E assim foi o segundo dia do Couraíso.
Dia da Assunção de Nossa Senhora aos Céus, muitas festas e romarias pelo Alto Minho e por Coura, mas a caminho do recinto do festival por Rubiães São Roquinho já não está animado com bombeiros e muito povo, como aconteceu no dia anterior. Já o estacionamento pelas horas pós-jantar dá a entender que há mais presentes que no dia anterior, a contrariar as expectativas que o primeiro dia é que iria ser o de maior público.
Chega-se a tempo de apanhar a última metade do concerto de Wednesday, cheios de moral pelo sucesso de crítica que é Rat Saw God. Em termos instrumentais é banda bem acima da média, com influências de um southern rock americano com camadas de shoegaze e, embora a alma do pedaço – a vocalista e guitarrista Karly Hartzman – não ser, de todo, grande talento vocal, a mensagem das histórias de vida cantadas com uma memória e detalhe prodigiosas elevam o conjunto acima de mensagens genéricas. Sabem bem de onde são e o que querem.
Num mundo com falta de referências rock para ser cabeças de cartaz, pergunta-se porque é que não são “maiores” as Sleater-Kinney. Serem estreia em Portugal no ano da Graça de 2024 é, no mínimo, bizarro. São bem melhores que os Kings of Leon ou até que os Foo Fighters (com todo a simpatia para a figura de Dave Grohl), as canções estão lá (“Hell”, single deste último Little Rope, mostra isso com direito na lareira e sala de estar em pano de fundo). As de Olympia não podiam estar mais em voga no mainstream pelo feminismo e pelo mais vale escrever em estrangeiro ethos progressive. Porém, nem os ventos da história ajudam a contrariar a sensação que esse barco já partiu, pelo menos por estes anos. O momento teria sido The Woods (de 2005), ou o belíssimo No Cities to Love (de 2015, após hiato de vários anos). Provavelmente demasiados hiatos, demasiados outros projetos, Corin Tucker não esbanja carisma em palco, mas isso é amplamente compensado por Carrie Brownstein a ser heroína do rock e a dar passinhos de um lado para o outro com as calças boca de sino e sapato bem bicudo. O público meio interruptor – às vezes para cima, às vezes para baixo, não sendo a turba de braços abertos que as deveria estar a receber. Mas vieram finalmente e, no campeonato riot girrrl, fizeram prova de vida que estão noutro patamar, por exemplo relativamente a Le Tigre, que vimos recentemente. Fica a ideia que a maré vaza em breve, mas pode voltar a encher, desde que haja vontade.
Los Bitchos foram bons condutores de festa, ambiente para conversa de quem estava mais ao fundo do palco Yorn, antes da enchente gigante de L’Impératrice. Desta vez com um palco mais sofisticado, letras grandes num pódio no centro do palco, e a recordação da vocalista Flore Benguigui de que 2022 foi o melhor concerto da história dos franceses. Não custa a acreditar. Foi um momento de clique raro e completamente visível nas reações de quem estava a atuar, de um público generoso que quis que se tornassem maiores. A surpresa não é a mesma até porque esse mito chegou longe e a curiosidade de ver o concerto atraiu com certeza muitos, verdadeiro epifenómeno que ajuda a explicar a contratação em 2024 de quem passou há apenas dois anos. É demasiado cedo para um festival que se orgulha em descobrir novos talentos? Claro que é (fenómeno igual aliás aplica-se a IDLES), mas este segundo dia parecia a olhómetro mais cheio que o primeiro, portanto tem os seus resultados práticos. Na altura com corações luminosos ao peito, hoje com armaduras ornamentadas com luzes brancas, promete-se tentar um concerto ainda mais louco. Não são os Daft Punk por quem tantos suspiraram que aparecessem no fecho dos Jogos Olímpicos de Paris, mas fazem a festa e o público não pára de reagir. Mesmo com este último Pulsar a falhar no capítulo malhas nível “Agitations Tropicales”, quando assim o é não há muito a dizer e o merci beaucoup final foi recíproco.
Entre esta enchente popular e a seguinte de Slow J, os Protomartyr partiram tudo e deram uma chapada bem merecida de pós-punk no público. Joe Casey já foi comparado a tudo, porque no mundo da música poucos se lhe comparam. A nós fez lembrar o ator britânico Roger Allam, outra das grandes vozes, em especial no seu papel na adaptação cinematográfica de O Hipopótamo, de Stephen Fry. Fato preto, lata na mão, o ar blasé de quem sabe tudo mas está com tudo desiludido. Um vencido da vida que chuta canções de craveira como “Maidenhaed”, “The Devil in His Youth” ou “Pontiac 87”. Quem tem alguém assim em palco tem tudo, verdade em vez de estilo.
Slow J veio em tournée com a certeza que já tinha a casa ganha, Afro Fado assim o garante. Entra em palco a mesma dinâmica da sessão dupla de Março no Altice Arena, aqui em versão mais pequena. São, ainda assim, cinco instrumentistas em palco, com destaque para João Caetano na percussão. Slow J tem a vantagem das ideias claras e, sem ser um diseur como Carlão, passa a sua mensagem de forma fluída, pois a ligação do fado ao hip hop por via de kizomba e outras influências menos viscerais e mais digitais resulta tão natural que o público a aceita sem barreiras. Há “Vida” e “Fogo”, claro. João Coelho está visivelmente feliz, de Setúbal já conquistou o país. É bonito quando tal acontece, e faz lembrar quando se fez o dia dos artistas portugueses e que boa ideia seria manter tal prática…
À saída, os irlandeses Sprints dão boas indicações que ao vivo Letter to Self mantém o nível de receção que teve da crítica. É de manter o olho neles, que estes frutos de garagem da cantera da ilha esmeralda prometem. Karla Chubb diz que este é o best festival of the summer. Tendo em conta o roteiro que tiveram nestes meses, é no mínimo simpático.