Tre piani prometia mais, mas tem pouco para oferecer.
Escolhido como o filme de abertura da Festa do Cinema Italiano deste ano, Tre piani (em português Três Andares), de Nanni Moretti, chegou finalmente às nossas salas. Diz-se que recebeu oito minutos de ovação em pé no final da sua exibição no Festival de Cannes deste ano. Começo a acreditar que as ovações de pé são obrigatórias nessas sessões… Agora que está nos cinemas, Tre piani vale a pena? Sim e não.
Sim, porque é o trabalho de Nanni Moretti, um realizador que, apesar do seu estilo basear-se em histórias plácidas e lineares, é alguém de destaque em termos de identidade cinematográfica.
Não, porque o filme é medíocre. Apesar de ter momentos pontuais de qualidade, os momentos de melodrama, um guião maçador e as más escolhas de realização tornam-no uma maçada, capaz de constranger não pelo que propõe mostrar, mas por vergonha alheia.
Baseado numa obra do autor israelita Eskhol Nevo, Tre piani conta a história dos habitantes de três apartamentos diferentes no mesmo prédio de um bairro de classe média em Roma. Seguimos esses vizinhos e as mudanças nas suas vidas ao longo de 10 anos, tudo com base em conflitos específicos que os assolam durante esse período: uma mãe que tenta criar uma filha sozinha, temendo estar a enlouquecer; um casal de juristas que tenta lidar com o afastamento do filho problemático; e um marido obcecado em proteger a filha, desconfiado que, por culpa sua esta tenha sofrido um abuso sexual, vai tão longe na sua demanda que ameaça destruir o casamento. Os protagonistas deste multiplot tentam lidar com os seus conflitos internos de forma isolada, mas, ao contrário do livro, também interagem uns com os outros, apesar de não haver um evento notório que suporte essa interação durante 10 anos. Nesse aspeto, não há um conflito maior que obrigue a relacioná-los, exceto um acidente infeliz que lança a narrativa no início, mas cujo impacto, e essa seria uma narrativa mais interessante, acaba por não afetar a longo prazo a vida de todos os personagens, só de um núcleo específico.
Ao fim e ao cabo, o problema do filme é que a estrutura do seu guião está um pouco desequilibrada e, que quando termina, perguntamo-nos “Isto foi sobre o quê?”.
Cada uma destas histórias tem força suficiente para ser contada isoladamente, como acontece no livro, mas ao escolher fazer o contrário, Moretti acaba por perder algo na tradução no que diz respeito a lançar, desenvolver e concluir os conflitos. Esses 10 anos em que seguimos como estes personagens lidam com os seus dramas pessoais acabam por não se sentir. Não vemos mudanças drásticas nos seus comportamentos, nem consequências notórias do efeito temporal nas suas vidas. O filme poderia passar-se em três dias e o efeito seria o mesmo. Pior, além de não sentirmos verdadeiramente o tempo mudar e afetar estas pessoas, ao ponto de acreditarmos que os atores estão a ensaiar falas e não a representar, o problema maior é que algumas destas histórias, sem razão aparente, predominam sobre outras.
Ou seja, não é só a forma pouco natural e forçada como Moretti aborda os conflitos, mas a forma como nos guia de uma história para a outra sem coerência narrativa. Lá está, podiam ser três curtas metragens e funcionariam melhor. Não sendo, acabam apenas por tornar um filme maçador mais longo do que deveria ser.
Os comportamentos dos personagens, que num destes “dramas do dia a dia” deveriam passar um realismo mundano, são representados com uma placidez e apatia inexplicável. Não dá para perceber se isto é escolha do realizador ou falta de jeito dos atores ou do montador do filme que escolheu os piores takes de cada plano. Essa falta de verosimilhança com o real acaba por afetar ainda mais uma história que já parece perdida, no que toca a tema e conflito.
Apesar desses momentos desconfortáveis do que parece ser má representação, dá para perceber que esses momentos partem de uma escolha do realizador em forçar-nos a ver o mais ínfimo e insignificante detalhe dos residentes deste prédio, chegando ao ponto de termos cenas que existem apenas para um personagem dizer “Eu vou para Paris”. A falta de tato e a redundância são demasiado constantes e não ajuda que o conflito seja representado sem emoção. O filme parece uma linha reta, do início ao fim, em que, apesar destes personagens aparentemente passarem por transformações, sentimos que nada muda.
Não tenho nada a dizer verdadeiramente sobre a atuação do elenco porque estes atores são bons. Atores como Alba Rohrwacher, Margherita Buy, Adriano Giannini e Riccardo Scarmacio são demasiado bons para não sentirmos as suas capacidades, mesmo com más falas ou sob uma iluminação penosa ou mal enquadrados. Mas o problema é que o filme é um melodrama que, sabendo um pouco o que quer dizer sobre cada história – a loucura como inevitabilidade da solidão, o peso da paternidade, a culpa da paternidade e a capacidade para o perdão – nenhum desses conflitos é trabalhado de forma eficaz.
De todas as histórias, destaco a de Margherita Buy, no papel de Dora, uma mãe reformada que tenta reconciliar-se com o filho problemático, como aquela que apresenta um principio, meio e fim relativamente coeso. Sentimos que aqui existe uma espinha de uma narrativa. As outras duas, ou os outros “dois andares”, têm boas ideias, bons momentos, mas sofrem porque a forma como os personagens progridem no seu conflito é incoerente. Sente-se que há cenas em falta para ajudar a justificar a mudança que ocorre nestas pessoas.
Agora, o filme continua a ter as suas mais valias. As ideias são bonitas. Os conflitos interessantes. Há momentos pontuais em que o realizador fez o trabalho de realizar e dirigir a nossa atenção para um enquadramento ou ação interessante que causa impacto. A tal placidez, ou linearidade de Moretti, tem o seu encanto por vezes, e até há momentos ocasionais de conflito em que sentimos um lado de realismo.
Agora, não sei se é uma mais valia não sentirmos ao certo o que é que o realizador quis dizer com o filme, tal é a falta de controlo formal sobre a narrativa. Os primeiros momentos do filme, em que assistimos a um acidente de viação gráfico, são o ponto alto de Tre piani e uma excelente introdução dos personagens e seus conflitos. Pensamos que está lançado o gancho para um conflito que vai interligar estes personagens e forçá-los a confrontarem-se e a mudarem no decurso desse confronto. Pena que não só isso não acontece, como o filme nunca recupera essa sensação de ânimo, de dinamismo.
No final, deparamo-nos com um melodrama com boas ideias, bons momentos, mas no geral inofensivo. Conforme o tempo passa, questionamo-nos “O que é que ficou na memória?”. Infelizmente, pouca coisa, exceto a ideia de que o filme prometia mais, mas tem pouco para oferecer.
Há um encanto aqui algures, escondido numa destas narrativas, mas se procuram um retrato realista sobre o drama da condição humana, vieram procurar no lugar errado.