Primavera Sound Porto 2024, dia 2 – O granizo que afinal não veio, as legiões de Lana del Rey, o refúgio dos gauleses e a perda de confiança

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O segundo dia do Primavera Sound Porto 2024 não correu tão bem como se previa, com cancelamentos e condições climatéricas instáveis e incertas para se poder desfrutar a festa.

Segundo dia, e é claro que o pacto que o Primavera Sound Porto tem com o mau tempo se fez sentir. No entanto, foi apenas a meio da tarde que caiu forte chuvada, aliás durante pouco tempo, ao contrário das expectativas que os meteorologistas online chegaram a prever. É um trabalho arriscado, e chegar a Anthímio de Azevedo não é para todos. Foi, por isso, pena perder Samuel Úria, o gigante de Tondela que merecia ser bem tratado num grande festival, bem como o psych rock do fenómeno Crumb.

Chegados mesmo no fim da folk da britânica This is the Kit (bem elogiada por espetadores lá presentes), a rota só dava a The Last Dinner Party. Fenómeno divisivo visto com muita desconfiança da crítica pelo hype no Reino Unido, a jogar fora de casa num dia em que o polémico palco Porto é como se fosse concerto em nome próprio de Lana del Rey e não tanto festival, esgotado há meses – muita gente perdida por entre os trilhos do Parque da Cidade por ser a primeira vez que lá vai. O instrumental de “Prelude to Ecstasy” é o arranque expectável para um alinhamento que não pode ter grandes surpresas por só existir um disco cá fora. O momento ideal para os ver teria sido em Paredes de Coura no ano passado, conforme chegou a ser anunciado, mas o cancelamento em cima da hora acabou por empurrar a estreia em terras lusas.

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The Last Dinner Party no Primavera Sound Porto 2024 – Foto: Emanuel Canoilas

A vocalista Abigail Morris sabe bem disso e diz logo que está ali para tentar entreter enquanto o tempo passa até ao objeto de desejo entrar em palco. Siga a banda, referências cultas (“Caesar on a TV Screen” é um mimo e o clipe ao estilo teleteatro de peça de Shakespeare um mimo). Tatuagem de Agnus Dei bem escondida/revelada, as duas guitarras (por vezes mandolim) sempre ativas como é no single “Sinner”, e “Second Best” ao vivo resulta cheia de vontade de fazer amor com a câmara. Numa performance setenteira (elogio) alinhada com arranjos barrocos das canções, a cover de “Wicked Game” aparece meio de paraquedas, mas a recordar que Chris Isaak vem cá para o mês que vêm.  No final, “Nothing Matters” teve introdução niilista inconsequente, mas prova que é malha ao vivo. Num barómetro de difícil leitura, mostraram que são artistas e vão continuar a andar por aí.

A polémica com o cancelamento da atuação dos Justice anda no ar quando se vai jantar, e ao lado, no Plenitude, arranca Tropical Fuck Storm, com uma energia que acompanha o repasto. No entanto, acabamos por ir diretos para Wolf Eyes, local onde, perante o cerco das legiões, os gauleses tiveram de se refugiar. O duo de Nate Young e John Olson é prova de vida do espírito original Primavera, experimentalismo, noise, numa onda sensorial a fazer muito lembrar a certa altura os nosso Telectu (inspiração comum evidente em John Zorn) ou até um concerto heróico de Rafael Toral no saudoso ATP. A resistência está viva e a vitória é certa.

Porém, é obrigação dizer que se pisou o pé no nome do dia agora feito noite. Vamos ser francos, temos uma relação ambivalente com Lana del Rey. Gostamos do timbre, mas a verdade é que é uma voz pequenina em termos de alcance vocal. Gostamos de muita da estética e do interesse por autores como David Lynch (que, aliás, originou uma versão de “Blue Velvet”, que se tornou no melhor anúncio a marcas de roupa suecas de todos os tempos), mas a pancada de chegar atrasada (aqui só 10 minutos, chupa Barcelona) é de mau gosto. Gostamos de encenação do espetáculo, mas há ali coisas a mais (dançarinos no poste, projeção holográfica em tamanho XL meio cafona já a caminho do final). Mas esta metade final foi, com certeza, forte, não há resmunguice honesta que resista.

Desde logo, Lana del Rey está bem acompanhada musicalmente – destaque para o teclista e para as três vozes de acompanhamento com um alcance maior na voz, muita capacidade soul a dar vontade de rever o maravilhoso documentário Twenty Feet From Stardom, e querer descobrir quem são aquelas pessoas. “Did You Know That There’s a Tunnel Under Ocean Blvd” é uma  grande canção, “Norman Fucking Rockwell” é o manifesto do alter-ego Lana resumido numa canção, e “Video Games” a obra que gerou o fenómeno e que garantiu que a aposta em palco está realmente ganha. No fim, “A&W” e saída festa foxtrot impecável com “Young and Beautiful”. E não caiu granizo.

O que não quer dizer que não aconteceram baixas. Há cancelamentos e cancelamentos. Este dos Justice (e é da mais elementar justiça dizer que também de Classe Crua e de The Legendary Tigerman, e com o fenómeno português Mutu a ser passado para o fim da noite no Super Bock), pela forma e pela justificação (peso a mais numa estrutura após várias promessas da capacidade do festival aguentar a pressão climatérica depois do Óscargate de 2003) levanta muitas questões, e uma má disposição generalizada.

O tema das devoluções é com certeza polémico, mas quando a isto se alia uma falta de comunicação gritante, a incerteza sobre o que vai acontecer com os concertos de sábado, e o historial de situações para quem como D. João I é de boa memória, percebe-se bem como o caldo da cultura à volta do Primavera Sound Porto se tem distanciando da paixão inicial, em particular num ano em que meteram as fichas nos cabeções e a “linha média” mais saborosa ficou bem fininha. Pode ser a sobrevivência face ao mercado, mas quando se quer crescer assim não dá para o entorno físico não acompanhar e as vozes de quem vai não serem ouvidas. Tempos de encruzilhada.

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