O contraste entre a minha opinião e a do resto da plateia que assistiu ao espetáculo Acordei e Escolhi Violência, de Rui Sinel de Cordes, era esperado, mas, ao vivo, faz perceber o quanto o mundo é diferente fora das nossas cabeças.
Texto de: Francisco Ferreira
No dia 3 de março, fui ao Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, ver o novo espetáculo de Rui Sinel de Cordes. Para celebrar os seus 20 anos de carreira, os materiais promocionais prometeram um humorista irredutível a lutar contra as “ogivas culturais actuais”, luta esta que tem estado cada vez mais presente nos seus espetáculos (o não uso do acordo ortográfico nos materiais promocionais talvez não seja intencional ou talvez o acordo ortográfico seja ele mesmo uma ogiva cultural).
O Dr. Sinel é, indiscutivelmente, uma das grandes figuras do humor nacional, e este é o primeiro espetáculo escrito por completo depois da controvérsia mais mediática da sua carreira. Este facto levanta questões sobre como vai abordar a sua nova hora, tendo sido dos principais motivos que me despertaram a curiosidade para ir ver Acordei e escolhi violência.
Antes de vermos o Mr. Cordes, fomos apresentados a Miguel Vaz, o opener da noite. Miguel Vaz começa com monhé como punchline e, no minuto seguinte, cigano. No final do bit, viemos a descobrir que o monhé não gostava do cigano, uma inversão das expectativas que levou a muitos risos. Após alguns minutos de comédia neste tom, tecnicamente bem escrita e apresentada, somos brindados com o bit final: o comediante explica-nos a verdadeira versão de uma fábula para crianças. Na verdade, o vilão da história tinha violado (a expressão usada foi “comeu o cu”) a personagem principal – a plateia irrompe em aplausos. Para quem estiver familiar com a obra do Mr. Cordes, este opener não vem de surpresa e pareceu que aqueceu bem a audiência para a estrela da noite.
Sinel de Cordes entra triunfante e deixa logo um aviso ao Climáximo, caso decidam invadir o seu espetáculo (acordou e escolheu violência, digamos assim). Na verdade, faz algum tempo desde que o Climáximo teve nas manchetes, mas, mais tarde no espetáculo, isto vai fazer sentido.
“Acordei e escolhi violência” é um nome que até pode fazer sentido para um espetáculo do nosso artista, mas é, ao mesmo tempo, uma frase meme repetida ad nauseam no X e outras redes sociais. Este nome nunca se irá relacionar com alguma coisa dita em palco, mas diz-nos onde anda o Dr. a passar o seu tempo. Talvez a audiência dele não faça o mesmo, mas eu passo horas a fio no X, e fica óbvio que o Dr. Sinel também, e enquanto eu acho que o X está cada vez mais burro, ele acha que o que se passa lá serve para encher uma hora de comédia. Nenhum tópico da noite não foi uma polémica no X, nenhuma piada ou conclusão diferente do que se leria nos comentários, como os ativistas climáticos ou uma micro polémica sobre a comunidade LGBT e Jeffrey Dahmer. Às tantas, o sucesso vem mesmo da sua audiência não estar no X…
A Pinker, TVDE só com mulheres condutoras, foi mais um dos assuntos paradigmáticos dos problemas deste espetáculo. Como profissional sério, o artista promete não fazer a piada óbvia (as mulheres não sabem conduzir) para os fãs do humor mais negro deranged possível. No entanto, pouco tempo depois, faz um dos muitos callbacks da noite, numa demonstração de mais uma das suas tendências de hack, ao lembrar a audiência de que os tinha enganado, e que não há onde ele não vá por uma piada – a plateia ri. Não sei se será controverso, mas callbacks são das coisas mais baratas de se fazer na comédia, ainda que tenha sido a forma mais confiável de obter risos da noite.
Barato é, definitivamente, uma descrição da noite, já que houve todas as piadas rotineiras deste clube de humoristas portugueses. Pedofilia e violação, piadas sobre os diferentes grupos raciais ou feministas hipotéticas. E mais barato ainda quando usou vários momentos do espetáculo para incentivar a audiência a comprar a autobiografia que escreveu recentemente. Outro exemplo da falta de cuidado foi o cenário, desde a cadeira longa que baloiça, ao adereço que usou ao entrar, nenhum destes dois foi alguma vez relevante para o espetáculo. Isto vindo de um artista que, nos seus últimos espetáculos, tem tido, em média, duas trocas de fato, acabando por ser mais um indicador da falta de planeamento e cuidado que permeia todo o seu ato.
A grande surpresa da noite, para mim, foi o coming out como negacionista climático, consistente com 6 horas de screen time no X. Com uma introdução surpreendentemente auto-consciente, o Dr. admite que não é perito na ciência, mas que algumas coisas não fazem sentido na narrativa do aquecimento global. Após enumerar as razões para tal, culmina na observação de que Greta Thunberg não acabou o 9º ano e que, por isso, tudo aquilo em que ela acredita só pode estar errado – risos novamente.
Outra surpresa da noite foi a falta de mestria técnica – tenho de voltar a reiterar que falo de uma das maiores figuras do humor nacional. Começa por tentar fazer uma questão ao público como ponte para o bit que quer fazer, mas, quando não tem a resposta que espera, é obrigado a saltar abruptamente para onde queria ir. Mais tarde, quando é interrompido por problemas técnicos e tem de voltar a situar-se no seu texto, revela o quanto tinha decorado à letra a história que estava a contar. Mas a mais grave de todas foi no apogeu do seu espetáculo – quando terminava a última piada, vemos o artista embaraçado. Tinha-se esquecido de nos dar um detalhe numa das piadas anteriores, com o qual iria terminar o espetáculo, num callback que levaria ao êxtase da plateia. Creio que um grande entertainer deveria ter, pelo menos, os pontos altos do seu espetáculo à prova de bala, e esta falta de finesse acabou por ser recorrente durante a noite.
Um ponto óbvio da obra do Dr. Sinel é a obsessão com a sua perceção pública, e neste espetáculo isso é particularmente óbvio, com várias piadas a desaguar em como pareceria se ele aparecesse nos meios de comunicação numa ou outra situação caricata. Pareceu também que a audiência partilhava da preocupação, rindo da perceção pública dele que sabem, na verdade, ser falsa. Isto contribuiu para uma sensação de estar na igreja, em que a fé no messias leva à redenção (neste caso a redenção é ser mais esperto para ver para lá do que dizem os snowflakes facilmente ofendidos). Outra vertente religiosa da noite foi a fé da audiência ao acreditar que havia uma punchline. Muitas vezes, Mr. Cordes dizia frases que não faziam sentido semântico, mas que incluíam palavras que, juntas, pareciam indicar alguma punchline engraçada que a audiência sentia para si mesmo ser a piada. Não ajuda a isto que, logo no início do espetáculo, Dr. Sinel apresenta um crucifixo que usa ao peito, que rapidamente explicou que não era Jesus Cristo, mas sim ele próprio na cruz, em homenagem aos 20 anos do seu primeiro special. A ironia de um homem que, há pouco mais de um ano, insultou e desejou a morte de uma espetadora durante um espetáculo de homenagem ao seu amigo que se suicidou, e que agora, com salas cheias ou quase cheias, se apresenta como crucificado, parece escapar-lhe completamente.
Uma grande surpresa foi que a plateia não gostou tanto como eu esperava depois de estudar os specials anteriores de Mr. Cordes. Claro que a audiência se riu bastante durante o show, mas há, no máximo, dois momentos de riso incontrolável na sala inteira. Interrupções para palmas, habituais nos espetáculos anteriores, foram mais raras e mais contidas. Em nenhum momento a audiência pareceu sentir como se estivesse a observar uma nova faceta do mesmo artista ou um grande artista no seu pico. Sinceramente, eu achei piada três vezes. Uma delas quando teve de improvisar enquanto lidavam com um problema técnico, uma vez num pequeno detalhe inserido num outro bit e a última, e talvez a melhor, quando faz uma piada que tenho a certeza já ter visto em várias formas no X e equivalentes.
A verdade deste special, e de toda a sua obra, é que Rui Sinel de Cordes aproveita a boa vontade da sua audiência para pintar o valor de choque das suas punchlines como piadas bem construídas. Para mim isto é claro, e incomoda-me que haja uma audiência que não o vê, que não escrutina os seus artistas e a sua arte e se esconde atrás de preferências e gostos. O contraste entre a minha opinião e a do resto da plateia era esperado, mas, ao vivo, faz perceber o quanto o mundo é diferente fora das nossas cabeças.