Terminou uma das produções mais sublimes da história (em formato anime) e não pude deixar passar sem deixar a minha nota de apreciação.
Da mente de Kanehito Yamada saiu Sousou No Frieren ou Frieren: Beyond Journey’s End, uma história lindíssima que tem como foco a realização pessoal e evolução psicológica de uma elfo chamada Frieren, para a qual o tempo tem um significado diferente do que tem para as restantes pessoas. Isto porque a longevidade dos elfos nesta história, pode chegar a uma mão cheia de milhares de anos.
Resumindo a sinopse, em contraste com a maioria de animes Shounen, Sousou No Frieren tem início no “fim”. No fim porque a história começa após Frieren – acompanhada por Himmel, Heiter e Eisen – derrotar o grande vilão que assolava o continente, Demon King. Acontecimento que marca o desfecho de uma década durante a qual os quatro heróis se aventuraram, exploraram e batalharam juntos, criando memórias únicas.
No entanto, como referido acima, para Frieren o tempo tem um significado diferente, o que faz com que esta aventura de 10 anos represente uma pequena fração da sua (já longa) vida. O primeiro episódio é marcado por este desfecho, no qual o grupo se separa e Frieren segue a sua demanda de solitude em busca de livros de feitiços – um das suas atividades preferidas (a seguir a dormir).
À medida que os anos passam, aliado à perda de dois dos seus companheiros de aventura, cresce em Frieren um sentimento de arrependimento, por ter dado a presença desses companheiros como garantida. Esta experiência de perda, leva Frieren a comprometer-se em compreender a essência humana e criar laços mais profundos, abandonado a sua natureza apática, fechada a emoções.
Com o terminar de uma viagem épica, começa uma fábula belíssima. Nesta fábula, a pedido de um dos seus antigos companheiros de viagem, Frieren aceita ser mentora de Fern – uma orfã humana com um enorme potencial para magia – num papel quase materno. Com Fern a seu lado, a elfo vê a sua apreciação pelo valor do tempo e conexões interpessoais desenvolverem-se a um ritmo algo constante.
Ao longo destes 28 episódios, com uma panóplia de lições de vida, histórias recheadas de moral e atos involuntários de bondade, assistimos ao crescimento de Frieren, sem que esta deixe de ser fiel à sua essência. Em paralelo somos presenteados com situações passadas da sua vida, que ilustram e explicam o porquê de ser como é, de forma objetiva, mas clara. O mais fantástico neste paralelismo prende-se com do facto dos “Flashbacks” surgirem sempre na altura certa, como introdução ao que está a acontecer e nunca como recurso para remediar ou remendar algo anormal que aconteceu ou está prestes a acontecer – como acontece na maioria dos anime. A nível de qualidade e sequência de narrativa, digo isto com certezas: não existem muitas produções como esta. E para mim, é este o ponto mais forte deste anime.
Aliado à narrativa, estão personagens às quais lhes é dado espaço para respirar e florescer. Não há pressa para chegar a nenhum lado, nem tão pouco o anime se capitaliza exclusivamente no mundo através da lente de Frieren. A elfo é o elo de ligação, mas nunca fica a sensação de que o anime é feito para ela. Muito pelo contrário, é com base nela que o anime cresce e se desenvolve, sendo atribuído tempo de antena a todas as personagens para mostrarem um pouco de si, no qual lhes atribuída uma personalidade, maneirismos e uma forma de agir muito própria, o que faz com que seja fácil preocupar-nos e querermos saber delas.
Ainda dentro do ponto anterior, e face à forma como se desenrolou o episódio piloto, tinha algumas reservas sobre a utilidade de Himmel, Reiter e Eisen, mas ainda que, em vida, o tempo para se mostrarem não tenha sido muito, quando somos remetidos para as memórias de Frieren, as três personagens complementam o sentido da história, à medida que esta se vai desenrolando. E isto remete-me para o meu próximo ponto, que é a mestria com que Kanehito Yamada emprega o princípio narrativo de “Chekhov’s gun”, sem nunca ser simplório ou evidente. Tudo o que Yamada usa são objetos, acontecimentos ou ações simples que facilmente passam despercebidas, mas que tornam a narrativa extremamente densa e rica.
Optei deixar para o fim os grafismos e sequências de ação, porque não são, de todo, o essencial dentro deste anime, mas a verdade é que não devem nada a grande produções dentro do universo anime. Primeiramente porque a personalidade de cada personagem afeta a forma como se movimenta, o ritmo de passo, os olhares e até as expressões faciais. Nada disto é estandardizado, sendo fácil identificar cada personagem através de ações ou entoação. Prova de que isto não foi mero acaso relativo às personagens base, na segunda metade do anime somos apresentados a mais de uma dezena de personagens, todas elas extremamente bem trabalhadas e únicas ao ponto de terem estofo para ser protagonistas.
A nível das tais sequências de ação que falava, adensadas pela personalidade de cada personagem, são absolutamente fabulosas. Dirigido por Keiichirō Saitō e produzido pelos estúdios Madhouse (Death Note, One Punch Man, HunterxHunter, entre outros), defendo que foi atingido um novo nível de magnificência a nível de desenho. As batalhas são dotadas de detalhes exímios (independentemente da intensidade do momento), desenhos vibrantes, sombras e brilhos perfeitamente ajustadas à realidade presente e dinâmicas que estão ao nível dos melhores da indústria. Não vou referir momentos em específico, porque a surpresa torna a experiência mais emocionante e arrepiante.
Sousou No Frieren estreou em setembro de 2023 e conseguiu estar à altura da fama associada à manga. A receção foi fabulosa e, em finais de novembro, atingia a pontuação de 9.10, destronando (após muitos anos) Full Metal Achemist como anime mais bem pontuado de sempre no maior site do género (MyAnimeList.net). Desde então, a qualidade foi sendo constante e, na semana passada, chegou à pontuação de 9.17, já com cerca de 150 mil votos. No dia 22 de março saiu o 28.º e último episódio da temporada e, com mais 100 mil votos, a pontuação disparou para 9.37 (algo nunca antes visto).
A verdade é que o fenómeno de Frieren não é de agora, pois na visita que fiz a Tóquio no ano passado, corri Akihabara inteira, altura em que só tinham sido lançados uma dúzia de episódios e encontrar merchandising do anime foi uma missão quase impossível, pois estava tudo esgotado. O mais impressionante é que toda a gente que abordei, nesta minha busca por produtos promocionais de Frieren, conheciam o anime e todos eles mostraram contentamento face à minha questão deste anime em específico (coisa que não aconteceu com Mushoku Tensei, Jujutsu Kaisen ou Re-Zero). Isto leva-me a ter a certeza que é uma produção muito acarinhada no Japão.
As boas notícias é que a fábula desta Elfo tão peculiar marcou a indústria positivamente e não vai ficar por aqui, visto que já existe bastante manga para além do ponto onde o anime terminou, e no final do genérico de fecho do último episódio, surge a frase que confirma um regresso de Frieren ao formato de anime. E eu cá estarei para isso – se bem que não acredito que aguente até lá sem dar uma espreitada à manga.
Sei que este anime não é para toda a gente. Todavia, quero reiterar que a qualidade está bem patente, com base nos pontos que abordei ao longo desta crítica. Em todo o caso, se tiverem paciência para produções com desenvolvimento pausado e rico, com foco no desenvolvimento de personagem, não tenho reservas em recomendar-vos este.
Não conhecia Kanehito Yamada e agora sou fã. Fã da sua visão, fã da sua imaginação, fã do quão humana e “terra a terra” é, fã da sua atenção ao detalhe, fã da forma como dá vida às diversas personagens e, sobretudo, fã da forma apaixonada com que escreve.
Sousou No Frieren leva o seu tempo para explicar o quão efémero e precioso o tempo é e, para mim, não há nada mais bonito que isto.