Secret Level não é apenas uma ode aos videojogos, é também uma celebração à arte de fazer trailers, adaptando mundos e personagens já pré-existentes a emocionantes curtas que nos deixam a pedir por mais.
Para quem se interessa pouco por bastidores e equipas envolvidas na produção de filmes de grande orçamento ou de materiais de marketing de videojogos, provavelmente não reconhecerá nomes como Tim Miller ou Blur Studio. Mas as chances de já terem visto os seus trabalhos são elevadas. Por exemplo, não teríamos um Deadpool no cinema se Tim Miller (o realizador) e a sua equipa não tivessem produzido a infame test footage que foi alegadamente partilhada por Ryan Reynolds com o público, resultando na franquia de milhões.
Miller e a Blur Studio contam com uma forte presença no meio criativo, com trabalhos espalhados por Hollywood (desde Avatar a The Girl with the Dragon Tattoo), mas cuja origem começou na promoção de meios interativos como videojogos, nomeadamente tech demos animadas, como a primeira demonstração das capacidades da Xbox original. Uma jornada que evoluiu ao ponto de se tornar um dos estúdios mais requisitados da indústria dos videojogos para a produção de sequências cinemáticas (Halo 2 Anniversary) e incontáveis vídeos promocionais que muitos adoram, e até antecipam, assistir nos grandes eventos de novidades de videojogos.
Agora, toda essa experiência do estúdio e o carinho pessoal de Tim Miller culminam em Secret Level, uma série antológica que celebra os videojogos numa coleção de vinhetas que nos respondem rapidamente à questão: “E se este jogo pudesse ser um filme?”. Uma questão perigosa, considerando a dificuldade em adaptar videojogos para cinema e televisão, algo que só nos últimos anos começou a ser levado a sério.
Uma forma simples e rápida de descrever Secret Level é olhando para outra produção da Blur Studio, Love, Death and Robots, para a Netflix, também ela uma antologia, mas com uma direção e ambição diferentes. Se Love, Death and Robots abria as portas a um leque de estúdios de todo o mundo para provarem as suas capacidades de contar histórias no formato de curtas, ao mesmo tempo que celebrava a arte da animação, já Secret Level foca-se na expertise exclusiva da Blur Studio em pegar em mundos já conhecidos (de videojogos) e adaptá-los a um meio de consumo mais acessível, preservando a essência do material original, tanto a nível de direção artística como, por vezes, mecânica, integrando elementos de jogabilidade dos jogos em emocionantes cenas de ação.
Em parte, Secret Level é também uma celebração da arte dos trailers, um formato muitas vezes mal-amado por ser visto como isco de venda de produtos, mas que frequentemente requer níveis de experiência em edição, arte e criatividade tão elevados como na produção de um filme inteiro ou de um jogo. Algo que foi muito aparente ao longo dos 15 episódios que assisti em antecipação à sua estreia, marcada para o dia 10 de dezembro na Prime Video, com uma segunda ronda de episódios a dia 17 de dezembro.
E começo por fazer este apontamento a trailers como uma espécie de aviso e de recomendação, pois a verdadeira natureza destas curtas pode desiludir aqueles que esperam encontrar histórias redondinhas e fechadas, como se de mini-filmes adaptados se tratassem, quando na verdade isso ocorre poucas vezes. Secret Level é, para o bem e para o mal, uma coleção de trailers glorificados, cujas histórias e conteúdos são extensões e reinterpretações dos universos em que se inspiram.
Na lista de 15 episódios composta por mundos como Armored Core, Concord, Crossfire, Dungeons and Dragons, Exodus, Honor of Kings, Mega-Man, New World, Pac-Man, Playtime (PlayStation Studios), Sifu, Spelunky, The Outer Worlds, Unreal Tournament e Warhammer 40K, é fácil fazer uma distinção entre aqueles que realmente funcionam enquanto curtas ou trailers, os que oferecem algo único ou se fazem sentir como descaradas promoções.
Começando pelos menos interessantes, destaco Playtime, uma curta dedicada ao “Universo PlayStation”, que nos chega numa altura interessante, dado que a marca celebra os seus 30 anos de existência. Não só se trata da curta mais desnecessária do pacote, como foi a minha maior desilusão. A verdade é que não sabia de antemão como seria misturar algumas das mascotes da PlayStation numa curta destas produções, mas, com uma história vaga sobre uma estafeta com uma entrega misteriosa, perseguida por uma seleção muito pequena de mascotes da PlayStation, a sensação que ficou é que se tratou apenas de um gigante anúncio à PlayStation. E um mau anúncio, por não ter nada para contar e por não celebrar decentemente o legado da marca.
Playtime é também um teste aos limites das ambições da Blur Studio, que acabam por passar por uma seleção de IPs cuidada e baseada na relação com os estúdios de jogos, que definem os seus interesses e o uso destas propriedades. E são várias as curtas que demonstram esses interesses. O infame Concord, jogo também da PlayStation Studios, lançado no final do verão e cancelado uma semana depois por não conseguir conquistar os jogadores, teve direito a um último suspiro numa curta que, honestamente, deveria ter sido a apresentação oficial do jogo. Conseguiu apresentar rapidamente um leque de personagens bem mais interessantes do que tivemos nas nossas consolas e fez um excelente trabalho ao explicar, em meros minutos, as regras daquele mundo e a razão para o explorarmos. RIP Concord, nunca te esqueceremos.
A curta dedicada a Exodus é outro ótimo exemplo de uma peça de apresentação de um jogo ainda por ser lançado, caindo então no campo do trailer glorificado, mas que faz um excelente trabalho a revelar este mundo de sci-fi e o seu funcionamento ao lidarmos com viagens interestelares e com a dilatação do tempo. Algo que tenho sentido dificuldade em absorver com os trailers da Wizards of the Coast e da Archetype Entertainment, que teimam em não mostrar o jogo com trechos de jogabilidade em tempo real.
Dentro deste grupo, digno de menção é também The Outer Worlds, que serve de setup para a sua sequela, atualmente em desenvolvimento pela Obsidian Entertainment. Juntamente com um hilariante episódio dedicado a New World (protagonizado por Arnold Schwarzenegger), é provavelmente das curtas mais semelhantes ao tom, estrutura e direção do que encontramos em Love, Death & Robots. Aqui, já é fácil esquecer que estamos a ver algo relacionado com um jogo, dado o foco nas peripécias dos protagonistas naquele mundo sci-fi bizarro. No entanto, mais uma vez, não se abstrai de ser um vislumbre de um futuro lançamento.
Voltando aos que funcionaram menos bem, destaco Crossfire e Mega-Man, cujo propósito não é claro. Crossfire, baseado no shooter online da Smilegate, acompanha uma missão de perseguição a uma pessoa de interesse, mas falha ao estabelecer a razão para o conflito entre duas fações ou revelar a importância da pessoa que está a ser protegida. É, no fundo, 15 minutos de nada. Já Mega-Man, com menos de 10 minutos, desilude ao não fazer nada com a icónica personagem da Capcom. Há uma tentativa de contar uma história de origem, através de um pequeno episódio dramático no laboratório do Dr. Light, mas termina num cliffhanger tão grande que todo um jogo poderia começar a partir dali.
No entanto, o resto das curtas vai do bom ao excelente. Sifu e Spelunky, dois episódios também eles pequenos, focam-se particularmente nas mecânicas dos jogos em que se inspiram. Sifu acompanha uma missão de vingança, com o protagonista a envelhecer cada vez que falha, enquanto Spelunky utiliza os elementos de rogue-like de forma narrativa para transmitir uma mensagem adorável de perseverança e de luta contra os momentos mais difíceis das nossas vidas.
Warhammer 40K e Dungeons and Dragons fazem-se sentir como extensões dos jogos e dos mundos em que se inspiram, quase como missões que poderiam existir nos jogos. Warhammer 40K foca-se numa aventura de Titus, o recente protagonista de Warhammer 40K: Space Marine 2, revelando um pouco do seu passado e apresentando uma demonstração incrível das capacidades de guerra dos icónicos soldados. Já Dungeons and Dragons é uma divertida aventura, com um grupo diverso de personagens fantásticas e um final que irá certamente deixar os fãs da franquia a desejar por mais.
De forma semelhante, encontramos a curta dedicada a Armored Core, protagonizada por Keanu Reeves, num papel cru e visceral, enquanto comanda uma máquina de guerra em combates energéticos e radicais num mundo gelado e desolado. Não é clara a ligação direta ao mais recente Armored Core VI: Fires of Rubicon, mas, desde os ambientes a outras pequenas referências, é fácil estabelecer comparações. No entanto, funciona extremamente bem como algo isolado de qualquer um dos jogos, mesmo para quem não conhece a franquia.
Para as maiores surpresas de Secret Level, nomeio Unreal Tournament e Pac-Man. Não só são duas propriedades com as quais questionava “como vão fazer isso?”, como foram as que apresentaram conceitos e histórias mais interessantes. Unreal Tournament pega no conceito de torneio à letra e inspira-se nos combates de coliseu do Império Romano, onde assistimos a uma rebelião das máquinas. Já Pac-Man, com um registo visual muito próprio, é uma reinvenção de tudo o que conhecemos do icónico jogo das arcadas, aproximando esta história a algo que poderia muito bem sair de uma adaptação de Dark Souls. É brutal, estranho, aterrorizante e igualmente belo. Acima de tudo, familiar.
Secret Level foi promovido como uma coleção de episódios de animação para adultos e, de facto, são vários os episódios que puxam pela sensibilidade de algum público, com cenas extremamente violentas e gratuitas. Felizmente, ao contrário de Love, Death & Robots, o foco nunca foi chocar ou provocar as audiências, procurando, acima de tudo, injetar boas mensagens e contar histórias dentro das limitações criativas e, por vezes, executivas, dada a responsabilidade de representar estas propriedades intelectuais.
Se são fãs de antologias e de curtas, vale bem a pena espreitar Secret Level, mas é necessário estar com a cabeça no sítio certo e perceber do que se trata: trailers e curtas promocionais. Já se adoram trailers e estão abertos à ideia de reimaginações de propriedades pré-estabelecidas, não sairão desiludidos.