Nunca desiludem.
São mais de 30 anos de Neil Hannon a ser um dos bardos da nossa vida. E para comemorar, foi editado um best of, formato que há uns anos renderia muitas vendas de discos compactos, tal como na época de A Secret History… The Best of the Divine Comedy, onde o norte-irlandês ainda não tinha celebrado 30 anos, mas já fazia uma compilação de 17 sucessos que chegou a disco de ouro no Reino Unido, após seis álbuns de estúdio em apenas oito anos.
Em 2022 os tempos são outros. O ritmo furioso abrandou, os restantes seis álbuns de estúdio levaram duas décadas a fazer e as vendas físicas são agora uma lógica de nicho (há duplo vinil colorido e triplo cd deluxe na loja oficial, para os interessados), e é em selo próprio que no passado dia 4 de fevereiro saiu este Charmed Life – The Best of the Divine Comedy. O prestígio, esse, mantêm-se como sempre, e as últimas duas gravações de estúdio da banda, Foreverland (2016) e Office Politics (2019), foram nº 1 do top indie britânico (como aliás os dois best of).
É um álbum que serve, também, para nova tournée para mais uma das encarnações dos The Divine Comedy, onde a única constante é Hannon. E foi a 4ª vez que este vosso escriba os viu, depois da sessão dupla em que veio sozinho armado de piano e guitarra em novembro de 2010, nos anos dourados do Teatro Maria Matos, e da apresentação de Foreverland no Teatro Tivoli, em fevereiro de 2017, onde o verdadeiro artista veio vestido de Napoleão e acompanhado por banda.
Falhada a última ida à Aula Magna (ler reportagem do Amilcar Sousa aqui), não falhámos o regresso agora, e é numa estética mais calma, de fato e gravata e acompanhado por cinco amigos nos instrumentais e com cortinados pesados em pano de fundo, que Neil Hannon entra em palco para cantar “Absent Friends”, que dá nome ao superlativo álbum de 2004.
Imediatamente vem à memória o artigo de Miguel Esteves Cardoso sobre este álbum, lido em papel num ainda semanal Blitz. Que apesar das várias referências a ícones que estão sempre a ser citados, como Steve McQueen (alô, Prefab Sprout), estamos a falar de música “a sério”, ao contrário da grande maioria que anda por aí a ser feita. Abertura maravilhosa. Logo a seguir, “At the Indie Disco” leva o relambório de citações a coisas que habitam no coração independente dos que estão sentados na sala a um nível quase caricatural, e “Bad Ambassador” relembra que há pepitas no mal amado Regeneration além de “Perfect Lovesong”. Hannon pergunta ao público se estão a perceber o padrão no alinhamento.
À divertida e noventeira “Becoming More Like Alfie” segue-se depois “The Best Mistakes”, “Catherine the Great” e “Certainty of Chance”. As músicas são tocadas por ordem alfabética, revela-se. Revelador também do sentido de humor e de procura de surpresa ao vivo que percorre desde sempre o espírito dos The Divine Comedy. É giro e é diferente.
Charmed Life dá nome à nova compilação e é nome feliz para o repertório do auto-descrito socialista champagne que lê o The Guardian e vive tranquilamente em Dublin. Hannon é um vocalista conversador e confortável em palco, no meio da escala da irmandade indie entre o eterno garoto saltitão Stuart Murdoch dos Belle and Sebastian, e a presença mais espectacular e dançante de Jarvis Cocker, a solo ou à frente do Pulp.
Continuamos suavemente até ao primeiro grande momento de saltar o rabo da cadeira, “Generation Sex”, e depois de “I Like” chega o intervalo de 15 minutos para respirar. No regresso, Hannon vem de óculos escuros e gravata tirada, e toca-se “A Lady of a Certain Age”, hino deslumbrante sobre nostalgia por glórias e desgraças passadas. Música “a sério”.
Mais tarde, “Our Mutual Friend” é outro momento alto, com a clássica queda em câmara lenta no chão do palco do protagonista de coração partido. Há bandas que passam décadas sem terem escrito nada deste calibre, enquanto os The Divine Comedy destrunfam alegremente canções assim. “Perfect Lovesong” continua a música perfeita para casais felizes, “Something for the Weekend” volta a levantar os cidadãos e os que resistiram ao impulso são ordenados a fazê-lo para a música do autocarro, a festa de “National Express”, que por esquecimento programado não tinha aparecido por alturas da letra N. No fim, “Tonight We Fly” é final da mais dourada das chaves, enquanto os olhos marejam a ouvir e concordar que esta vida é a melhor que já tivemos. Panteão.