Mais um dia no Couraíso, sempre com muito encanto.
Ama como a estrada começa. É com esta citação de Mário Cesariny que chegou o convite para a Vodafone Music Session desta sexta-feira, num lugar de especial significado para quem conhece Paredes de Coura além destes dias de festa e partilha das suas dores e aspirações. A ligação da A3 à sede de concelho é desejo de décadas e finalmente estão em construção os 8,8 quilómetros desde o nó de Sapardos, ainda em Cerveira (aquele que tem a placa com a saída), até à zona industrial de Formariz, ali à entrada da vila e polo de grande dinamismo (como é o exemplo da primeira fábrica de vacinas contra a Covid-19 em Portugal). Mas Coura não pode e não quer deixar de ser o que é e, durante a obra, foram encontrados vestígios de via romana no Caminho de Santiago, via central desde sempre da parte sul do município, cuja preservação implicou alteração do traçado e atraso da inauguração para o final do ano – quem quiser saber mais tem um ótimo espólio no canal da Alto Minho TV. E já há promessa de ligação à costa pela A28.
Foi assim, nas entranhas do desenvolvimento (mais uma expressão deliciosa do mail da organização, parabéns a quem o escreveu), no limite do asfaltado em curso entre São Bento da Porta Aberta e Ferreira, que Chinaskee, alter-ego de Miguel Gomes (inspirado na obra seminal de Charles Bukowski que tantas coisas pelo mundo tem inspirado, de artistas a bares de cerveja em Madrid), entrou em cena, cuja formação nos últimos anos estabilizou na companhia de Bernardo Ramos, Inês Matos, Ricardo Oliveira e um fetiche por tons de vermelho. E rock, muito rock de distorção, em particular o de Bochechas. Sob um sol abrasador, e enquanto vários das dezenas que vieram de propósito nos autocarros da Courense se iam refugiando à sombra dos chapéus de sol, os lisboetas dão um concerto corajoso e sem vacilar que, no final, até nos faz temer pela saúde da mocidade, mas a fazer questão de tocar uma versão de “Asereje”. Um momento bem especial.
Horas depois, e depois de romaria rápida por esse momento de suor e eurodance que é a festa dos Gin Party Soundsystem no Xapas Lounge, tendo sido perdida antes infelizmente a belga Sylvie Kreusch, já no clássico recinto e em mais uma tarde para pintar a paisagem e afixá-la numa parede lá de casa, eis que Arlo Parks chega. A grande esperança – na verdade certeza – já tem no bolso, aos 22 anos feitos este mês, o Mercury Prize de 2021 com Collapsed in Sunbeams. E a estreia nacional (mais uma) do fenómeno, de nome completo Anaïs Oluwatoyin Estelle Marinho, é sucesso indubitável. Mais um encaixe perfeito da moldura natural, humana e vocal, plena de suavidade soul e mensagem, como em “Hope”, numa referência a cicatrizes figurativas e literais. Mesmo com um ou outro prego no meio, a doçura e o sorriso de Arlo Parks, de origem nigeriana, chadiana e francesa (a primeira língua que aprendeu), tudo conquistam, numa vulnerabilidade até a puxar ainda mais pelos instintos protectores de quem está a ver e ouvir. Já é do clã.
Nesta roleta musical que é o Vodafone Paredes de Coura, o norte-americano Ty Segall é outra coisa, embora partilhe um ar tímido, que pouco fala com quem está à sua frente e a não querer largar a ponta direita do palco. Monstro do rock de garagem e caótico multi instrumentista e inspirador de múltiplos projetos (contámos mais de uma dúzia, os Fuzz que também já passaram por aqui serão os mais conhecidos), Segall aqui está com a Freedom Band e dá uma demonstração de mestria no estilo, alto, estridente, cujo filho mais novo é Hello Hi. De todo este caos, resulta que faltam as canções facilmente identificáveis, as âncoras da relação com o público num festival desta escala. Assim, acaba por ser paradoxalmente um concerto mais contemplativo em termos de reação do que o de Arlo Parks, o deste mago da guitarra.
Guillaume e Jonathan Alric, dupla eletrónica francesa conhecidos pela marca registada The Blaze, foram os únicos artistas que não quiseram ser fotografados, e o início com ecrãs azuis de ar muito computador da empresa até ajuda a perceber porquê. Do azul passa-se ao laranja, e finalmente os primos surgem no centro, numa coreografia visualmente interessante, com constantes alterações dos blocos luminosos, que refletem os estudos cinematográficas em Bruxelas.
Numa atuação enxuta em termos de expansividade como é típico de uma música mais de beats do que de riffs, esta preocupação ajuda também a agarrar uma parcela do público maior do que a esperada numa altura em que a madrugada já se começa a prolongar-se. Exemplo maior é a passagem por “Territory”, o grande cartão de visita, célebre também pelo vídeo realizado pelos próprios The Blaze e premiado no Festival de Criatividade de Cannes, recebida calorosamente por parte dos presentes à frente, e de forma mais bucólica por quem vai se vai retirando para os aposentos e a ouve a ecoar pela noite. Quando assim é, aposta ganha.