácil e acessível do que esperava, mas o desafio está presente e existem momentos em que os inimigos se tornam em verdadeiros perigos devido aos seus números e posicionamento estratégico em campo; ainda que lhes falte uma AI mais apurada e criativa em combate. O mundo é extenso, interligado e repleto de baús escondidos e quests que nos levam a novas áreas, anteriormente inacessíveis, com habilidades que procuram melhorar a mobilidade e backtracking, mas Mandragora peca pela identidade visual e as zonas ganham muito em serem mais curtas para não se tornarem cansativas. No fundo, Mandragora: Whispers of the Witch Tree é um jogo dividido, com boas ideias, mas pouco memorável e apenas perfeito para sessões curtas de jogo.
Cópia para análise (PlayStation 5) cedida pela UberStrategist.