Entre o drama e o chiste sarcástico, Valsa baseia-se no encontro entre dois irmãos (Siobhan e Francisco) que partilham o mesmo afeto e as marcas de infância, mas com destinos muito distintos. Tudo se passa algures, num cenário de matiz apocalíptico, em que a jovem ativista tem algo de chocante a anunciar…
Valsa, recorde-se, com encenação, direção artística e conceção musical de Catarina Pacheco, teve no passado dia 6 de abril a sua última exibição no Clube Estefânia – Escola de Mulheres, mas sabe-se já que vai subir novamente ao palco no Auditório de Alfornelos – Teatro Passagem de Nível, em data a anunciar proximamente.
Em Valsa dança-se um salto para a morte que se cumpre nas vozes dos atores Siobhan Fernandes, Francisco Pereira de Almeida e Bruno Simão, dando visibilidade a um ideal que já percorreu um longo caminho desde o passado, uma ecologia radical preconizadora do impensável, à luz do contexto hedonista do mundo hodierno: a extinção voluntária da humanidade.
É numa semiobscuridade retalhada por luzes brumosas que o espetáculo dá forma à última alvorada da personagem ativista de Siobhan, esta com ecos de heroina clássica ao tomar uma decisão ditada pelo imperativo da sua causa ativista, mas contrária à sensibilidade social.
Há vários pontos fulcrais no espetáculo que merecem ser destacados. Em primeiro lugar, um texto forte, poderoso, bem construído, de onde emergem grandes temas e as angústias da idade contemporânea: disfunção familiar e geracional, preconceito contra o veganismo, medianidade das rotinas, a crise climática, o vazio existencial sobraçado pela ilusão e pelo adormecimento fácil.
No mesmo plano de conseguimento, a performance de figuras capazes de conjugar dignidade espinhal com fluidez dramática, onde a representação sustenta com solidez duas personagens transfiguradoras bailando no jogo da crença e da descrença, da afirmação da vida e na busca de um outro fim.
Depois, a música que acompanha a peça é de uma textura soturna, mas escultural, pontuando a alternância de planos e acomodando as poucas mudanças que se dão em palco – poucas mas extremamente significativas e bem conseguidas: a figura do entrevistador, rosto de um ceticismo muito pouco neutral, e a aparição absurda do símio. O ondear de uma valsa distante, por último, irrompe do cerne de um território sonoro conhecido e convencional, como se a tranquilidade e o caos se pudessem igualar rodopiando de mãos dadas no limite da nossa perceção, que é, também, a de uma louca cegueira.
Estamos perante um teatro que não dá respostas, antes abre a porta ao questionamento e à dúvida. Com influências evidentes do filme Donnie Darko (2001), em que o protagonista é o único a ver a figura do coelho gigante, em Valsa a aparição do macaco constitui um dos pontos interrogativos mais fortes deste espetáculo e cria um incómodo definitivo, como que situando o espetador no limiar de uma nova transcendência. Sinistro, o “macacão” como que irrompe do volátil sonho da personagem de Francisco, concluindo a sua atuação com uma careta que glosa o merecido infortúnio da espécie humana: “Tenho estado de olho em ti! Gosto de te ver sofrer.”
Como em todas as obras, muitas outras opções teriam sido igualmente viáveis: recurso a meios narrativos como vídeos que enquadrem o desígnio político da protagonista (por exemplo projeção de excertos das “manifs” referidas pelo irmão), eventuais incursões, meramente pontuais, de figurantes, sem quebrar a linha minimalista da ação, entenda-se.
Mas também se pode argumentar que foi posto em cena apenas o essencial e o possível. Claro que o espetáculo teria outra respiração e outro impacto se tivesse beneficiado de condições e apoios de um outro patamar, isto, sem desprimor de quem neste caso os deu: Clube Estefânia – Escola de Mulheres, GDA, entre outros. Mas não é apenas com subsídios (sobre que, ademais, recaem grossas contribuições), que se consegue fazer emergir uma grande produção. Contentem-se os artistas com o magro salário e o suprir das despesas com o desenho de luzes, sonoplastia, cenografia (para já não falar de qualquer pretensão autorremuneratória da própria direção artística), se querem ver, como veem agora, o seu esforço recompensado com uma receita de bilheteira nada despicienda e a melhor das dádivas: uma receção bastante positiva do espetáculo.
Em todo o caso, é com este tipo de trabalho que são dados pequenos grandes passos, no sentido da experimentação, do desbravar de caminho de quem quer chegar ao grande público, isto é, a todo o público, preservando a integridade da sua visão. Este é o momento crucial para quem secundariza a sobrevivência diária em função de uma resiliência (que, como sabemos, continua a ser a maior escola de teatro entre nós) com que se investe diariamente numa ideia, num propósito, num projeto de vida a pensar na Vida com maiúscula.
Uma coisa é certa. Valsa, que faz vibrar eficazmente slogans nascidos como que de um imediato óbvio, tais como “Qual é o objetivo de salvar a Terra se no fim não vai haver ninguém para viver nela?“, não foi feita para granjear concordâncias, nem tão-pouco trocas de elogios sobre qualquer espécie de teatralidade sonante, mas sim para que uma certa verticalidade criadora possa, ainda e sempre, questionar o ser universal, para que o grito que paira sobre a perniciosa herança dos antepassados e dos que ocupam a Terra hoje soe por si mesmo.
O futuro e a experiência trarão certamente uma cada vez maior amplitude ao trabalho desta autatriz que domina várias linguagens, por vontade e formação, e escreve ao correr do que ela mesma e os da sua geração pensam e vivem.
Há que dar também os parabéns a estes jovens atores, que se bateram bem, tanto porque se apresentaram em palco no mais difícil dos papéis, isto é, como duplos de si mesmos, como porque deram voz e rosto a uma encruzilhada ecológica, talvez o maior desafio com que a humanidade se depara, até porque ainda mal o admite…
De resto, soa-nos que outros ventos poderão vir a arrebatar esta gente para longe, o que não é de estranhar quando se fala de carreira artística no atual panorama do teatro e das artes do espetáculo em Portugal. Como não podia deixar de ser.