Um dos melhores indies do ano é uma viagem no tempo que não se fica apenas pela homenagem e consegue encontrar a sua própria identidade num género cada vez mais caracterizado por imitações.
Abraçar esta pseudocarreira de crítico de videojogos foi aceitar que a psicanálise à pessoa que identifico como “João Canelo” era inevitável. Há mais de dez anos que analiso videojogos e escrevo sobre as minhas opiniões, dentro e fora do âmbito profissional e nos mais diferentes moldes e estilos. Neste processo de crescimento profissional e pessoal – não crescer quando nos consideramos críticos é um sinal de que não estamos a dedicar-nos seriamente ao processo de análise –, fui desafiado a pensar e a contextualizar os meus gostos, o que determino como importante numa análise e como me posiciono na discussão sobre videojogos enquanto arte e entretenimento. Como crítico, aprendi as minhas limitações, eu sei que sou naturalmente negativo e que consigo explicar melhor quando não gosto de um videojogo do que o oposto. Com Crow Country, isso tornou-se ainda mais evidente e as palavras são escritas, mas sinto-as vazias e incapazes de dar vida a uma experiência tão pessoal. Um paradoxo.
Estou a escrever este texto como se fosse um iniciante, mas esta insegurança emocional nasce da busca em encontrar o formato certo para a minha análise. O ângulo correto, a ideia concreta, a mensagem que quero passar. Não só o conteúdo, como o formato do texto, ambos importantes para a minha escrita. Numa primeira versão, deixei-me levar pela forma, nem tanto pelo conteúdo, e planeei um esquema de “argumento/contra-argumento” para comprovar que Crow Country, ao contrário de tantas outras homenagens, consegue capturar a alma dos survival horror ao não se limitar às referências e à imitação. A SFB Games bebe da mesma fonte que tantos outros jogos indies teimam em esgotar, como o recente Plastomorphosis, mas procurou primeiro definir o que era Crow Country, qual a sua metodologia, narrativa e mecânicas para depois, por fim – e aqui arrisco-me a chegar a conclusões apesar de conhecer pouco sobre o seu processo de desenvolvimento -, implementar todas as suas ideias ao género de terror e sobrevivência clássico.
O resultado é uma campanha curta, segmentada por várias zonas que compõem o titular parque de diversões, agora encerrado e envolto em controvérsia. Crow Country coloca-nos no papel de Mara Forest, uma jovem determinada em encontrar Edward Crow, fundador do parque e desaparecido há dois anos, cuja identidade está envolta em mistério. Nas ruas sujas e abandonadas do parque, entre diversões paradas e mascotes bolorentas, encontramos apenas os sinais de um passado atribulado, um parque sem pessoas ou vida, parado no tempo, cuja nostalgia colide na perfeição com o estilo visual de Crow Country. Uma câmara isométrica, mas controlável, modelos poligonais em 3D, muito inspirados pela estética 32-bits, repletos de formas geométricas exageradas, mas cujos modelos jorram personalidade e um design muito caraterístico – com roupas diferenciadoras e apontados estratégicos no seu desenho, como a mancha de sangue na roupa de Mara e o seu cabelo roxo -, enaltecidos pelos cenários pré-renderizados que relembram não só os jogos de terror e sobrevivência, mas toda uma arte perdida da quinta geração de consolas. É como se estivéssemos de volta a Midgar, na sua versão original, mas sem ângulo fixos e uma maior liberdade de controlo.
Este seria o meu ângulo: como Crow Country é capaz de adaptar um género e estética melhor que muitos outros jogos indie. O design da análise seria um relatório científico, com perguntas e respostas, argumentos e contra-argumentos, mas vejo-me incapaz de colocar eficazmente por palavras o quanto adorei Crow Country para que vocês, leitores e habitantes do outro lado do ecrã, possam compreender devidamente a minha opinião sem me deixar levar por hipérboles. Talvez esta incapacidade nasça do facto de ter sido apanhado de surpresa pelo foco que Crow Country deposita sobre a exploração e a resolução de puzzles em detrimento do combate, que é, sem dúvidas, o seu elemento mais fraco. Apesar de existir gestão de inventário e recursos, com balas reduzidas, vários tipos de criaturas e quatro armas para descobrirmos – algumas delas secretas e que podemos perder se não explorarmos o parque com atenção –, Crow Country apresenta um sistema de combate pouco desafiante e que requer pouca estratégia, ainda que o controlo livre da mira seja uma boa escolha mecânica.
Com quatro zonas distintas e uma zona principal, que une todas as outras, Crow Contry é um dos cenários mais intrigantes que encontrei no género e um que se serve de uma certa dissonância para criar momentos inesperados. Silent Hill 3 provou-nos que um parque de diversões é um cenário forte em oportunidades de tensão, mas Crow Country é mais arrojado na sua abordagem porque cria um longo e intenso puzzle que interliga todas as zonas. Um dos argumentos que utilizaria para justificar a qualidade superior de Crow Country seria, nesta versão hipotética do texto que nunca cheguei a escrever, definir a forma como o level design exponencia a experiência da campanha.
Ao contrário de outras homenagens ao género, Crow Country debruça-se sobre a surpresa e o deslumbramento da descoberta. Uma nova zona é uma nova oportunidade de introduzir novos puzzles e oportunidades de combate, tal como uma nova peça na narrativa principal e na backstory que compõem a campanha. A identidade única das zonas, como o mundo aquático ou o parque temático de horror, é uma motivação forte para querermos desbloquear todas as portas fechadas. Encontrar uma zona de conveniência ou uma máquina quebrada é tão entusiasmante como descobrir um atalho novo ou o laboratório submerso na Mansão Spencer.
Ao apostar mais nos puzzles e na exploração, Crow Country desafia-se a tirar partido dos seus cenários, decoração e level design em todos os momentos da campanha. Existem puzzles que requerem apenas alguma atenção espacial, com as pistas presentes no cenário, mas outros, os mais memoráveis, levam-nos a manipular as diversões em campo para desbloquearmos um segredo ou item importante. Um desses puzzles requer que ativemos quatro estátuas de dinossauros ao utilizarmos um tridente que reage magneticamente com elas. Se conseguirmos ativar as estátuas em simultâneo, o baú é aberto e o item é nosso. O que acho ainda mais delicioso é que estes puzzles são, em parte, atividades inerentes ao parque, realizadas pela sua equipa ao público presente. Crow Country pega no seu tema e adapta-o ao não força-lo a conciliar-se com o género de terror e sobrevivência, mas antes a encontrar um ponto de equilíbrio entre os puzzles exagerados do género com os cenários coloridos, animados e familiares das zonas temáticas.
A construção do parque é uma enorme vitória para a SFB Games e que revela um cuidado exímio na estrutura da campanha. Nunca senti que estava preso por motivos artificiais ou que existiam falhas lógicas na forma como um puzzle estava associado a outro. Apesar de existirem puzzles menos acessíveis e que representam picos inesperados de dificuldade, a harmonia é constante e podemos senti-la através dos atalhos em campo e da forma como os documentos colecionáveis criam uma enorme teia de informação ao longo da campanha. Em alguns momentos, podemos encontrar documentos que falam sobre uma peculiaridade das diversões ou então um adereço que a equipa utiliza para realizar uma das atividades de grupo no parque muito antes de encontrarmos ambos. Por exemplo, os documentos podem descrever um tridente que será depois utilizado no puzzle que descrevi anteriormente ou então explicar como podemos ativar a fada da floresta que abrirá um caminho até ali indisponível. Estas descrições ficam connosco, deixam-nos mais atentos e dispostos a montar o puzzle maior nas nossas mentes. Com melhores atalhos a ficarem disponíveis na reta final da campanha e os puzzles a coincidirem entre si – uma chave dá acesso a uma zona nova que nos permite encontrar um item que servirá finalmente para resolver um puzzle que encontramos na zona inicial do parque –, Crow Country sente-se complexo, entusiasmante, sempre misterioso e muito mais expansivo do que realmente é.
Ao utilizar o design do parque, inerentemente dividido por zonas distintas, Crow Country constrói assim a estrutura clássica do género de terror e sobrevivência. As portas fechadas, as zonas inacessíveis, as pistas que encontramos em documentos colecionáveis, os puzzles que se multiplicam por várias tarefas secundárias e os atalhos que interligam as várias regiões do parque são um reflexo do design que ainda hoje encontramos em Resident Evil, Silent Hill e Project Zero. A grande diferença, e é aqui que considero que Crow Country soube defender a sua entrada no género sem perder a sua personalidade, é que a SFB Games manteve a campanha focada numa ambiência mais melancólica e assente na exploração, onde os puzzles são soberanos no desenrolar da campanha. O combate está sempre presente, mas é muito mais opcional do que noutros títulos semelhantes e são os puzzles que aproveitam os espaços e ritmo lento de Crow Country. Um parque temático que é espremido até ao osso, onde tudo é aproveitado e adaptado à jogabilidade, sem deixar mais por explorar devido à densidade de momentos de combate, aventura e dedução.
No processo de “tese/antítese/síntese” que queria aplicar à versão inexistente da minha análise, versão essa que nunca foi escrita devidamente e que vive agora como ideia nesta área intitulada de crítica de videojogos em Portugal, ficou claro que a narrativa de Crow Country e a forma como a sua história é contada são dois pontos de destaque que merecem ser analisados devidamente. Infelizmente, faltam-me as palavras, é o que dá saber falar mal e nem sempre bem do que analiso, mas dizer que fiquei impressionado é pouco porque sabe a falso, a visto e revisto, repetitivo. Mas foi o que senti. Os momentos de humor são, por vezes, forçados, mas admiro a determinação da SFB Games em aligeirar o tom de Crow Country, sem temer quebrar a ilusão de que estamos num videojogo, cujo realismo não é um foco. Apesar da introdução de humor e diálogos mais ligeiros, defendo que Crow Country é uma história muito mais melancólica e perturbadora do que aparenta ser.
Os primeiros momentos são seguros, como se Crow Country procurasse primeiro ser uma homenagem e tivesse pouco interesse na história que quer contar, mas as peças são montadas a um ritmo lento. A motivação de Mara, a nossa protagonista, o papel das personagens secundárias, como Natalie e Tolman, filha de Crow e um dos funcionários do parque, respetivamente, tal como a introdução de uma operação secreta que está a ser realizada nas entranhas do parque. A implantação destes elementos é muito satisfatória e eficaz a criar o seu mistério porque deixa o jogador encaixar as peças à medida que introduz novos elementos à narrativa. Primeiro encontramos um documento sobre ouro, depois uma zona de processamento e outra de escavação até, por fim, compreendermos o que se passa. O mesmo é aplicado aos Guests, as criaturas de Crow Country, seres humanoides que se assemelham a cadáveres putrefactos e num estado permanente de decomposição, onde a sua capacidade de vocalização dá-nos vislumbres sobre a sua natureza por mais estranha e revoltante que seja a sua forma.
A melancolia é palpável enquanto caminhamos pelas ruas agora vazias de um parque que devia estar repleto de vida, luz, cor e vozes. As diversões e animatrónicos estão desligados, sentimos que existe uma camada de pó persistente pelos cenários, passamos por lixo acumulado e um silêncio que é pontuado pela harmoniosa banda sonora. A forma como os Guests se movem, agora literais visitantes no parque, perdidos e desnorteados, como se estivessem à procura de algo – talvez uma saída, talvez algo mais – que nunca poderão encontrar também enaltece a tristeza inerente a um espaço repleto de mascotes coloridas, brincadeiras visuais e outros artifícios quase humorísticos que pontuam a decoração de um parque de diversões. É uma combinação peculiar, mas que funciona tão bem devido ao estilo visual nostálgico de Crow Country, onde a estética retro combina perfeitamente com os cenários pré-renderizados e os modelos poligonais das personagens e criaturas. A transformação progressiva do parque, com mais criaturas e alterações climatéricas ao longo da campanha – tal como novos efeitos volumétricos e de iluminação -, é mais uma camada na excelente ambiência de um jogo que vai além das suas inspirações.
Por mais que escreva e pense em formatos diferentes para a minha análise, com mais ou menos sem mais ideias e palavreados, sinto que ficou algo por dizer. Esta é uma sensação comum sempre que escrevo sobre um videojogo que adoro genuinamente. Por mais coesa e fechada que seja a minha análise, melhor ou pior escrita – com ou sem qualidade, aí já poderão definir isso melhor que eu -, não consigo afastar a sensação de estar algo em falta. Crow Country foi uma experiência tão rica, capaz de captar o que adoro num género que me acompanha desde a infância, que as palavras são poucas e o seu significado nem sempre perfeito para o que quero exprimir. Este é um problema unicamente meu, não só por revelar as minhas fraquezas enquanto crítico, mas também a ingenuidade com que gostava de manter certas experiências privadas. Há algo belo em simplesmente jogar, sentir e guardar algo que é apenas nosso. Quando decidimos ser críticos temos de compreender que a nossa opinião, boa ou má, serve um propósito maior e não pode ficar restrita a nossa esfera pessoal. Como críticos, é suposto querermos partilhar, aconselhar e encaminhar os nossos leitores, mas depois de vários anos, sinto-me como o reformado que adorava simplesmente viver as experiências em vez das imortalizar em páginas que só leio enquanto faço a revisão. Depois deixam de ser minhas, são vossas, para vocês lerem ou então ignorar, quem sabe em igual medida.
Resta-me então dizer o que é suposto dizer, com poucos floreados e psicanálise, sem experiências na forma e na estrutura tradicional de uma análise, direto e sucinto agora que as páginas chegam finalmente ao fim: Crow Country é um excelente jogo de terror e sobrevivência que merece o vosso tempo e é tanto uma homenagem sincera, como uma experiência única e cheia de personalidade. Um dos meus jogos favoritos de 2024.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Neon Hive.