Stellar Blade é um jogo cheio de ambições e de confiança, mas demasiado agarrado às suas inspirações principais, tornando-o num jogo de altas produções pouco original.
Há um antes e um depois de experimentar a demo de Stellar Blade, agora disponível na PlayStation Store. Se a minha curiosidade era muito reduzida, a demo demonstrou-me que o título da Shift Up, desenvolvido em exclusivo para a PlayStation 5, apresentava algum potencial que ia além das suas inspirações descaradas – mas também confirmadas pelo seu diretor, Hyung-Tae Kim.Quis acreditar que poderia estar perante um jogo com os ingredientes necessários para se destacar enquanto algo único e especial dentro do seu género.
A demo cumpriu o seu objetivo: trouxe-me até aqui, a bem ou a mal. E a sensação que perdura é que faltou algo no título de ação da produtora coreana. Após terminar Stellar Blade, o meu entusiasmo em voltar a pegar nele é quase nulo e sinto que é difícil descrevê-lo sem tecer pontos de comparação com uma multitude de jogos muito melhores e com os quais fiquei com muita mais vontade em revisitar.
O mais claro é NieR:Automata, de Yoko Taro, que, durante uma entrevista à IGN Japão, ao lado de Hyung-Tae Kim, lhe disse que Stellar Blade era muito melhor que o seu jogo. Uma afirmação com um enorme peso na fase de pré-lançamento do jogo. Não só é uma excelente frase de marketing para vender Stellar Blade, como Hyung-Tae Kim recebeu a derradeira bênção de um dos seus ídolos. Não é, de facto, para todos. Mas o que significa esta “bênção”? Reflete-se na qualidade do produto final e na opinião generalizada dos jogadores? Ou é tão superficial como todos os temas, ideias e conceitos que o mesmo apresenta? Pela minha experiência ao longo das suas cerca de 20 horas de história e exploração, caímos na segunda opção.
Em Stellar Blade viajamos para um futuro meio cyberpunk onde a Terra está desolada por guerras, em ruínas e invadida por uma raça de monstros lovecraftianos, os Naytibas. A humanidade está concentrada numa cidade, Xion, e no precipício da extinção. Ainda assim, nem toda a esperança está perdida, pois dos céus chovem Anjos – como lhes chamam -, ou Super-Guerreiras do Espaço – como eu prefiro. Este exército de super-modelos, de lâmina em punho, desce dos céus para eliminar os Naytibas e, se as coisas fossem mais simples, para entregar novamente a Terra aos humanos.
No jogo, controlamos EVE, uma dessas guerreiras e a única sobrevivente do Sétimo Esquadrão, que após ser salva por Adam, e na companhia da adorável e energética engenheira Lilly, partem numa jornada para derrotar os Naytibas. Sem surpresas, a viagem leva-os a descobrir mais sobre a verdadeira natureza desta ameaça e a conhecer melhor os habitantes de Xion.
A premissa é simples, clara, já recheada de referências e simbolismos religiosos e de outros produtos de cultura popular, e é a tela perfeita para uma história emocionante e entusiasmante. Mas a sua execução permanece igualmente simples, pouco aprofundada e pendurada nas suas inspirações, pois Stellar Blade é, sem querer ser redutor, o NieR:Automata despido da sua complexidade narrativa e provocante, e do seu elenco de personagens multidimensionais que nos fazem questionar o sentido da vida.
Adoro homenagens e, quando bem feitas, podem ser excelentes, quer sejam transparentes ou mais subtis, mas Stellar Blade atira a subtileza pela janela e parte o vidro para que toda a gente possa ouvir. E, de alguma forma, não há mal nenhum nisso, mas quando é uma constante a cada nova missão, twist ou até em novas informações de lore, é fácil deixarmos de pensar na fábrica que constrói este mundo sem pensarmos noutros jogos que executaram melhor a mesma história que Stellar Blade se esforça para contar.
Outra inspiração clara reminiscente de NieR:Automata é a protagonista EVE, que é o exemplo perfeito da superficialidade de Stellar Blade. Não tenho grandes problemas com um design mais arriscado e escaldante de personagens em videojogos. Também eu admiro sensualidade e sexualidade em alguns dos meus jogos favoritos. Mas não consigo afastar um certo sentimento de repulsa quando a justificação para se apresentarem como se apresentam é parva – como Quiet em Metal Gear Solid V: The Phantom Pain – ou quando, neste caso, inexistente, que não demonstra substância e é usada apenas para sex appeal.
EVE é uma das protagonistas sexy mais vazias que controlei num videojogo. Foi desenhada exclusivamente para agradar ao olhar estereotipado masculino de objetificação feminina, enquanto se move, salta, ataca e desce escadas sempre de forma muito sensual e detalhada, apresentando-se com fatos reveladores que deixam pouco para a imaginação e igualmente desenhados com uma incrível dedicação para acentuar todas as suas curvas sinuosas. E o jogo faz questão de forçar o nosso olhar em todos esses elementos através da longa seleção de fatos para EVE, de cinemáticas e cenas finalizadoras de combate espetaculares, bem dirigidas e focadas intensamente nos atributos mais carnais da personagem. Mas EVE é também escrita como uma flor delicada, confiante e certa, que todos os NPCs admiram e respeitam. No fundo, uma Nossa Senhora da Playboy, que pouco evolui enquanto personagem ao longo do jogo.
E antes de sair do reino das comparações, outro aspeto reminiscente de NieR:Automata, e que foi para mim uma comichão ainda mais permanente ao longo do jogo todo, é a música. A saga NieR conta com algumas das bandas sonoras mais belas e celebradas dos videojogos atualmente. É composta por Keiichi Okabe (também da saga Tekken), que mistura diferentes géneros de composição clássica, eletrónica e outros elementos experimentais que se moldam dinamicamente ao longo de vários momentos de jogabilidade, com temas emocionais e pujantes, que conseguem ser ainda mais elevados com o embalo das incríveis e assombrosas vocais de Emi Evans – que até criou um novo idioma para ser cantado, quase de forma exclusiva na saga (e num incrível episódio de Star Wars: Visions).
Stellar Blade também aqui tenta emular toda uma atmosfera musical reminiscente de NieR, com as suas agradáveis composições melódicas e vocais, que um ouvido menos desatento até pode apreciar. E há, de facto, alguns bons bangers nesta jornada que ficam a cantar na nossa cabeça quando pousamos o comando. No entanto, é capaz de ser o elemento de Stellar Blade que se sente mais como cópia direta de NieR, ao ponto de alguns temas, especialmente nos pontos de checkpoint, poderem ser mesmo confundidos com as composições presentes em NieR:Automata. O que, francamente, não espanta, pois uma grande parte da banda sonora de Stellar Blade foi criada na Monaca Studio, cujo o CEO é, nada mais, nada menos, que Keiichi Okabe.
Já onde Stellar Blade falha neste departamento é na utilização destes temas, tão imutáveis como a personalidade de EVE, pois ao longo da exploração dos níveis, ao entrar e sair dos combates, a música raramente se altera (salvo raras exceções aleatórias). Na maioria do tempo, a música não é dinâmica e, muitas vezes, cria uma espécie de chicotada sensorial, com sonoridades que não se ajustam às situações que estamos a observar no ecrã. É quase como se Stellar Blade não entendesse muito bem o propósito, importância e o poder da música para elevar a sua experiência fora dos momentos mais importantes.
Poderia ir mais a fundo para apontar mais comparações e outros elementos menores que senti que são literais cópias dos jogos de Taro, mas as minhas críticas mais severas ao jogo ficam-se por aqui, porque até encontrei diversão e outras motivações suficientes para continuar a jornada de EVE, ainda que gostasse que o meu envolvimento emocional para com este mundo e personagens fosse maior.
Stellar Blade é um jogo bonito, que faz uma incrível utilização do Unreal Engine ainda na sua versão 4. Questões de design de parte, é de louvar o nível de detalhe das personagens principais e, particularmente, do leque variado de criaturas, que variam entre seres orgânicos, robóticos e por vezes as duas coisas em simultâneo, com geometrias e materiais complexos, que se tornam ainda mais assustadores com os seus movimentos agressivos e erráticos.
O mundo de Stellar Blade é igualmente belo, ainda que não seja tão variado como a quantidade de inimigos. Visitamos ruas de uma cidade futurista suja e meia abandonada, desertos com muitos pontos de interesse, ruínas de outras cidades devastadas pela guerra e outros complexos científicos mais futuristas, tudo com grande detalhe e variedade de áreas e de assets, com uma consistência de qualidade que não costuma ser muito comum neste tipo de jogos. Mesmo quando existe alguma repetição de áreas, a remistura feita no level design e de desafios ambientais é o suficiente para nos atrair a continuar um pouco mais a jornada.
Com três modos de jogos, Stellar Blade pode ser jogado com o máximo de fidelidade, num modo de qualidade com maior fluidez, num modo de desempenho e num intermédio, de resolução dinâmica a apontar para os 60FPS, o qual usei de forma bastante confortável. Tendo normalmente preferência pela imagem limpa dos 4K, este modo intermédio foi uma agradável surpresa, com um jogo claro, sem grandes artefactos ou distrações técnicas. E, em cima disso, uma excelente solidez de framerate, tão importante para um jogo de ação deste calibre.
Se conceptualmente Stellar Blade é um NieR:Automata-lite, já a jogabilidade aproxima-se de um Souls, mais precisamente num Sekiro: Shadows Die Twice, eventualmente dando-nos até um “segundo coração” para continuar a lutar, mas particularmente pelo seu sistema de quebra de postura e sistemas de defesa e ataque específicos. Admito que não sou o maior fã do género e, inicialmente, esta escolha deixou-me com reservas preocupantes, mas Stellar Blade toma algumas decisões excelentes para tornar o jogo mais acessível e divertido, entre elas a remoção da habitual “barra de stamina”. Sem este elemento na equação, a tática de combate de jogo abre-se para outras preocupações maiores que podem ser a chave do sucesso.
Quem jogou a demo teve um pequeno gosto do que o espera a nível de jogabilidade. Percebeu que EVE tem dois tipos de ataque básico, combos e atalhos para ataques especiais disponíveis quando soma energia. Nada de revolucionário aqui, mas familiar e imediato. Tal como a demo, o jogo mantém quase sempre este registo de combate 1 contra 1, com movimentos pesados e a necessidade de acertar nos timings certos dos ataques dos inimigos para ripostar. Apesar de, no jogo final, termos acesso a equipamentos que aumentam a velocidade e abrem as janelas de tempo para estes contra-ataques, Stellar Blade revela-se sempre exigente, mesmo no seu modo mais fácil de história, pois os inimigos continuam a ter cadências de ataque irregulares – que obrigam a uma estratégia um pouco mais defensiva do que ofensiva -, e os combos podem ser um pouco difíceis de memorizar, pela quantidade deles e pela forma estranha que muitos pedem para pressionar em alguns botões por tempo indeterminado a meio dessas combinações.
A satisfação e fluidez de combate de Stellar Blade é, assim, irregular. Quando funciona é excelente e entusiasmante, ainda que requerendo bastante do jogador, incluindo a frustração de falhar frequentemente desvios e contra-ataques pela sua sinalização confusa e pelas janelas de tempo extremamente reduzidas. Para chatear um pouco mais, o jogo parece dar uma primazia aos tempos de animação, dando aquela perceção de peso e de inércia das personagens, tanto dos inimigos como da nossa protagonista, que podem ser lidos como latência de controlos, mas não me parece ser o caso, pois por tentativa e erro, e conhecendo os timings de alguns padrões, é possível ter confrontos espetaculares – até através de streaming com a PlayStation Portal, que é uma forma de jogar mais suscetível à latência.
Os tipos de combate também são irregulares e sofrem com algumas das decisões já apontadas, em particular contra os inimigos mais comuns, que contam com menos ataques especiais de leitura facilitada, e que, lá para o final do jogo, se tornam autênticas esponjas de dano, tornando esses combates mais aborrecidos. Já os bosses, com mais ataques especiais, são substancialmente mais divertidos, graças à sua variedade, aos seus movimentos únicos e, até, a um ou outro twist para se derrotarem. Nestes combates mais emocionantes e de maior risco, é a oportunidade perfeita para usar outras habilidades de ataque como, por exemplo, o drone, que passa a ser a nossa arma automática de disparo.
O uso do drone é interessante na sua execução. É uma metralhadora/shotgun/lança-mísseis, com um sistema quase de tank-controls bem pesado, e é, às vezes, irritante de se usar devido à forma pouco intuitiva de alterar o tipo de disparo. Com esta mecânica e execução, a Shift Up fez algo muito interessante para tornar a jornada de Stellar Blade diversa, com alguns segmentos surpreendentemente inspirados em jogos como Resident Evil ou Dead Space.
Em certas alturas do jogo, impossibilitados de usar a lâmina, apenas o drone nos será útil para combater inimigos entre corredores escuros e assustadores, com uma boa tentativa de criar atmosfera e, por vezes, até com um uso limitado de munições. Não vou mentir, não foram as minhas partes favoritas do jogo, mas foram experiências interessantes, que não ocuparam muito tempo e que serviram de oportunidade também para resolver puzzles ambientais e tirar partido das mecânicas de plataforma e de exploração do jogo, também presentes noutras partes. Sinto que a Shift Up poderia ter sido mais arrojada no seu formato enquanto género de RPG e ser, talvez, menos segmentado ou linear. Porém, há também que ver as coisas pela positiva: tentou algo. E, de alguma forma, tudo isto enriquece esta jornada. Para um jogo que parece ter tão poucas ideias originais, há que elogiar a tentativa de apimentar a experiência com alguns desvios à fórmula, mesmo com as suas imperfeições.
Com cerca de 20 horas, fazendo a maioria dos objetivos e missões secundárias do jogo, Stellar Blade tem aquela longevidade ideal para um jogo do seu estilo. Ainda que cometa aquele pecado capital de se encher de missões pouco interessantes, como fetch quests de ida-e-volta e pequenas histórias desinteressantes que nada adicionam à experiência narrativa, para lá de desbloquearem recompensas que podem ser úteis para aumentar as habilidades de EVE.
Stellar Blade não é um jogo muito original e não chegou para mudar os videojogos. Poderá, um dia, atingir o seu estatuto de culto, mas para já acho que é insuficiente. Apesar de ter imensos problemas com o jogo, estaria a mentir se dissesse que não gostei dele, que não me divertiu ou que é um jogo mau. Antes pelo contrário, é um bom jogo e gostei de o jogar. A minha maior pena é sentir que é também um recorte de ideias e de conceitos atirados para uma batedeira, de onde saiu uma mistura heterogénea e cheia de pedaços de sabores intensos de outros jogos bem melhores executados.
E, para terminar, regressando um pouco ao início, Yoko Taro pode adorar Stellar Blade, está no seu direito. Deve, até, sentir um enorme orgulho ao ver a sua obra impactar as criações de outros criativos e colegas. A criatividade é, afinal de contas, um processo iterativo. Mas tenho a certeza absoluta que, quando o excêntrico diretor afirmou que Stellar Blade era melhor que o seu jogo, e sabendo a real razão para o design da 2B, Yoko Taro estava a ser… Yoko Taro, apenas a elogiar a nova protagonista.
Cópia para análise cedida pela PlayStation Portugal.