Farmagia oferece uma combinação entre criação de monstros, agricultura e RPG de ação que nem sempre funciona em harmonia, mas que terá certamente os seus fãs.
Com a quantidade de géneros e subgéneros que surgem frequentemente na indústria dos videojogos – origens essas que são pontuadas pela popularidade de um título em específico capaz de criar uma nova rede de influências –, venho por este meio sugerir que se crie uma categoria intitulada: Videojogos Guisados. É uma piada fácil, eu sei, mas não é tão descabida quanto possa ser (e é). O que denomino por “Videojogos Guisados”? Os videojogos que procuram quebrar os limites dos géneros e subgéneros que apropriam, utilizando tantos sistemas, funcionalidades e mecânicas dos géneros em que se influenciam, que o resultado final – que poderá ser positivo ou negativo, não pendendo sempre para a mesma conclusão – é uma mescla de decisões e sensibilidades artísticas e mecânicas que não deveriam funcionar. Este subgénero seria aplicado a todos os videojogos que não sabem o que querem ser, senão tudo. Isto é ambição a mais para uma terminologia tão bacoca e portuguesa.
Farmagia é um desses casos. Ao longe, Farmagia parece ser um mero RPG de ação com as conhecidas convenções do género, onde podemos incluir a evolução por níveis, combates que são recompensados por itens e pontos de experiência, sistema de crafting e uma campanha assente na narrativa, personagens e na luta contra um usurpador com manias das grandezas – onde se podia incluir, de outras vidas e eras, o tradicional Império tecnologicamente mais avançado que procura conquistar o mundo e destruir a magia que alimenta a natureza desse mesmo muito. No entanto, à lupa, Farmagia é muito mais do que isso e nem sempre com os melhores resultados possíveis.
Sim, Farmagia é um RPG de ação, mas é, acima de tudo, um jogo de criação de monstros. As comparações a Pikmin não demoraram a surgir assim que Farmagia foi anunciado, com o sistema de combate a seguir muito levemente os passos da série da Nintendo, ainda que diminuindo a gestão às suas mecânicas mais básicas e imediatas. Se Pikmin requer alguma destreza na forma como utilizamos os simpáticos alienígenas coloridos, os monstros de Farmagia – que se apresentam, ainda assim, através de diferentes tipos de géneros e monstros, cada um com vantagens e desvantagens perante determinados tipos de criaturas rivais – estão muito mais focados no combate. No fundo, são carne para canhão. Isto porque só podemos atacar com os monstros e nunca com o protagonista, Ten, e os seus companheiros de viagem – apenas os nossos companheiros de quatro patas são capazes de infligir dano contra as outras criaturas mágicas. Então temos de gerir os seus números, sim, mas o controlo resume-se a comandá-los ao ataque através do mapeamento dos quatro botões do comando, com as ações a acontecerem automaticamente. Ten só é capaz de ativar um escudo em combate, que pode-se traduzir numa defesa perfeita se o timing for correto, e reagrupar as criaturas quando estas são atacadas ou atordoadas pelos inimigos, mas nunca participar diretamente nos confrontos.
Para melhorarmos os atributos das criaturas, temos de as treinar. Ao contrário de Ten, que evolui através dos tradicionais pontos de experiência, as criaturas só têm acesso a pontos de evolução se forem treinadas. Agora Farmagia já não é um RPG de ação com combate por hordas, cuja influência de Pikmin parecia ser o cerne da sua experiência, e demonstra que também se deixou influenciar e encantar pelos sistemas de progressão de séries como Digimon e Monster Rancher. O segredo de Farmagia, à semelhança do combate e da sua aproximação tímida à gestão de equipa de Pikmin, é que apresenta sempre a versão mais simplificada dos sistemas que procura imitar. Então temos um ecrã de treino, sem dúvida, mas não podemos escolher atividades específicas que melhorem os atributos que procuramos treinar e dar mais atenção. Isto não é Digimon World. Em Farmagia, o treino resume-se à utilização de itens para aumentarmos os atributos das criaturas, existindo um limitador de energia para garantir que não podemos cansar demasiado os monstrinhos até à exaustão – ainda que seja possível utilizar guloseimas para melhorar a sua disposição e continuar os treinos.
Mas como colecionamos novos monstros? Será que Farmagia utiliza um sistema de captura semelhante a Pokémon, aumentando assim a lista já extensa lista de influências? Na verdade, não. Em Farmagia, não capturamos monstros e não temos outros treinadores para enfrentar, fora se surgirem através de missões secundárias – que são desbloqueadas entre as missões principais e acessíveis através da taberna. O segredo para este mistério está no próprio título do jogo da Marvelous = Farmagia. Farming + Magic. A evolução de géneros continua e agora já não estamos perante um RPG de ação com gestão da equipa, antes um jogo de farming simplificado, muito inspirado em Harvest Moon, Story of Seasons e Rune Factory. Com um pequeno terreno à disposição, que pode ser aumentado através de uma árvore de habilidades – que apresenta várias melhorias aos atributos de agricultura do nosso protagonista, acessíveis através de pontos de pesquisa –, podemos lavrar a terra e plantar sementes de monstros para dar-lhes vida. Cada monstro deve ser regado com água e demora um número específico de dias para florescer. Até lá, temos de cuidar do campo, regar as sementes, aumentar o terreno, limpá-lo e depois colher as nossas recompensas. A agricultura é a única forma de termos acesso a novos monstros, a não ser que seja criaturas específicas à campanha e introduzidas ao longo das missões iniciais.
A sua última faceta talvez seja a menos percetível, mas ela esconde-se entre as convenções do género RPG. Em certos momentos, Farmagia aproxima-se muito da estrutura das Visual Novels, apresentando diálogos estáticos com animação rudimentar, onde os modelos das personagens alternam entre versões ligeiramente diferentes para representarem as suas emoções e reações, ainda que desprovidos de escolhas narrativas. É um formato muito popular nas produções de baixo e médio orçamento, evitando assim longas animações e custos mais elevados no que toca à apresentação dos jogos, e Farmagia encaixa nestes moldes. Os atores dão o seu melhor com os diálogos, que são muito funcionais e pouco profundos, e o jogo acaba por depender demasiado da arte de Hiro Mashima, responsável pelo manga Fairy Tail, e é aí que me perde. Não aprecio o estilo de Mashima e sinto que as personagens são pouco expressivas, cujo desenho não é suficientemente forte e característico para criar sequer uma memória mais prolongada sobre o cast de personagens.
No fundo, Farmagia é um guisado que tenta equilibrar e conciliar demasiadas mecânicas em simultâneo. A criação e treinamento das criaturas daria origem a um jogo suficientemente profundo, mas a Marvelous transportou tudo para uma realidade onde agricultores mágicos lutam contra os poderes estabelecidos e agora estamos aqui; na confusão, algures entre géneros, sem saber para onde virar-nos. Apesar das minhas críticas e do tom jocoso, a verdade é que Farmagia funciona e fica mais profundo à medida que avançamos pela campanha, mas a jogabilidade parece estar sempre em falta. É uma sensação que não consegui afastar, como se fosse impossível ficar completamente confortável com as mecânicas de Farmagia. Talvez sejam os excessos a condicionarem a minha experiência com o jogo, onde não são as peças a condenar o sucesso de Farmagia, mas antes o caos que elas acabam por criar.
Farmagia tenta fazer tudo, mas nunca é memorável. Com o tempo, a jogabilidade talvez faça clique nas vossas mentes e vocês consigam tirar partido do treino, agricultura e gestão da equipa, juntamente com as missões secundárias e a presença de deusas com quem podemos travar amizade para aumentar as nossas capacidades de gestão e combate. O problema é que Farmagia atira tanto para cima do jogador e em tão pouco tempo, com pop-ups constantes sobre novas mecânicas e dicas, que isso poderá só acontecer 10 ou mais horas depois – e talvez aí já seja tarde de mais.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Decibel-PR.