Não é exagero nenhum reconhecer que a avalanche de turistas que preenche as ruas de Alfama, e não só, na Lisboa de hoje, subiu substancialmente a fasquia do empreendedorismo turístico na área das ditas “casas de fados”. E há também quem já tenha percebido que, nesta área, o fazer bem, quer na oferta gastronómica quer na prestação artística, é a verdadeira alma do negócio. Em Alfama, fomos conhecer justamente um desses espaços, a Velha Taberna.
Já lá vai o tempo em que ir a um restaurante ou casa de fados podia redundar num petisco enviesado: um bife demasiado rijo servido entre paredes lúgubres e um fadista, em geral rouco, que encarnava com maior ou menor garra a cultura castiça de viela.
A boa notícia é que, hoje em dia, estamos um pouco mais à frente. A oferta diversificou-se. O conceito de um jantar com “uns fadinhos” à mistura disseminou-se de tal maneira no panorama dos bairros turísticos lisboetas, que tem vindo a dar lugar a espaços onde a mais típica das tradições portuguesas é honrada com uma aposta séria em menus de qualidade e cabeças de cartaz que fazem desta experiência algo realmente único.
Antes de mais, o fado não é espetáculo; é um estado de alma, é um “fogo que arde sem se ver”, usando a famosa expressão do poeta Camões.
O próprio termo “fado” tem uma longa e rica história linguística e cultural. Entre os nossos antepassados romanos, fatum queria dizer “sorte”. E através da névoa dos tempos foi esse significado que prevaleceu com mais intensidade: o fatal destino. Por isso, o fado tem hora marcada, sim senhor, não porque tenha horários, mas porque é um ponto mágico no tempo, um “aqui” e um “agora” que celebra forças tão incontroláveis como a saudade chorosa, o infortúnio, a inquietude humana.
É assim que o jantar, o fado, o convívio acontecem na Velha Taberna: sem hora marcada, mas como convite à celebração de um momento e de uma cultura únicos.
Depois de darmos com a porta da casa, no pulsante coração noturno de Alfama, à rua das Escolas Gerais, fomos conduzidos por umas inevitáveis escadinhas íngremes, como todos os hóspedes, até à profundeza de uma segunda sala. Aí deparámos com um interior exíguo com alma e bastante agradável. A transição do bulício da rua para essa sala acolhedora mergulha-nos numa atmosfera intimista imediata. As paredes parecem reter sussurros.
A princípio, estranha-se, mas depois somos rapidamente atraídos pelos aromas da cozinha da Velha Taberna, pelo ambiente saudosista (logo à entrada, não falta em cima do balcão de mercearia uma velha balança branca de ponteiro), pela cortina de veludo preto cobrindo a parede ao fundo, os candeeirinhos de vitral verde em cada mesa… Todo o cenário se materializa numa dimensão de espetáculo em preparação, de uma teatralidade de que, ao fim e ao cabo, fazemos parte.
Não nos espanta que Camões tenha andado por ali, a pavonear-se, a petiscar uns passarinhos fritos, namoriscando, declamando umas endechas lamuriosas à mistura, pois na Velha Taberna sentimos que partilhamos inevitavelmente o lugar com toda uma memória e uma portugalidade que se passeia para sempre por aquelas escadinhas, aquelas travessas, aqueles tascos exíguos e tendeiros, alguns deles onde os nossos poetas se misturaram com fidalgotes, marujos e demais populaça, em conversas, despiques, negociatas ou algazarras.
Sentámo-nos numa das várias mesinhas quadradas da Velha Taberna. O ambiente é quente, íntimo, e algumas pessoas estão sentadas em cadeiras com encosto, outras em bancos. Os candeeiros de mesa, feitos de fragmentos de vitral estilo Tiffany, espalham uma luz dourada sobre a Taberna e os rostos dos visitantes – há-os ali de todas as nacionalidades, vindos um pouco de todos os lugares.
A portugalidade reafirma-se até na história de vida dos próprios promotores da Velha Taberna, João Cardim e a conhecida fadista Joana Amendoeira: ela, cujo canto de ave esvoaça sobre o véu da noite, e ele, um português do mundo, que já percorreu continentes e conheceu outras gentes, desde o Pacífico ao Oriente.
Ali, está-se descontraído, mas há um sentimento de respeito partilhado. Mara, a empregada de mesa, é especialmente atenciosa: é como se pertencesse ali, e não apenas alguém que ali trabalha. Fazemos-lhe perguntas, e ela, com natural simpatia, apresenta-nos o menu.
A curiosidade recai sobre as sugestões da casa, e a resposta é um rol de clássicos com assinatura própria. “Como entradas, certamente o Camarão ao Alho e Piri-piri, o molho é divinal”, afirma Mara, numa descrição que se revelaria, mais tarde, precisa e justa. Seguem-se os Pimentos Padron na Chapa, “com sal grosso, muito bom”, e o inevitável Pastel de Bacalhau, “feito cá também, muito típico e bastante pedido”.
Mas é a Sopa Antiga que capta a nossa atenção. “Antiga, porquê?”, perguntámos. O nome não é marketing, mas um tributo ao saber acumulado, porque é uma receita, de facto, mais antiga, recuperada do acervo de pesquisa dos vários Chefs que têm passado pela Taberna e ajudado a fazer a sua história. “A sopa é encorpada e espessa”, explica-nos Mara, esclarecendo que se trata de uma sopa de feijão verde, num regresso a um Portugal mais rural e frugal, mas com a peculiaridade de ser enriquecida por amêndoas laminadas. Provámos, e ficou claro: não só o Chef honra a tradição passada, como as avós sabiam o que faziam.
A lista de entradas prossegue, com aparência robusta: Morcela Assada, Chouriço Assado, Espetadas de Atum, Tábuas de Queijos e Enchidos, e o Atum Marinado, referido como “a última entrada na carta”.
Nenhuma refeição numa casa desta estatura está completa sem um bom vinho. A garrafa sugerida pelos donos da casa é um Lua Cheia DOC Douro 2022 – Andreza Reserva, que nos pareceu, sem sombra de dúvida, um bom companheiro de viagem. Um tinto do Douro, com 13,5% vol, produzido a partir das castas nobres Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinta Roriz, e envelhecido em barricas de carvalho francês. O particular aroma deste tinto a frutos negros e especiarias é um contraponto aos sabores fumados das entradas e um reforço dos pratos principais. O seu perfil é robusto o suficiente para se conjugar com o piri-piri do camarão ou mesmo, para quem os preferir, com a morcela e a intensidade do chouriço. Também possui a elegância e harmonia desejáveis para acompanhar o doce apimentado do bife de atum e a suculência das carnes que foram sendo servidas, pelas várias mesas, ao longo da noite.
Portanto, um vinho que, tal como o fado, tem história para contar – uma narrativa de vinhas velhas de Alijó que encontra ali o seu epílogo à mesa, no coração de Alfama. Contudo, são as especialidades do menu da Velha Taberna que definem o caráter eclético da cozinha.
O prato estrela é, inquestionavelmente, o Bife de Atum à Moda dos Açores, servido com batata e pimentos assados. A descrição da preparação – “o atum é braseado, que é como o chef sugere” – antecipa uma conjugação de sabores que se revelou, de facto, “muito gostosa”: a deliciosa posta de atum veio condimentada por pequenos grãos de pimenta vermelha que nos transportaram para longínquas paragens. Estava, realmente, uma delícia.
A dupla dinâmica da cozinha portuguesa está muito bem representada neste menu. É que, ao atum, juntámos um Bacalhau à Lagareiro, com batata assada e espinafres salteados – um prato de aspeto elementar que, depois de testado, surpreendeu pelo seu paladar saboroso e confeção primorosa.
Para quem prefere carne, existem outras duas opções, que são o Bitoque do Lombo com ovo a cavalo, batatas fritas e salada, e os Lagartos de Porco Preto, também acompanhados por batatas fritas e salada, que nos pareceram mais bem servidos do que os pratos de peixe, e com muito bom aspeto – até pelas batatas fritas, douradinhas, temperadas de orégãos e pimentão doce. Cada vez que um desses pratos chegava à mesa, ouvia-se um “Oh!” de apetite e gula.
Num gesto contemporâneo, a casa também oferece uma alternativa vegetariana, o prato Vegetariano de Cogumelos Recheados com mousse de queijo de cabra, tapenade e pistacho, uma prova de que a tradição aqui não é estática.
A gestão da Velha Taberna está a cargo de João Cardim e Joana Amendoeira, mas por trás destes sabores está a mão do Chef Rúben, natural do Bangladesh, que se junta à equipa com a sua vasta experiência e criatividade, conferindo uma perspetiva única aos pratos apresentados.
A segunda parte da noite tem a ver com a alma do lugar, de que falava há pouco. As luzes decresceram, como se alguém dissesse “faça-se silêncio, que se vai cantar o fado”.
A transição entre a refeição na Velha Taberna e o espetáculo é quase litúrgica. Um apelo ao “máximo de silêncio possível” ecoa pela sala. Não se trata de um pedido de etiqueta, mas de um requisito fundamental para o ritual que se avizinha. O fado exige escuta, não é música de fundo. A noite promete, a expetativa é palpável.
A primeira a entrar em cena é Daniela Giblott. Ponto de referência do repertório do fado, interpreta composições bem conhecidas da constelação do fado, em que sobressaem magníficos poemas de Carlos Ary dos Santos, um dos grandes nomes da poesia e da música portuguesa.
Um desses fados é “Júlia Florista”. Para quem não sabe, esta canção é um tributo a uma figura típica da Lisboa boémia, uma vendedeira de flores cuja graça é cantada pela voz da artista e pela mestria da guitarra e da viola, que acompanham. A letra pinta uma cidade paralisada pela voz da bizarra florista, um testemunho do poder que estas “personagens típicas” tinham na cultura popular.
A intérprete vai explicando, tanto em português como em inglês, o sentido: “Nós cantamos muitas canções sobre amor, como quase todas as línguas do mundo, mas também cantamos sobre personagens típicas que ficaram inscritas na nossa memória”. E, claro, sem esquecer que o fado é, acima de tudo, sobre a própria Lisboa, a sua musa permanente.
A refeição, cuja parte principal já decorreu, está como que suspensa, enquanto decorre esta “conversa” entre artistas e público, mediada pela guitarra portuguesa e pela viola.
A Velha Taberna, naquele momento, torna-se na “tasca humilde” e, simultaneamente, no “templo da tradição”, cenário descrito numa das letras, para onde outrora acorriam “pobres, fidalgos e artistas… para ouvir o fado e cantar”. A história repete-se, pois, todas as noites, mas com novos rostos.
Após a última nota se dissipar no ar, carregada de emoção, a experiência regressa suavemente ao mundo tangível. É o intervalo do espetáculo-surpresa.
As luzes crescem novamente, transição aproveitada para saborear as sobremesas: uma seleção entre o clássico Pudim Abade de Priscos, a Mousse de Chocolate, Gelados ou a Fruta da Época.
São opções bem docinhas que, como o Lua Cheia que agora termina no fundo do copo, põem o ponto final numa noite de intensos sabores e emoções.
Não nos furtámos ao Abade de Priscos, servido com folhinha de hortelã, confeção caseira, à base de produtos frescos selecionados, como tudo o resto na Velha Taberna.
Segue-se a atuação de Joana Amendoeira. A fadista, cujo nome é bem conhecido nos círculos do fado, não é apenas co-gestora do espaço com João Cardim; é a sua alma presente. A sua presença no meio daquela sala depressa concita a uma reverência silenciosa. A voz não é apenas potente; participa e dá continuidade a uma narrativa que é património imaterial de todos. Cada palavra, cada acorde é carregado de uma intenção dramática que transforma o fado no género peculiar que ele é: uma canção da melancolia.
A letra poética transborda numa torrente de imagens que nos trazem de volta a recordação do nosso saudoso Carlos do Carmo, como, por exemplo, a “Lisboa, Menina e Moça”: “…em Alfama descanso o olhar”; “Cidade a ponto luz bordada”, são alguns dos muitos versos que falam de amor, de destino e de uma Lisboa que se entretece de histórias que ficaram na memória perpétua de um povo e que até os de longe fazem questão – conforme constatámos – de ver, ouvir e conhecer.
A audiência não é meramente passiva. As exclamações, os refrões, as palmas a acompanhar vão pontuando o final das frases musicais, são parte integrante de uma performance que nos envolve a todos totalmente. São respostas emocionais, concordâncias com a verdade que está a ser cantada.
A experiência na Velha Taberna não é segmentável. Não se pode avaliar a comida ignorando o fado, nem apreciar o fado sem o contextualizar no espaço que o acolhe. Este é o trunfo de João Cardim e Joana Amendoeira. A gestão atenta destes dois investidores contempla o facto importante de que o património imaterial é um organismo vivo que se deve alimentar mas que tem, também, que ser tratado com respeito, tal como os turistas que nos visitam. A cozinha é sólida, enraizada mas não estagnada, refletindo uma arte gastronómica que sabe dialogar com o mundo. Os pratos são saborosos, com um toque de originalidade, e depois há bom vinho e sobremesas deliciosas, tudo fresco e honesto, sem vãos sombrios, sem subterfúgios, sem instrumentalizações.
Sair para a noite de Alfama, depois destes momentos bem passados na Velha Taberna, dá-nos a sensação de que, embora continuemos em plena viagem, acabámos de sair de uma celebração onde nos foi dado a sentir algo autêntico e verdadeiro, mas sem ser nada de pesado ou piegas. As luzes da cidade são as mesmas, o som dos passos na calçada tem igual ressonância, mas há uma espécie de transcendência que fica connosco. Costumo sentir isto, muitas vezes, quando saio do teatro.
É que o coração da vida noturna lisboeta não pulsa apenas na diversão efémera, mas na capacidade de lugares como este oferecerem algo mais profundo: um encontro com uma identidade cultural que, longe de ser uma relíquia de museu, continua a respirar, a comer, a beber e a cantar, todas as noites, no coração de Alfama. É uma experiência completa de lisboetice com aquela força que nos diz: “Está destinado, tens de vir conhecer!”
