E hoje e amanhã também estaremos no recinto!
A CP não tem comboios a sair à hora de almoço e, então, o autocarro é a solução para chegar a Campanhã. Mais oscilante, claro, algo mais lento mas com bastante dignidade, lá se passa a mini-rotunda para entrar no TIC e chega-se finalmente à Invicta para mais uma peregrinação ao Primavera Sound Porto. A CP devia pôr-se a pau.
Atravessa-se, então, o Parque da Cidade pelas 18h00, perdida já a hipótese de ver a coqueluche portuguesa desta saison, Ana Lua Caiano. Ouvidos os fãs da autora de Vou Ficar neste Quadrado, existiu boa participação do público presente, sabedor de letras como “Deixem o Morto Morrer” e da fusão de sons tradicionais portugueses com abordagem mais electrónica. Mistura que tem toda a pinta de quem vai ter carreira cá dentro e saídas lá fora, e o cuidado em meter o vinil à venda e merch como t-shirts, tote bags e umas peúgas que entusiasmaram mostram que há profissionalismo também nestas coisas cada vez mais relevantes.
Não perdido, mas ouvido ali meio à distância enquanto se passa por senhoras a passear e desportistas a fazer jogging, é o concerto de Royel Otis, a banda dos dois jovens australianos que dão o nome ao conjunto. “Oysters in My Pocket” é um single assinatura do som indie Primavera. Se não é propriamente original, vem suprir uma comichão de algum tempo sem ouvir estes coros e guitarras num fim de tarde de junho e sentir que tudo está bem pela vida nos ter levado àquele momento. “Sofa King”, faixa-título do álbum de 2023, também faz levantar o entusiasmo do já bem numeroso público ali presente naquela hora. Cumpridas as obrigações processuais da acreditação, quando se entra no recinto propriamente dito acabam o concerto com uma curiosa versão cover de “Murder on the Dancefloor”, o êxito de Sophie Ellis-Bextor escrito em conjunto com Gregg Alexander (autor de múltiplos êxitos mas que nunca deixará de ser também a cara dos New Radicals e da inesquecível “You Get What You Give”).
Descer a colina e olhar para a clareira onde estava o palco ATP é momento que custa, membro-fantasma cujo formigueiro nunca vai desaparecer após tantos anos de momentos felizes ali. Mesmo amputados desse abrigo musical, o Super Bock ali à esquerda de quem desce a colina ainda mantém a bandeira do aconchego num festival que, nas últimas edições, o tem trocado por escala. Local certo para receber os Blonde Redhead, velhos amigos que não víamos desde 2011. Esteticamente uma das banda mais distintivas, o conjunto de Kazu Makino e dos gémeos italianos Amedeo e Simone Pace apresentam um alinhamento muito centrado no mais recente Sit Down for Dinner, de 2023, sem esquecer os picos de reconhecimento que vieram com 23 e Misery Is a Butterfly, ali por meados da década de 2000. Foi com este último que se começou com “Falling Man”, seguindo-se “Melody Experiment” do mais recente álbum. Não demora muito a perceber que continuam impecáveis a nível instrumental, mas não seria honesto deixar de reconhecer que a voz de Kazu já conheceu dias melhores, o que foi especialmente notório em momentos de maior esforço como na mítica música da tenista de quatro pernas, “23”. Quando Amedeo canta a diferença é menor, o ambiente é de aceitação e carinho, o Primavera Sound Porto é casa de muitos veteranos que sabem que os anos passam por todos. Até por isso, e também porque esta edição está descapitalizada de nomes assim, ficamos contente no fim.
Os anos passam, mas não passam por todos da mesma maneira. PJ Harvey está em modo intemporal, sacerdotisa de branco com ramos despedidos desenhados. À volta, mobiliário de ar medieval (as cadeiras vão ser tema hoje), ao fundo projeções que vão mudando com destaque para um texturado de lava. Polly Jean flutua imediatamente por cima do palco Porto, dos grupos ruidosos, da estrada da Circunvalação, das varandas das casas já do lado de Matosinhos. A I Inside The Old Year Dying é logo dado destaque com a belíssima e pura “Prayer at the Gate” e “The Nether-Edge”. “Let England Shake” é recordado pouco depois, destaque do álbum talvez mais celebrado da britânica da década passada. Início subtil, alguns enguiços com a guitarra eléctrica aqui e acolá, mas com um público na mão que até leva a palavras de reconhecimento por parte da artista que soam a verdade. Ali pela metade chega o som mais rockeiro da fase anos 90, começando a aparecer clássicos como “Send His Love to Me”, entrecortados por momentos servidos suavemente como “The Desperate Kingdom of Love”. Para o fim ficaram guardadas as à prova de bala “Down by the Water”, com o refrão mais hipnótico de sempre de desespero mantra – ferro quente gravado na cabeça de quem a ouve, e a guitarra de “To Bring You My Love”. Já passaram quase 30 anos? Ao ver no palco PJ Harvey parece que foi ontem.
Há grande correria para cumprir os cinco minutos que faltam para o início de Mitski no palco Vodafone – sejamos sinceros, o verdadeiro principal. Há uma maré de gente colina acima e bastam alguns segundos quando se ligam as luzes vermelhas do pódio circular onde Mitski vai atuar para perceber que o concerto da noite está aqui. Salto enorme face às atuações que vimos dela em 2017 em Barcelona na fase pós Puberty 2 e em Paredes de Coura em 2019 com Be the Cowboy, sem no entanto deixar a sua linha artística bem presente. Nesta noite, a nipo-americana leva consigo um grande espetáculo e uma banda completa à sua volta que catapulta a força das suas canções, com destaque para o alinhamento quase inteiro do mais recente The Land Is Inhospitable And So Are We, onde a pop orquestral se cruza com o country em arranjos subtis e as letras sentimentais e levemente sardónicas.
De roupa negra ao invés do equipamento de voleibol do verão minhoto, mas ainda com relação física próxima com mobiliário – agora sem mesa nem letras garrafais ao fundo, substituídas por um jogo de luzes muito inteligente que a vai seguir ao longo de hora e meia e duas cadeiras pretas, e uma simpatia esfuziante em grande contraste com as interações anteriores que lhe vimos, Mitski tem também desta vez à sua frente uma multidão de fãs esfuziantes no horário e no sítio certo. Desta vez, há história a acontecer em direto.
A seguir aos encómios e juras de amor, pede para não levarem a mal porque vai entrar em personagem – jogada inteligente para afastar à partida medos de uma certa antipatia, e entrar a fundo na profunda gestualidade que leva a palco. “The Deal” e “The Frost” são golpe duplo seguido de voz hipnotizante, em especial a última com o country suave em fundo, escolha inspirada para a cadência de Mitski. A certa altura, de joelhos, pergunta como é os seus amigos vão, outras vezes tem quedas súbitas muito a fazer lembrar David Byrne e o filme-concerto maior que é Stop Making Sense dos Talking Heads. “Geyser” volta à luz do dia (em versão mais abreviada, mas sem perder essência), antes da dilacerante “First Love/Late Spring”, coro a cantar o pedido de abandono do amor que sufoca e controla em absoluto o objecto amado. Objetos reluzentes descem e voltam a subir a pouco e pouco, a certa altura há uma dança a dois entre a artista e um foco de luz. Muitos ficaram a falar aos berros porque ir a um festival não é ver e ouvir música para eles, é apenas estar lá perto para dizer que se esteva lá – outros fartaram-se e foram embora, mas o espaço que sobra é ocupado por quem está dentro desta experiência. Em “Heaven” há luz que a chama para o plano superior, “My Love Mine All Mine” arrepia.
Novo discurso para os fãs mais jovens (muitos) a preparar para a partida – necessária para existirem novos inícios, mas, acima de tudo, o palavreado vêm os sucessos. E o encore com a desconcertante difícil/fácil “Nobody” e “Washing Machine Heart”, o maior hino synth pop romântico da verdadeira artista garante que os mesmos não se vão embora nada chateados. Ganhou de goleada.
Pouco depois, já perto da meia-noite, SZA começa o seu concerto com uma apresentação vídeo onde se diz “TDE Presents SZA at Primavera Sound”. Momentos depois, vê-se em palco uma produção esmerada, barco atracado no cais com a jovem de St. Louis a manter à tona a temática naval do celebrado SOS, “Seek & Destroy” torpedo disparado à partida, seguido de “Love Galore” de Ctrl. Acompanhada de diversos bailarinos esforçados, SZA desfila temas de bom recorte como “Ghost in the Machine”, ou os coros de “Blind”. Só foi pena não termos chegado a “Kill Bill”, mas aquele local cansa e já não há pilhas para ir para as primeiras filas. O shuttle chama por nós, mas é boa banda sonora enquanto se chega à Anémona.