A Red Candle Games ressuscita com um título invulgar para o seu reportório, abandonando o género de terror em prol de um metroidvania munido de um mundo rico em mitologia e suficientemente complexo a nível mecânico para quem procura um verdadeiro desafio.
Independentemente da receção de Nine Sols e do seu sucesso junto da comunidade, este é um renascimento para a Red Candle Games. A produtora taiwanesa, que se popularizou com o lançamento de Detention no PC e consolas – um sucesso forte que deu origem a adaptações para cinema e televisão, incluindo uma série com uma história que procurou ir além do videojogo –, viu o seu legado em risco devido a uma simples piada. As relações complexas entre a China e Taiwan – e a constante opressão chinesa que ainda hoje é sentida, ao ponto de recusar a independência de Taiwan – agigantaram o que poderia ter sido apenas uma crítica passageira ao presidente chinês Xi Jinping. Uma piada talvez infeliz, talvez desnecessária, mas não imerecida, funcionando mais como um easter egg do que propriamente uma crítica direta. Mas a comunidade chinesa não perdoou e Devotion, que elevou o storytelling da Red Candle Games a um novo patamar e que lhe garantiu o apoio da crítica especializada e da pequena comunidade que até ali havia conquistado, acabou censurado ao ponto de ter sido retirado das lojas digitais. Até hoje, cinco anos depois da polémica, Devotion ainda só pode ser adquirido legalmente através do site oficial da Red Candle Games – agora sem easter eggs ou referências exteriores.
Nine Sols foi anunciado em 2022 e foi como uma tentativa de sobrevivência. O golpe da censura foi forte e não podemos quantificar o choque emocional e psicológico sentido pela equipa da Red Candle Games quando o seu projeto, vencedor de prémios e considerado como um dos melhores videojogos de 2019, desapareceu das lojas e viu as suas vendas a serem condicionadas por fatores exteriores. A comunidade aceitou, felizmente, o pitch da Red Candle Games e Nine Sols ganhou forma. Um projeto tão peculiar no catálogo da produtora taiwanesa que, ao contrário de Detention e Devotion – assumidamente jogos de terror narrativos, diferindo na sua perspetiva e claros valores de produção –, constrói-se em torno de uma experiência mais familiar, os metroidvanias, mas com um twist: a estrutura mantém-se próxima aos metroidvanias, mas o combate inspira-se nos inúmeros soulslikes atualmente no mercado, em especial em Sekiro: Shadows Die Twice, com um sistema de combate mais centrado na defesa, deflect e contra-ataque.
O constante feedback proporcionado pela comunidade, proveniente do lançamento de demonstrações na Steam, terá sido um fator decisivo para a Red Candle Games, que renasce por completo com Nine Sols. A forma como a campanha se constrói em torno de um mundo tão único e bem definido, um claro reflexo do trabalho narrativo que a produtora taiwanesa já havia injetado nos seus projetos anteriores – mas agora com foco na cultura e lendas Taoistas, que são sentidas até na jogabilidade através do uso de talismãs e inimigos inspirados na cultura -, com um foco tão acentuado na dificuldade, mas também nos controlos responsivos e sempre equilibrados, demonstram como a comunicação entre ambas as partes foi o modelo perfeito para a produtora arriscar num género tão diferente e até adverso ao que havia assumido até aqui. É por isso que defino Nine Sols como um renascimento, pois é um quebrar com o passado sem ignorá-lo, antes preservá-lo para que a Red Candle Games possa crescer. Seria Nine Sols possível se Devotion tivesse sido um sucesso? Um futuro ou linha temporal que nunca conheceremos, mas Nine Sols fala por si e é obrigatório para os fãs de metroidvanias e soulslikes.
A dificuldade talvez seja uma barreira para muitos. Apesar de existir um Story Mode, que simplifica muito a intensidade mecânica dos combates, Nine Sols é implacável, mas não diria que seja injusto. O sistema de combate requer atenção e prática, e nada é imediato ou demasiado facilitado. Os tutoriais tentam introduzir-nos às várias mecânicas presentes no jogo, mas é difícil preparar os jogadores quando a IA é tão implacável e inicialmente imprevisível – mas com movimentos bem definidos e fáceis de ler, com cores associadas aos ataques que definem se podemos fazer deflect ou se é preferível evitar o contra-ataque e criar maior distância do inimigo – ao longo das dezenas de hora de campanha.
O segredo está na defesa e na leitura dos inimigos, tal como Sekiro: Shadows Die Twice, e é necessário aprender a utilizar os seus ataques para criarmos vantagem. Uma boa defesa deixa-nos não só contra-atacar mais rapidamente, como permite a utilização dos talismãs, uma das mecânicas basilares do sistema de combate. Esta habilidade especial, que desbloqueamos logo no início da campanha, permite-nos prender os inimigos num feitiço temporário, funcionando quase como uma bomba-relógio. Para ativarmos os talismãs, temos de passar pelos inimigos e colá-los durante a movimentação, bastando carregar no “L1” para que a mecânica funcione. Com o talismã colado e o inimigo distante, podemos ativá-lo e disferir um número específico de dano, que poderá aumentar de acordo com o deflect e o atordoamento que aplicámos anteriormente aos inimigos. Com boa defesa e um talismã aplicado no momento certo, podemos destruir um inimigo com um só golpe. É um esforço que valerá sempre a pena.
O que nos proíbe de sermos autênticos assassinos imparáveis é a própria AI dos inimigos. Nem todas as criaturas humanoides ou mais animalescas apresentam a mesma ferocidade e tenacidade em combate, mas todas elas conseguem ripostar se não estivermos preparados. Alguns inimigos são incansáveis, constante em movimento, ora a atirar facas, ora a tentarem apanhar-nos desprevenidos pelas costas. A sua agressividade é tão elevada que podemos ficar assoberbados pelo número e nível de ataques e até da sua eficácia contra Yi, o nosso protagonista, com alguns golpes a retirarem tantos pontos de vida que um confronto pode mudar em segundos. Nine Sols não quer que entremos em pânico, apesar da minha descrição, antes que aprendamos a respirar fundo e que consigamos analisar objetivamente os nossos adversários. Os padrões serão assim tão complexos? Será que não existem aberturas para que possamos contra-atacar? Existem sempre e quando alcançamos esse domínio, o sistema de combate floresce e torna-se muito mais denso, auxiliado por um bom sistema de progressão com uma árvore de habilidades sólida e ainda implantes, aqui denominados de Jades, que adicionam atributos passivos à personagem.
No entanto, existem alguns contratempos. Ao longo das minhas horas, foi difícil não sentir que as hitboxes são um pouco difíceis de ler e compreender dentro dos seus limites. Alguns ataques foram registados quando não devia ter sido possível e isso deve-se à incompreensão do que é ou não permitido através das hitboxes. Poderá ser um caso onde tenho apenas de explorar melhor as mecânicas até encontrar esse ponto de equilíbrio, mas é um pouco desapontante sentir este problema de inimigo para inimigo. Outra questão, talvez mais pessoal, prende-se aos frames de invencibilidade de Yi. Se formos rápidos, é possível evitar ataques sucessivos através do dash, mas na maioria dos casos em que Yi é atirado ao chão, os inimigos são tão rápidos e os seus golpes têm uma área de efetividade tão elevada que podemos sofrer danos adicionais sem existir espaço para ripostarmos. Este é um dos meus maiores problemas com o sistema de combate, daqueles que nem sempre consegui compreender de forma objetiva ou dominar devido à agressividade de alguns mini-bosses ou dos titulares nove Sols, que funcionam como os grandes vilões da campanha – tanto que a própria Red Candle Games acaba por oferecer uma habilidade opcional que permite colmatar este problema.
A combinação entre metroidvania e soulslike começa a formar-se progressivamente na indústria dos videojogos, especialmente com o auxílio dos estúdios independentes. Nine Sols junta-se, desta forma, a Blasphemous, Dead Cells e Hollow Knight como alguns dos melhores exemplos do potencial da junção entre os dois géneros, com um level design meticuloso, muito assente em níveis verticais e com alguma profundidade, e um sistema de atalhos e fast travel bem implementados que tornam as revisitas mais apelativas e empolgantes. A nível formal, Nine Sols não procura desafiar ambos os géneros e molda-se antes às suas convenções, com a progressão a ser determinada pelo desbloqueio de novas habilidades e implantes, e o combate a ser pontuado pelo receio constante de perdermos todos os recursos que colecionámos até ali.
Não encontramos influências dos soulslike apenas pelo sistema de combate e a recuperação de almas é mais um dos sistemas do género que marcam presença em Nine Sols. A interpretação da Red Candle Games talvez seja ainda mais tensa porque deixa-nos perder pontos de experiência, mas também dinheiro sempre que não conseguimos recuperar o que deixámos para trás. Felizmente, Nine Sols complementa este sistema ao inspirar-se novamente em Sekiro, onde não existe uma evolução por níveis, antes por pontos de habilidades e sempre que completamos a barra, esse ponto já não poderá ser perdido mesmo que sejamos derrotados em combate.
O mundo de Nine Sols é diversificado, mantendo a sua colisão estilística entre os elementos tradicionais do Taoismo com a temática mais futurística da sua narrativa, onde encontramos enormes estruturas metálicas, megalíticos opressivos e criaturas androids, onde templos antigos e réstias de elementos naturais revelam mais sobre o passado desta realidade adulterada. As animações são um dos destaques, solidificando o sistema de combate através da fluidez de movimentação de Yi, mas fiquei igualmente encantado com a utilização de modelos em 3D que pintam e dão vida aos fundos de Nine Sols. A profundidade de campo injeta alguma grandiosidade aos cenários e mesmo que Nine Sols se mantenha numa perspetiva sidescroller, com modelos de personagens em 2D, o mundo parece ter mais densidade e uma textura mais presente e viva ao longo das diferentes zonas.
O que não apreciei da mesma forma foi a falta de direção constante na campanha devido à dificuldade presente no sistema de combate, onde a navegação nem sempre é tão imediata e assente na exploração como poderia ser, levando à repetição dos níveis, que já é um problema assumido no género metroidvania, a ficar ainda mais cansativa devido aos confrontos constantes. Se Prince of Persia: The Lost Crown conseguiu encontrar um equilíbrio entre combate, plataformas e exploração que me satisfez, onde andar perdido nunca se traduziu numa má experiência ou na sensação de estar estagnado, já Nine Sols não foi capaz de alcançar o mesmo feito e caiu muitas vezes no campo da confusão que só piorou ao longo da campanha com a introdução de novas e ainda mais extensas zonas. Mas aprecio as tentativas em utilizar os cenários para combates e exploração, até a ajuda do pequeno pirilampo mecânico, que nos permite fazer hacking a portas, mas também a encontrar zonas e itens escondidos.
Nine Sols é um corte incisivo e mecânico no catálogo da Red Candle Games que não só trouxe uma segunda oportunidade à produtora taiwanesa, como comprovou, perante uma comunidade de fãs expectantes, que é capaz de ir além do género que a popularizou com um título mais mecanicamente denso e complexo. Apesar de preferir o horror psicológico e o sufoco emocional de Detention e, em especial, Devotion, Nine Sols é um metroidvania repleto de qualidades e de uma solidez implacável, especialmente para um estúdio que dá os seus primeiros passos no género. É desafiante e sem remorsos, mas é também munido de uma beleza visual marcante e apresenta grande profundidade narrativa se explorarem os seus temas, diários e diálogos com atenção. No fundo, fico feliz por ver a Red Candle Games a resistir às adversidades e a encontrar a sua nova voz: e que assim permaneça, contra a polémica e contra a censura.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Red Candle Games.