E que rico dia!
Nouvelle Vague é uma piada num alinhamento de Coura, e usar o termo bossa nova para caracterizar aquela criação deveria dar cadeia na prisão da música. Estamos a mundos de distância de Tom Jobim (anda aí um documentário sobre a mítica sessão com a temperamental Elis Regina), João Gilberto ou Vinicius de Moraes. Quis o destino que a cópia muzak que atormenta milhares de pessoas a pagar preços exagerados em restaurantes aterrasse no habitat natural da música. O público disperso que por ali andava alinhou em boa medida no quiz musical de tentar perceber quem tinha feito o original. Da próxima façam na vila, que há quem se queixe que os campistas já não visitam o centro como antigamente e que o festival já está bastante desligado da realidade circundante, fora os preços pornográficos das estadias.
Os Allah-Las são de fina estirpe rockeira da Califórnia, um daqueles estados norte-americanos que poderiam muito bem ser países. A banda de “Strawberry Jam” chega ao Vodafone Paredes de Coura com prestígio subterrâneo e, num palco Yorn que, em termos de média de interesse, tem sido o campeão desta edição, não desiludem. Guitarras boas para o fim da tarde, aquele sunsê direccionado para o aficionado da música. Das vezes em que o horário e local fizeram sentido no festival.
Cat Power é comprido mais difícil de engolir, mesmo que depois de o tomar isso passasse, como recomendava o mestre António Variações, homenagem minhota ao natural de Fiscal. É uma figura difícil de observar em palco, múltiplos tiques, canecazinha de chá nervosamente bebida, leitura das pautas frequente, as costas a dizer fuck war a destoar do conjunto de cor branca. O historial difícil (expressão equivalente de doença prolongada para falar de vícios sérios) nota-se, mas Chan Marshall tem talento. O seguro de vida que é cantar Bob Dylan – ideia esperta mas que para não ser chico-espertice precisa de quem saiba da poda – começa de forma atabalhoada, mas após o início chato no meio dá à chave a carrinha 4L e arrebita as orelhas felinas.
Acerta na mouche em “I Don’t Believe You (She Acts Like We Never Have Met)”, o ato fundamental à resposta à acusação de Judas pelo abandono da guitarra acústica do folk, do Woody Guthrie da this machine kills fascists, a resposta ao público de You’re a liar, o clique, o ponto alto em Manchester em cima de Blonde on Blonde. Também gostamos muito de Leonard Cohen, mas o Nobel está bem entregue. “Like a Rolling Stone” até para a geração tiktok resulta, esta caiu bem no final.
Benjamim é da casa genuinamente – sabe perfeitamente que se diz Coura e não Paredes. É acarinhado, diz logo que aquele é momento mais feliz do meu ano, cabeças até perder de vista no palco Yorn (secundário é termo que não faz sentido aqui, à falta de melhor vai o patrocinador). “Atrofia” com As Berlengas, o mais recente álbum, a seguir entra nos clássicos, chama Samuel Úria a palco – outro dos amigos de Coura e que veio atuar à abertura da exposição na Casa Courense em Lisboa no ano passado -, mete Femme Falafel (Raquel Pimpão para efeitos de bilhete de identidade) na banda, e fecha com “Terra Firme”, na certeza que já é hino. O festival que dá certo.
Girl in Red é toda outra cena, muito internacional. Norueguesa de sotaque profundamente americanizado à procura de conquistar o mundo, labaredas fortes para impressionar – desde logo os fotógrafos que não foram avisados e podiam muito bem ter incorrido num incidente grave. Marie Ringheim é tarte na cara na conversa com o público: fucks a torto a direito, explicar com desenho no quadro do seu lesbianismo, o toque de vedeta de que esteve no outro dia no Hawaii e agora está no middle of nowhere cheia de jet leg. A pretensão não tem fim, mas as músicas são orelhudas e a garotada come às colheradas. “We Fell In Love in October” é uma evidência, o encaixe com o público é claramente acima do que foi por exemplo com Lorde o ano passado. Está a dar tudo para tentar ser estrela, a narrativa é querida pela indústria e, pela amostra, está no caminho certo.
Os IDLES já não são novidade nem para os mais desatentos, e de que são sucesso nem há tema. Desde logo merecido porque trabalham para cacete. Se ser a nona vez em Portugal pode parecer muito para os escansões da frequência de concertos, basta ver os 346 concertos registados no Reino Unido, de acordo com o setlist.fm. Não gostavam de ser de um reino, o fuck the king lançado a altos berros para o público no meio de vários gritos pela Palestina, o credo corbynista no seu formato mais puro. Fosse 1977 e Malcolm McLaren o agente deles e isto poderia agredir, mas não é, e “God Save the Queen” dos Sex Pistols tem um lugar na história num patamar bem à parte. Em 2024 a mensagem é recebida de forma banalizada e sem consequência, mas não obstante há a energia visceral de quem mete “Never Fight a Man with a Perm” ou “Dancer”. Menos confessionais que há dois anos, o apelo ao respeito pelos emigrantes que vêm trabalhar para cá e para lá remete para uma mais interessante agenda por um trabalho digno. Estão no pico e apanham todos. Crista da onda.