Parece esquisito, mas desde 2006 que os Belle & Sebastian não visitavam Lisboa. Na verdade, houve a promessa de um concerto no Coliseu dos Recreios cancelado em 2015, aquando da saída de Girls in Peacetime Want to Dance, por motivos de doença de Stuart Murdoch (várias concertos pela Europa sofreram desse padecimento), e a norte deste jardim à beira mar plantado Paredes de Coura e o Porto receberam festivaleiramente aparecimentos da trupe escocesa em anos recentes.
Só que a experiência de estar em ambiente fechado de sala de fino recorte, onde os fiéis se escondem da chuva e tempo frio e se congregam para ouvir de perto quem costuma estar tão perto do coração mas tão longe da vista, essa já faltava há muito. Há demasiado.
Assim, após primeira parte dos bons portugueses Tape Junk, percebe-se depressa que muito escocesa banda entra a jogar em casa, com a Aula Magna a apresentar um belo estado de composição. É uma casa segura, quente e confortável, onde se apetece estar e não ir embora tão cedo. A resposta dos Belle & Sebastian é rápida e eles mostram que não querem ser outros em 2019.
Aprenderam coisas que não sabiam há mais de vinte anos, mas continuam a ser indiscutivelmente eles. Há referências literárias e animações a passar em pano de fundo onde se mostra a capa de On the Road, de Jack Kerouac. O manto dos Smiths bem firme nas mãos, música para quem às vezes custa sentir tanto, mas que não escolheria outra maneira de viver, mesmo se pudesse. Os Divine Comedy de Neil Hannon, esse rapaz também de boas leituras, vão tocar no mesmo local do crime mais logo. Onde andarão os novos herdeiros de tão ilustre tradição?
O humor auto depreciativo de Stuart Murdoch e amigos (no total, nove instrumentistas em palco, a fazer sentir bem a diferença de estar ali e não num outro palco qualquer) ajudam a criar o ambiente de família grande que se está a reunir (um vinho e uma rabanada iam saber bem, mas não se pode pedir tudo). A química com o resto da banda, em especial com os primus inter pares e parceiros vocais Stevie Jackson, na guitarra, e Sarah Martin, no violino e teclados ajuda a que a dinâmica se vá desenrolando sem dificuldade.
Stuart é a estrela de voz melódica que se poderia confundir no meio de nós, o bom Cristão que procura a igreja de manhã e a aula de meditação Budista à tarde, e que não desistiu de ler romances em papel em tempos de poucos caracteres, mas que canta, salta e toca piano. Ao mesmo tempo, é o mestre que controla os tempos e garante que a atenção nunca sai dali, e o homem vai apresentando a bom ritmo as canções, mesmo que algumas sejam cantadas pelos parceiros.
Canções que fazem parte de um repertório tão vasto que facilmente no dia seguinte se poderia fazer novo concerto dos Belle & Sebastian sem repetir uma sequer das 18 que passaram nesta quarta-feira sem que o nível de interesse dos fãs baixasse – declaração de interesse, “If You’re Feeling Sinister”, “Me and The Major”, “Seeing Other People” e “Dress Up in You” podiam e deviam ter passado, só para citar algumas.
Na verdade, se a modinha de passar discos integrais em concertos chega a Glasgow, os opus de finais de noventa iam garantir que esta mesma sala enchesse, aposta-se. Problemas de ricos de espírito. Os melhores, aliás.
Assim, ontem teve-se direito a um alinhamento rigorosamente ao centro, com o início de “Nobody’s Empire“ a ter sequência no novíssimo “Sister Buddha”, de Days of the Bagnold Summer, banda sonora do filme com o mesmo nome. Lá para o meio, “Funny Little Frog” ajuda a provar que The Life Pursuit é um grande álbum, mesmo antes de um dos grandes momentos da noite, a versão linda e despida de “Piazza, New York Catcher” que Murdoch descreve como sendo a música de início de relação com a sua mulher.
“Dog on Wheels” é outro hino incontornável dos Belle & Sebastian, antes de “Another Sunny Day” e a chegada da melhor música de invasão de palco de sempre, “The Boy With the Arab Strap”. Já se sabe o que vai acontecer, mas acontece tão bem e com tanta boa disposição, sem qualquer atrito, que é como se fosse um baile de garagem. Dá para confundir que pagou o bilhete e quem está ali para tocar? Dá, pois.
Percebe-se que o fim não está longe, facto afirmado de forma simpática, mas firme, “The State I Am In” faz o fim do princípio, antes do encore com a mágica “The Stars of Track and Field”, e a despedida com “Sukie in the Graveyard”.
Vamos embora do sítio onde se sentiu amor e justiça após se ter esperado tanto tempo. Não estamos sozinhos.