O regresso a Nosgoth faz-se com uma remasterização de peso com gráficos e arte retrabalhados, novas opções de qualidade de vida, mas a mesma jogabilidade de sempre, numa experiência única que ainda hoje surpreende através da sua narrativa e personagens.
“Kain was deified”
A introdução de Legacy of Kain: Soul Reaver é uma tese sobre direção e escrita para videojogos, ainda hoje, 25 anos depois da sua estreia. As primeiras palavras de Raziel, o nosso narrador, ao som de instrumentos de sopro – que só anos mais tarde descobri pertencerem à banda sonora de The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955) – que se anunciam quase uma marcha militar, mergulhando numa sensação de perigo constante, acompanham a nossa introdução ao mundo de Nosgoth. No centro do plano aéreo, expansivo e igualmente detalhado, identificamos um trono decorado por pilares quebrados. O trono de um tirano, que parece expor perante os seus súbditos os espojos da sua vitória. Só depois somos introduzidos a Raziel, ainda na forma vampírica, e compreendemos como Nosgoth se constrói. Os irmãos vampiros de Raziel, generais temíveis, comandantes dos seus próprios clãs, que se curvam apenas perante um só: o tirano, o imortal, Kain.
O que também fica claro é a evolução que se propaga pela espécie vampírica. Agora senhores de Nosgoth, o seu reino é um monólito, mas a evolução não pode ser interrompida. Os vampiros são seres incompletos, marcados para a extinção, mas, graças a Kain – durante os acontecimentos de Legacy of Kain: Blood Omen -, surgem agora como os verdadeiros donos de Nosgoth. Os pilares caíram, os Serafan foram derrotados e agora os vampiros são apenas perseguidos pela sua própria evolução. No entanto, há uma regra subentendida por todos os clãs: Kain é o primeiro a evoluir e só depois os seus filhos seguirão os seus passos. Durante a introdução, nós ficamos a saber que a regra foi quebrada por Raziel, que evoluiu sem o consentimento de Kain, enganado pela sua própria natureza. Raziel tem agora asas e ele mostra a sua nova evolução a Kain, ao pai tirano, o soberano de Nosgoth.
Apesar dos limites da época, a narração e a animação dos modelos em CGI/FMV, definem as dinâmicas entre as personagens com a excelente representação e direção de Amy Hennig (série Uncharted). Percebemos este cuidado através da reação de Kain e sentimos o seu orgulho ferido, tão ofendido, como surpreendido pela evolução do seu filho, e Raziel, subserviente, a não guardar segredos ao seu pai e criador, mas também receoso, recusa o toque quando Kain se aproxima das suas novas asas. A ordem natural do clã é seguir Kain, não superá-lo. Então Kain vinga-se, arranca as ossadas das asas ainda jovens de Raziel e condena-o ao sofrimento eterno atirando para o abismo. A pele vampírica de Raziel reage à água, uma das suas inimigas naturais, e durante milénios, a tortura perdura até que este acorda no abismo. Uma sombra do que era, um vampiro sem sede por sangue, mas antes por almas. Um Wraith, um Soul Reaver, um devorador de almas em busca de vingança.
25 anos depois, esta introdução a Raziel, Kain e a Nosgoth continua a ser perfeita. A direção é soberba e a escrita demonstra a qualidade e mestria de Amy Hennig, Richard Lemarchand e Jim Curry, com diálogo acutilantes, perfeitamente trabalhados e com um sentido de minúcia que nasce de um longo e vasto conhecimento de literatura e dramaturgia. Uma linhagem que teve início em Legacy of Kain: Blood Omen, a cargo da Silicon Knights, cujo tom e direção marcaram a série até à sua conclusão amarga, passando o controlo (não de livre vontade) para a Crystal Dynamics. Soul Reaver foi a minha introdução à série, a minha porta de entrada, e desconhecia a existência de Blood Omen até anos mais tarde. Apesar da suposta ausência de contexto, a cinemática consegue agarrar-nos pelos pulsos e levar-nos numa viagem, definindo rapidamente as dinâmicas entre personagens, o mundo de Nosgoth, o nosso herói e, acima de tudo, o vilão que motivará Raziel na sua demanda. Existe elegância na escrita até quando a cinematografia é condicionada por questões técnicas e limitações da época, e consegue tornar tudo tão acessível sem explicar demasiado, deixando espaço para o mistério – o que irá acontecer a seguir e o que se passou durante a hibernação de Raziel, mas também, para os fãs de Blood Omen, como Kain se transformou neste vilão implacável e soberano.
Esta visão única sobre um mundo de vampiros em decadência, erguida entre uma arquitetura mais medieval, mas com traços góticos, cujos edifícios contorcem-se em novas formas e as grandes máquinas revelam um futuro interrompido e agora impossível de cumprir, mantém-se viva entre os dois jogos. O primeiro jogo centra-se mais no futuro de Nosgoth, pós decadência, onde os filhos de Kain escondem-se da maldição que os perseguem, onde humanos e monstros tentam sobreviver perante a corrupção. Uma farsa da sua antiga glória, cujo vislumbre é percetível através da cinemática inicial, onde Raziel e os seus irmãos surgem como generais de uma nação próspera, agora reduzida a ecos. É este o mundo que Raziel presencia após despertar, milénios depois, mas, para ele, segundos, talvez minutos apenas. É um motif narrativo perfeito para nós enquanto jogadores, onde acompanhamos um herói que também se sente perdido, capaz de ver o futuro, mas sem conseguir ignorar o passado que era também o seu presente. Então tudo lhe é estranho, alienígena, onde templos perderam a sua magia, estandartes recaem sobre edifícios abandonados e os esconderijos dos seus irmãos, agora monstruosos e deformados devido à evolução desenfreada da espécie, que evitam os olhares de inimigos e crentes.
Legacy of Kain: Soul Reaver 2 é o seu oposto. Se o despertar de Raziel acontece no futuro, a sua viagem de iluminação só é possível no passado, anos antes da sua transformação, onde reside a sua origem humana e todos os segredos para a sua verdadeira missão no grande esquema de Nosgoth. Os templos, cidades e florestas são mais povoados por humanos e caçadores, a beleza natural de Nosgoth ainda sobrevive aos elementos mágicos que procuram deturpá-la e o design é um misto entre o misticismo das suas eras antigas, com a esperança de um futuro próspero. Mas entre as frechas da realidade, onde a causalidade continua a tecer as linhas do tempo, o caos começa a ganhar forma e o futuro espreita sempre que Raziel chega demasiado tarde para salvar quem estava destinado a falecer. O futuro é aquele que vimos em Soul Reaver, o desespero de um mundo em decadência, mas resta saber quem irá governar e porquê: se será sempre Kain ou se existe outra fação a querer que o destino mude para seu propósito.
Seja no passado ou no futuro, Nosgoth divide-se em dois planos de existência, graças às novas habilidades de Raziel. O antigo vampiro é agora um espectro, perdido no mundo imaterial, onde as almas residem. Como wraith, a mando do Elder God, Raziel é capaz de saltar entre realidades e ver o que se esconde em Nosgoth. Quando altera a realidade, Raziel descobre outra realidade, mais colorida em partes – em tons de azul e verde, como um filtro que cai sobre o mundo dos vampiros -, mas com estruturas ainda mais irregulares e transformadas. A água deixa de estar presente, tornando-se num gás, as almas e outras criaturas procuram vítimas entre as realidades, e até Raziel tem acesso a habilidades únicas, como a possibilidade de trespassar as grades de portões sem dificuldade. O choque entre dimensões é constante nos dois jogos e é um centro mecânico para a maioria dos puzzles, já que é preciso não só utilizar as habilidades únicas de Raziel constantemente, como é necessário tirar proveito das alterações físicas dos cenários. Uma torre pode ser uma ponte inesperada quando mudamos para o mundo espectral e é interessante ver como o mundo é mais um elemento mecânico na série Legacy of Kain.
A nível mecânico, os dois jogos têm focos diferentes, apesar das suas semelhanças. Ambas as jogabilidades constroem-se sobre a exploração e a resolução de puzzles, intercaladas por momentos de combate, que acabam por ocupar grande parte da jogabilidade. O sistema de combate é um gosto adquirido e um dos elementos mais enfraquecidos pela passagem do tempo, e o que já não funcionava em 1999, ainda é menos compreensível em 2024. O combate é funcional e serve um propósito, não existindo propriamente uma evolução mecânica acentuada ao longo dos dois jogos. Raziel é rápido e esguio, focando-se na movimentação e no contra-ataque para atordoar os seus inimigos. Em Soul Reaver, ele só é capaz de se desviar, opção que só está disponível se fizermos lock-on – um pouco à semelhança de Devil May Cry –, mas em Soul Reaver 2, a Crystal Dynamics adicionou uma opção de defesa, acompanhando o aumento da agressividade da IA dos inimigos. Ambos os jogos constroem as suas bases nestes confrontos rápidos e nos ataques físicos, existindo ainda a possibilidade de utilizar a espada Soul Reaver – na sua forma espectral, que desbloqueamos no primeiro jogo – e também os glifos elementais que colecionamos entre ambos os jogos e que adicionam novas habilidades a Raziel. A diferença é que Soul Reaver 2 depende muito mais do que seu sistema de combate do que o primeiro jogo, que se centra mais na navegação e puzzles.
No entanto, existem elementos interessantes neste simples, mas muito funcional sistema de combate. O primeiro é a variedade de armas que podemos utilizar, desde as garras de Raziel até às espadas, lanças, machados e tochas que encontramos espalhadas por Nosgoth. Estas armas podem estar presentes em campo, como parte da decoração dos cenários, ou então podem ser roubadas aos inimigos depois de serem derrotados, existindo uma certa rotatividade na sua utilização que dá alguma variedade aos confrontos.
O segundo elemento diferenciador da saga Legacy of Kain é a utilização dos elementos. Raziel é um vampiro e mesmo que o seu corpo esteja a sofrer alterações que o próprio não consegue controlar, as fraquezas continuam as mesmas. O sol e a água são letais, tal como uma estaca no coração, e por mais poderosos que sejam, todos os vampiros de Nosgoth regem-se por estas regras. Os inimigos de Raziel são, na sua grande maioria, filhos dos seus irmãos, criaturas transformadas em vampiros menores, o que significa que partilham das mesmas fraquezas. Desta forma, encontramos faixa de luz, corpos de água e elementos decorativos com estacas que podemos utilizar contra os nossos inimigos. Para tal, temos de atordoá-los primeiro e depois agarrá-lo para os atirarmos contra estas fraquezas elementais. Com o corpo a desfalecer, a alma liberta-se e é isso que alimenta Raziel e o mantém vivo e capaz de manter a sua aparência física. Um sistema muito interessante que, infelizmente, não é tão aproveitado pela sequela, que depende mais das combinações e variedades de armas para construir os seus confrontos – um problema que surge por não existirem tantos vampiros no passado de Nosgoth.
A exploração também difere entre ambos os jogos e é interessante analisar a mudança de estrutura entre os dois títulos. Soul Reaver é mais ambicioso no seu level design, apesar das limitações da sua plataforma original, e expande a aventura para uma Nosgoth mais aberta e interligada por atalhos. A estrutura pode ser equiparada aos metroidvanias, com a progressão limitada pelo desbloqueio de novas habilidades, que abrem também novos caminhos que dão acesso a itens que melhoram os atributos de Raziel. Enquanto exploramos, nós vamos encontrando estas barreiras físicas, as portas fechadas, os corpos de água ou as paredes com relevo que poderemos escalar no futuro, tirando notas mentais sobre os vários caminhos que se abrirão ao longo da campanha. Nosgoth não é tão extensa como parecia ser em 1999, apresentando cenários e zonas mais limitadas do que me lembrava, e agora é percetível como todos os pontos de interesse estão mais próximos do que pareciam estar, mas existe muito para descobrir. Não é um mundo aberto, mas é suficientemente vasto e variado, sempre interligado e lógico no seu design, para se revelar como um universo vivido e bem integrado – e isso não quer dizer que a falta de direção tenha sido eliminada nesta remasterizada, antes pelo contrário.
A sequela é um passo em frente, mas outro atrás e sentimos uma alteração no foco da campanha. Não só temos mais cinemáticas, com melhor direção e cinematografia, como o mundo interligado de Nosgoth perde a sua expansividade para apostar numa estrutura mais linear. Soul Reaver 2 compensa a ausência do modelo metroidvania, ou algo mais próximo ao modelo, para criar níveis com um design mais intricado e inteligente. Os níveis são mais fechados, mas as zonas exploram melhor o seu level design e debruçam-se mais nos puzzles longos e mais exigentes que requerem maior mobilidade e opções de transversalidade. O que se perde na interligação das zonas e na sua revisita é ganho na forma como os níveis são mais densos em puzzles e momentos de combate, onde sentimos ainda mais a presença da excelente narrativa e da narração constante de Michael Bell, como Raziel e da prestação dos restantes atores, onde é impossível não destacar Simon Templeman, como Kain, e Tony Jay, como Elder God.
O regresso a Nosgoth é muito próximo aos lançamentos originais, mas as novidades estão presentes. Apesar de não existirem melhorias significativas na jogabilidade, e sentimos que aquilo que não funcionava continua a não funcionar – por exemplo, no primeiro jogo, não importa onde gravamos o jogo, pois voltamos sempre ao ponto de partida e somos obrigados a usar o fast travel para voltarmos onde gravámos -, a Aspyr procurou adicionar algumas opções de qualidade de vida. Não só temos um menu que une os dois jogos num só HUB, que pode ser acedido sempre que queiramos, onde encontramos ainda a secção de conteúdos adicionais – muito detalhados e com várias novidades para os fãs, como níveis perdidos, vídeos e imagens promocionais, concept art e outros –, como agora temos à disposição legendas, que não estavam incluídas nos lançamentos originais, uma bússola sempre presente no ecrã e ainda um mapa com todas as localizações de Nosgoth. Fora estes extras, os dois jogos foram atualizados a nível visual e apresentam cenários e personagens modernizadas, que procuram manter o estilo dos jogos originais. Se preferirem os visuais originais, não se preocupem, já que a Aspyr, à semelhança do que havia feito em Tomb Raider I–III Remastered, permite a troca rápida entre os dois estilos. Querem jogar como em 1999? Basta carregarem no R3 e o jogo viaja automaticamente no tempo.
Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered é uma coleção para os fãs e é um absoluto sucesso nesse sentido. A saga Soul Reaver tem problemas e o tempo não tem sido simpático para a sua jogabilidade ou level design, mas os seus níveis elevados de qualidade na escrita, direção de arte e realização superam quaisquer percalços mecânicos. Esta é uma das melhores histórias adaptadas e pensadas para os videojogos, com duas das melhores interpretações que já ouvi, e é importante ter acesso a dois clássicos que estavam relegados a más conversões ou ao esquecimento. Estes videojogos são importantes e digo-o com convicção. Se são fãs, a escolha está feita, vocês precisam desta coleção, mas se não forem fãs e este for o primeiro contacto com a série da Crystal Dynamics, então cuidado com os problemas que identifiquei. Eles são reais e podem condicionar a vossa experiência.
Com o lançamento de Soul Reaver 1 e 2 no PC e consolas, a série Legacy of Kain está quase toda disponível na PlayStation 4 e PlayStation 5, faltando apenas Defiance. Agora resta expandir esta acessibilidade para todas as plataformas.
Cópia para análise (versão PlayStation) cedida pela Aspyr.