Na planície alentejana banhada por um sol de outono, a Herdade do Rocim voltou a ser o epicentro internacional dos vinhos de ânfora. A 8.ª edição do Amphora Wine Day, um evento que provou a sua grandeza com um sucesso de bilheteira que ultrapassou 1.800 bilhetes, honrou em cheio a tradição milenar do vinho de talha, abrindo portas a produtores, especialistas, investidores, turistas, à imprensa e, claro, a uma multidão de visitantes.
A expetativa quanto ao evento anunciado era, já de si, enorme. Duas horas de estrada, por bons troços e campos irrepreensivelmente cuidados, levaram o nosso mini autocarro por paisagens e localidades de um Portugal profundo, talvez pouco conhecido de muita gente, onde povoações isoladas, mas com alma intensa e uma vida muito própria, surgem como focos de luz branca em campos a perder de vista. A verdade é que a transição da grande cidade, e das suas megaestruturas, para uma paisagem alentejana proporciona-me sempre uma impressão de que estou a “viajar”, quer dizer, a penetrar num território outro, quer no espaço, quer no tempo.
A promessa, em todo o caso, era a de uma grande experiência, e cada quilómetro percorrido até ao coração do Alentejo contando como um esforço que vale a pena. A viagem terminou em Cuba. Região: Vidigueira, berço do Vinho de Talha.
O primeiro impacto é a própria Herdade do Rocim: um edifício modernista erguendo-se diante de uma paisagem de ligeiros planaltos, vincada por tons outonais, urzes verdes e lastros ruivos de vinhas, numa beleza debruada por raios de sol num dia chuvoso mas ameno. O edifício, uma criação contemporânea do arquiteto Carlos Vitorino, é um volume de planta quadrada que envolve um pátio interior central, palco da gastronomia e do convívio e coração social da adega.
Nas alas internas circundantes da Herdade do Rocim, estava organizada a galeria de provas, forçada – pode-se dizer – a ser eficiente, pois a afluência de produtores e visitantes foi tal que os 50 expositores nacionais e internacionais, com vinhos vindos da Geórgia, Chile, França, Itália e Espanha, tiveram de se subdividir, com dois produtores em cada mesa. O volume de entusiastas era mais do que evidente (mais de 1.800 bilhetes vendidos), tornando o espaço, por vezes, pequeno para tanta afluência; isto, para não falar, na enorme quantidade de referências à disposição das provas.
É este o palco que serve de moldura à ambiciosa política da Herdade do Rocim, que visa levar o vinho de mínima intervenção e o vinho de talha a um patamar de tesouro único que ambiciona a excelência global.
Logo à entrada, captei a essência do projeto da Herdade do Rocim: uma pintura com traços expressionistas que fazem lembrar a pintura de Paula Rego, da autoria de Pedro Calapez, acolhe os visitantes (os mais atentos, pelo menos). Na minha ótica, é um poderoso símbolo visual, que transborda as mais diversas opiniões: um jovem com uma bandeira azul e branca, com as antigas cores e insígnias da bandeira portuguesa, acompanhado por ovelhas, surge em contraste com um céu vermelho dramático. A obra não só referencia a ruralidade portuguesa e a memória do campo, mas também sugere, com certa carga emocional, uma ligação às tradições seculares com história própria e que a Herdade do Rocim procura vincar na sua identidade. Mas vamos lá falar de vinhos.

Quando falamos de talha no contexto vinícola, falamos, sem exagero nenhum, de mais de 2000 anos de história viva. Talha e ânfora, a nível dos conceitos e práticas da vinificação, são essencialmente o mesmo recipiente. Para quem nunca viu ou reparou nisso, posso descrever a talha – que é o termo tradicionalmente usado no Baixo Alentejo, e não só, em regiões como Cuba e Vidigueira – como uma grande ânfora de barro, redonda, cujas dimensões na verdade podem variar, evidentemente, consoante a tara pretendida, os usos e os fins. Já o termo “ânfora” é o mais usado internacionalmente, especialmente na Grécia e Itália.
A alma central desta celebração é, pois, uma técnica que os Romanos nos legaram: a vinificação nestas talhas ou ânforas de barro, que eram transportadas para todas as partes do mundo, sobretudo em navios.
É um facto notável que, no Alentejo – e em especial na região de Vila de Frades, perto da Rocim –, esta prática tenha resistido à passagem dos séculos. Enquanto outras regiões deixaram este método ancestral, aqui manteve-se vivo, já que se inscreve na atividade económica e no quotidiano, sendo considerado como elemento do Património Cultural Imaterial. É sabido que, ainda hoje, as famílias e os “caseiros” desta região têm a sua própria talha para produção e consumo familiar. O vinho de talha pode ser, noutros planos, uma redescoberta, mas na Herdade do Rocim é manifestação e monumento vivo de uma tradição que teve continuidade ininterrupta.
O programa da Herdade do Rocim, que anunciava este Amphora Wine Day em Cuba, galardoado como Melhor Evento Vínico do Ano em 2022, faz dele o maior evento de ânfora do mundo, articulando provas, debates, gastronomia, música e, no fim de contas, um ritual ancestral, a abertura das talhas.
A sessão de palestras – as Amphora Wine Talks – prevista decorreu num espaço delimitado por uma tenda de eventos que não deixou de ter vinhos à disposição dos convidados e foi moderada por Nuno Oliveira Garcia, que reuniu a seu lado um painel de excelência, com especialistas como Jamie Goode (wine journalist), João Soares (enólogo), Agathe Plantade (wine manager) e Yana Nikolaichuk (wine expert), focando-se no tema crucial: “Amphora Wine Talks: Past or Future?”
O cerne da discussão ultrapassou a técnica e mergulhou em aspetos cruciais da história destes vinhos, da sua evolução no mercado e das realidades presentes da produção, divulgação e marketing, nomeadamente as que envovlem os gostos dos consumidores e as políticas a implementar para acompanhar a modernidade e a rápida evolução dos tempos.
Foi sublinhado que, em mercados de luxo, como o Dubai, o que se vende é a história e a tradição por trás de uma referência, não apenas o vinho em si ou o seu sabor, mas sobretudo aquilo que lhe confere uma identidade simbólica, territorial e intelectual.
João Soares alertou para a sombra que ainda paira sobre o vinho de talha, em termos de dados estatísticos sobre a sua produção, o que nos deixa algumas interrogações sobre a sua projeção mas, ao mesmo tempo, demonstra a exclusividade deste fenómeno de vinhos de nicho.
Umas das imagens mais poderosas veio de Jamie Goode, que defendeu que o vinho de ânfora deve apostar num público determinado, tal como se sintonizássemos um canal de rádio. Esta analogia implica evitar o mercado generalista e procurar o público certo através da élevage. Trata-se de um conceito crucial no contexto enológico, o da maturação do vinho, mas que se traduz também no cuidado, exigência e rigor a ter no estágio crítico posterior à fermentação, entre a fase final da produção e o engarrafamento, momento em que o vinho desenvolve todo o seu esplendor e maturidade. A similitude com a sintonização do canal de rádio serviu para explicar que a élevage exige pequenas e sensíveis deslocações na estratégia de produção e distribuição que permitam oferecer um vinho que seja uma interpretação pura do terroir e um convite envolvente à experiência e à descoberta.
Cada prova foi diferente, apesar de todos terem usado mais ou menos as mesmas estratégias de comunicação – nos produtos apresentados, na sua qualidade e aparência, até, como seria de esperar, com tantas presenças internacionais, nas línguas usadas. Nas provas livres e comentadas (Guided Tastings), a diversidade foi a palavra de ordem, sendo que em todas vimos a preocupação fundamental de manter um equilíbrio entre tradição e inovação, com tudo o que esta requer – contacto humano, poder comunicativo, história e narrativa, marketing, divulgação.
É impossível honrá-los a todos neste pequeno artigo, embora nenhum o desmereça, pelo que irei destacar apenas alguns.
O vinho Vila de Frades 1656, da Adega Cooperativa de Vidigueira, foi um dos mais eloquentes a celebrar a sua história. A data inscrita no rótulo não mente. Imagine-se que, de facto, a sua fermentação decorre numa talha com quase 370 anos! Nem mais. Trata-se de uma talha datada de 1656. Isto não é apenas estratégia simbólica de reforço de uma ideia que se quer transmitir e vender, a de conferir ao Vila de Frades o caráter de património vivo. Gostaria de poder transmitir, mais do que descrever, o sabor e o aroma deste vinho, que arrasta consigo de facto um paladar terroso ancestral.
No panorama internacional, os produtores da Geórgia, como a Tezi Winery e a Gvymarani, trouxeram a essência do Qvevri (outra técnica listada na UNESCO, a das ânforas enterradas), confirmando as 525 castas indígenas e a produção artesanal, que representa apenas 10% do total, e nunca parou.
No foco da Herdade do Rocim, nos seus brancos, foi destacado o Clay Age, que alia a pisa a pé em lagar de pedra ao estágio em talha, enquanto, nos tintos, o Amphora 2024 é feito com castas velhas, como o Moreto, e segue rigorosamente o conhecimento empírico do feitor Pedro Pegas, que ensinou os segredos da fermentação.
A vanguarda ficou representada pela parceria com a Quinta da Pedragosa (Algarve), orientada pela Rocim, que provou que o método é replicável e de sucesso, com o seu Amphora Tinto 2023 a conquistar 93 pontos, comprovando o slogan “Inspired by Rocim”.
A experiência vínica nesta visita à Herdade do Rocim só ficou completa graças à gastronomia tradicional portuguesa, que ocupou o pátio central da adega, sob a curadoria do Chef Vítor Sobral e o seu projeto Tasca da Esquina, com a participação do Chef João Mourato e da Queijaria Guilherme.
A oferta incluiu pratos feitos com mestria que garantiram a substância, além do marisco representado pelas Ostras, como a saborosa Feijoada de Polvo, a Vitela com Boletos (cubos desfeitos em molho, servidos com os cogumelos) e a famosa Sandes de Porco (com carne feita na brasa e carcaça braseada, resultando num ótimo sabor a fumeiro).
Esta oferta foi complementada por pratos também aliados à autenticidade do Alentejo mais profundo, incluindo os tradicionais Sopa de Tomate com Garoupa, o Cabrito Assado em forno de lenha ou as Bochechas de Porco Preto e as sobremesas do Alentejo (pão de rala e bolo de amêndoa).
Por fim, a Queijaria Guilherme, com a sua produção artesanal, garantiu a vertente de charcutaria de luxo, oferecendo Paio e Palaio de Porco Preto, através da SERPO Carnes – enchidos de qualidade reconhecida e detentores do selo Sabor do Presunto Preto 2019.

Para Pedro Ribeiro, o CEO e enólogo da Herdade do Rocim, o Amphora Wine Day não é um fim, mas sim um veículo para o futuro.
“A nossa política é clara”, afirma. “O Vinho de Talha não é um apenas nicho pitoresco; há todo um caminho a percorrer, preservando a autenticidade e a mínima intervenção. Quando trazemos 50 produtores de todo o mundo, incluindo Châteaux de Bordéus ou produtores do Chile, o que estamos a dizer é que a talha é uma linguagem comum a vários projetos, todos com personalidade e ambição própria”. O CEO e enólogo defende que há todo um caminho a percorrer, mantendo o rigor técnico, preservando a tradição (em parte reconhecida pelo legado do feitor Pedro Pegas), mas usando a experiência e a excelência para alcançar distinções como a de “Produtor do Ano”, numa perspetiva essencial: abrir mercados. No fundo, trata-se de dar consistência a uma história, que, sendo das mais antigas do vinho, é, também, paradoxalmente, a mais moderna.
Ao final da tarde, todos estavam preparados para o clímax da festa, o ritual da abertura solene das talhas, um gesto final que evoca a ligação do presente ao passado romano, acompanhado pelo som dos grupos de Cante Alentejano, que por ali estiveram durante toda a tarde.
A Herdade do Rocim, com a sua arquitetura contemporânea a desenhar uma silhueta limpa contra o sol poente, ficava para trás após a nossa viagem de regresso, reafirmando o seu papel: a vanguarda de uma tradição que está a ter bastante sucesso e mantém as suas aspirações. Afinal, Rocim é depositária de uma história de dois mil anos – na talha e no seu ritmo próprio – que transcende os gostos e a memória imediatos, para se tornar num tesouro cultural que nos lembra do próprio futuro.




