Nunca uma visita ao museu foi tão empolgante como neste point and click que chegou recentemente às consolas.
De certeza que já ouviram a expressão “parece um quadro em movimento” para descrever a arte e estilo visual de um filme ou videojogo. Esta comparação, que nasce da direção artística, nunca foi tão direta e real como em The Procession to Calvary, um título point-and-click, saído da mente de Joe Richardson, que utiliza várias obras de arte renascentista para contar a sua estória sobre uma guerreira sanguinária desgostosa com o final da guerra que consumiu o seu país.
A combinação entre pinturas, que culmina num corte e recorte de várias obras num só cenário, constitui todo o mundo de The Procession to Calvary. Apesar da animação rudimentar, com os modelos a moverem-se limitados pela sua perspetiva, os quadros dão vida a uma realidade surreal onde campos se enchem de Messias fingidos, que afinal são mágicos de rua, de cavernas com adoradores de Satanás – acompanhados por um coro de gatos –, ou edifícios megalómanos que refletem a mesquinhez das várias castas sociais numa crítica mordaz à História da Humanidade. E tudo isto sem abandonar uma única vez o seu estilo particular, mantendo a atenção numa tela virtual e gigantesca, onde as comparações à obra de Terry Gilliam e dos Monty Python seriam impossível de não tecer.
É um estilo muito próprio e que raramente vemos neste meio com uma determinação tão louvável, no sentido em que Joe Richardson nunca se expande para além do conceito do jogo. Apesar do caos visual, existe uma mensagem, um olhar artístico e um tema recorrente que interligam a loucura que encontramos nas montagens. O absurdismo é tão reconfortante que se torna eletrizante descobrir que bizarria iremos descobrir de seguida, com o jogo a nunca desiludir ao longo das suas três horas de duração. Num momento poderemos estar a roubar a cabeça de um homem crucificado – vendida por uma senhora que está a criar merchandising em torno da crucificação – ou a utilizar uma doninha para forçarmos a abertura de uma janela. E o mais surpreendente em The Procession to Cavalry é a sua coesão lógica com regras bem definidas dentro do seu mundo, o que o torna num dos point and click mais acessíveis que já joguei.
Se a arte é o seu ponto de venda, o humor é seguramente o que vos irá manter presos à sua mescla de épocas e estilos artísticos. As comparações a Monty Python não se ficam pela arte e pelas animações de Terry Gilliam, mas sim pela aleatoriedade do seu humor, que é muitas vezes depreciativo e de ocasião, mas sempre inteligente e mordaz enquanto crítica. Existem piadas mais físicas e fáceis, caindo num humor mais escatológico, mas o tom é consistente e a escrita é muito forte, não necessitando da representação de atores para dar vida aos momentos mais peculiares da campanha. É o equivalente a uma série de humor inglesa, de seis episódios, ou a uma longa-metragem de alguns dos melhores artistas do meio, onde a inteligência se mistura com o absurdismo e um tom mais popular para brincar com temas atuais.
No fundo, The Procession to Cavalry foi divertido do princípio ao fim e deixou-me rendido ao seu humor, mas existe, claro, uma certa subjetividade associada à experiência que proporciona e o que é uma piada forte para mim poderá ser uma oportunidade perdida para vocês. Porém, sinto que Joe Richardson foi muito inteligente na forma como conciliou o humor com as obras de arte escolhidas, e mesmo que não se deleitem, como eu, pelas aventuras desta guerreira sem paciência, existem pormenores suficientemente interessantes que irão satisfazer os amantes de História de Arte. É uma continuação perfeita para Four Last Things, o projeto anterior de Richardson, que utiliza o mesmo estilo visual.
Há um pouco de tudo em The Procession to Cavalry, o que é um feito para uma campanha tão curta, mas consistente e sem pontas soltas ou momentos mortos, onde todas as sequências complementam perfeitamente a nossa viagem em busca de Heavenly Peter, o antigo tirano do país. A narrativa não perde tempo com trivialidades e coloca a nossa guerreira, desgostosa com o final da guerra e da carnificina, em busca desta figura tirânica enquanto observa o mundo à sua volta a mudar lentamente. O humor exponencia o conceito e tal não seria possível, na minha opinião, se The Procession to Cavalry se esforçasse em criar situações desnecessárias para aumentar a sua duração. O seu conceito é invulgar, mas só funciona num ambiente controlado e com limites muito definidos, e Richardson foi inteligente na sua abordagem.
Como se trata de um point and click, a duração de The Procession to Cavalry irá sempre depender da vossa destreza na resolução dos quebra-cabeça, mas posso confirmar que é uma das experiências mais acessíveis que já encontrei no género. Com um cursor, podemos mover a personagem ao longo dos cenários e aceder a pontos de interesse bem definidos nos cenários – e longe dos tempos de pixel-hunting –, onde têm a possibilidade de falar, observar ou tocar nos objetos e pessoas. Também existe um sistema de recolha de itens, que fica localizado no topo do ecrã – num menu escondido –, onde poderão arrastar intuitivamente os itens para os mapas. E existe também a oportunidade de matarem grande parte das personagens. Para tal, só precisam de brandir a vossa espada, mas fica o aviso: gravem sempre antes de tentarem tal façanha.
Os puzzles não sofrem de lógicas tresloucadas ou irrealistas e o jogo faz um excelente trabalho na exposição de dicas e na aplicação das regras do seu mundo. Mesmo com um humor absurdista, The Procession to Cavalry funciona sobre uma lógica interna muito forte e nunca me senti perdido ou frustrado por não saber o que tinha de fazer, mas sim envolvido e até motivado a experimentar regularmente com as peças que tinha. Com uma campanha curta e direcionada, cria-se também uma ligação perfeita entre os vários acontecimentos, com um problema a dar origem logicamente a outro, sempre intercalados pelo excelente sentido de humor. E mesmo que tenham problemas em identificar todos os pontos de interesse, o jogo tem a opção de tornarem visíveis os objetos interativos nos cenários.
Penso que já perceberam que adorei o meu tempo com The Procession to Cavalry, ao ponto de ver os seus três finais e todas as tarefas/ações secundárias. A minha cara moldou-se num enorme sorriso como não acontecia há muito tempo e as gargalhadas, a alta voz, foram uma constante. Pode não ser o point and click mais inspirado a nível mecânico que encontrarão no género, mas é um jogo seguro de si e da sua identidade, cuja confiança jorra por todos os seus poros: não só na arte, como na sua excelente banda sonora, que é acompanhada por composições de Bach, Beethoven, Vivaldi, entre outros.
É o equivalente a jogarmos um episódio de Black Adder, mas com a acidez de Black Books e o surrealismo de Garth Mareghi’s Darkplace. Resumindo, é recomendado para todos os fãs de bom humor.
Disponível para: PC, Xbox One, PlayStation 4 e Nintendo Switch
Jogado na PlayStation 4
Cópia para análise cedida pela Digerati.