Alien: Romulus, ou quando a realidade destrói o mito

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Atenção, este texto pode conter spoilers sobre o mais recente filme da saga Alien.

Quase 50 anos depois de séries de culto como Espaço 1999 e a primeira versão de Star Trek (Caminho das Estrelas, criada por Gene Roddenberry) terem chegado aos ecrãs das casas portuguesas, muitos de nós concedem tanto aos velhos como aos novos emblemas da ficção científica cinemática e televisiva um grau de condescendência que resulta de um acerto consciente com os conseguimentos e os pequenos grandes ridículos da ficção do espaço e do universo alienígena adaptados à cultura do espetador médio (e nutridos pela concretização da chegada do Homem à Lua). Só não sei é, para o caso que hoje interessa, se a velha Regina de Alien poderá continuar a trilhar a sua senda de glória sem cair irremediavelmente no vazio sideral do qual foi resgatada para fazer mais esta aparição cinematográfica…

Em 1976, as crianças passavam os intervalos da escola, às segundas-feiras de manhã, a discutir o episódio do Espaço 1999 desse fim de semana, particularmente, os novos monstros que apareciam e a resiliência com que o comandante Koenig lidava com os dilemas existenciais que se colocavam aos habitantes da Base Lunar Alfa. Três anos depois do primeiro episódio dessa afortunada série da dupla Gerry Anderson e Sylvia Anderson, muitos de nós tinham-se tornado entretanto jovens adolescentes que se limitavam agora a rir dos monstros de borracha em que Maia se metamorfoseava e das estranhas personagens cobertas de adereços circenses, quando uma das maiores bombas da ficção científica aterrou nos cinemas: Alien: O Oitavo Passageiro.

Em Portugal, os que não foram ao cinema acabaram por conhecer a terrível Regina e o seu exército de ‘xenomorfos’ quando estes entraram em nossas casas pelos pequenos ecrãs de televisão, isto, em 1984. Desde logo, o «organismo perfeito» do alienígena, plasmado numa figura criada pelo inconfundivel génio de H. R. Giger, conquistou inúmeros fãs para um género que alia a ficção científica e o terror. A irrepreensível animalidade da «besta», nas palavras do sintético Dr. Ash, traduziu-se rapidamente num contraponto da espécie humana vertido em qualidades extremas que justificavam, aos olhos do oficial cientista, sacrificar a tripulação humana da Nostromo pelos interesses da investigação e da Companhia.

Estavam lançadas as bases de uma saga que teve Dan O’Bannon como autor do roteiro original (inspirando-se em clássicos de ficção e terror como The Thing from Another World, de 1951, e It! The Terror from Beyond Space, de 1958) e que contou com um friso de realizadores, uns mais notáveis do que outros, que deram forma e bom ritmo a Alien como uma das mais promotedoras franquias do cinema: Alien: O Oitavo Passageiro (1979, Ridley Scott), Aliens – O Reencontro Final (1986, James Cameron), Alien 3 (1992, David Fincher); Alien: Ressurreição (1997, Jean-Pierre Jeunet); Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017), ambos marcados pelo regresso de Ridley Scott e, por fim, Alien: Romulus (2024, Fede Álvarez).

O ambiente distópico num futuro nebuloso, as sequências bem entricheiradas numa narrativa robustecida por personagens bem vincadas, a verosimilhança dos cenários, como o caso da própria Nostromo — uma nave tão gasta e suja como qualquer cargueiro nosso contemporâneo —, o timbre rarefeito, realista e cru dos diálogos e a escassez de exposição do alienígena ao olhar dos espectadores tornaram a própria figura e conceito de Alien no cerne de uma obra-prima incontestável a que Gordon Carroll, David Giler e Walter Hill deram forma e de que os outros filmes retiraram vibração e oxigénio para se poderem legitimar como seus sucedâneos.

A sequela Aliens – O Reencontro Final (1986), de James Cameron, operou algumas mudanças, expandindo o universo da saga e contextualizando melhor as personagens e a criatura. A futilidade da força militar, evidenciada pela forma como os fuzileiros coloniais fanfarrões sucumbem rapidamente no confronto com a realidade, destaca-se em contraste com a sobrevivência da jovem Newt – Rebecca (Carrie Henn) e da própria Helen Ripley (Sigourney Weaver), que não sendo soldados, assumem a dignidade da força humana, respetivamente, a capacidade de sobrevivência e a liderança inesperadas.

Quando David Fincher dirigiu Alien 3 (1992), a saga encontrou uma nova voz, à luz das fornalhas, colocando a tónica na redenção dos ocupantes da colónia penal Fury 161, com uma Ripley sacrificial como centro moral da narrativa e metendo, pela primeira vez, explicitamente, na posição de mulher, uma protagonista cuja feminilidade se tinha restringido à preocupação pelos outros e ao amor maternal pela menina encontrada no complexo de LV-426, a pequena Newt, no segundo filme.

No entanto, é com Alien: Ressurreição (1997), dirigido por Jean-Pierre Jeunet, que a franquia começa a descambar. A contaminação da narrativa por temas mais urgentes da época — como a clonagem e a manipulação genética — resultou numa obra que se afastou da essência do terror psicológico e do suspense, ao incidir numa ideia metafórica de monstro bizarro humanoide (o fruto da união do ADN do alienígena com o da própria Helen Ripley). Aqui, os quatro volumes da saga ainda estão ligados pelas qualidade das equipas que neles trabalharam e, de modo muito especial, pela prestação única de Sigourney Weaver, cuja carreira parece ter sofrido do mesmo mal que a sua arqui-inimiga, a Regina alienígena: nenhuma delas, depois do brilho galático inicial, consegue voltar a tocar nas estrelas, como nesse momento de descoberta e confronto do homem com um monstro do espaço cuja principal qualidade era ter tudo para ser crível e real.

Décadas depois e já com novos atores, Ridley Scott torna a enfrentar a Regina e os seus frutos, com Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017). Apesar da receção crítica menos abonatória, Prometheus tem uma qualidade inconfundível face às narrativas anteriores, pela sua cinematografia deslumbrante e, diga-se, pelas fortes interpretações de Michael Fassbender e Noomi Rapace. A dualidade de Fassbender nos papéis simultâneos de David e Walter garantiu uma continuidade narrativa eficaz.

Porém, em Covenant, as sementes do desastre estavam presentes: desde o decalque dramático da morte de Kaine (Oitavo Passageiro), por Oram (Billy Crudupp), o líder frouxo da expedição, numa imitação performativa dos tremores reflexos da vítima trespassada pelo embrião que lhe salta do peito, até à quase imediata incubação do alienígena, muito diferente da narrativa prévia — tudo ali parece demasiado apressado, sacrificado em nome de uma ação frenética onde os elementos simbólicos de uma contaminação algo artificial se sobrepõem à essência dos caracteres e da história, numa rude evasão à lógica elementar.

Agora com Alien: Romulus, assistimos acima de tudo a um esvaziamento cinematográfico disfarçado por uma profusão de elementos. Dirigido por um novo cineasta, Fede Álvarez, a saga atingiu um ponto crítico que se traduz, para quem de facto a acompanha, numa enorme frustração.

Um pouco à imagem do que já era uma tendência nos anteriores filmes sucedâneos do Oitavo Passageiro, este, em vez de continuar e revitalizar a série, retira dela tudo quanto pode, fazendo uma colagem barulhenta e incoerente de referências dos filmes anteriores, sem qualquer sentido de novidade ou profundidade. Parece que alguém foi incumbido de fazer um levantamento exaustivo de todos os elementos icónicos da saga, de modo a encaixá-los num pano onde tudo tem de ter um fluxo vertiginoso, ruidoso, amalgamado com os genes dos seus ascendentes mas que resulta, nada mais, nada menos, numa narrativa que se arrasta sem alma.

O uso de um clone digital de Ian Holm para recuperar o papel de Ash, o sinistro andróide do primeiro filme, é uma estratégia criativa que coloca até, a meu ver, questões de natureza ética. Trazer um ator falecido de volta aos ecrãs, mesmo que com a intenção de lhe prestar homenagem, resvala em mau gosto quando a abordagem resulta num mau trabalho, algo forçado e de um efeito, diria, boçal. Essa tentativa de ressurreição digital, combinada com excertos do velho guião e cenas de ação que mais parecem uma trapalhada, condena o conceito original ao monstro da banalização: as mandíbulas de terror de Alien perdem força por trás de uma cortina de efeitos visuais e sonoros extrínsecos a toda a trágica trama e fria escuridão que tinham sido tão bem cerzidas nos dois primeiros filmes.

A falta de inovação não se limita às debilidades do enredo ou à imaturidade das personagens (todas desempenhadas por atores muito jovens); até mesmo a coreografia cénica e a banda sonora caem no mesmo erro de repescagem, tentando desesperadamente evocar gestos, situações e significados considerados emblemáticos dos filmes anteriores. O resultado é uma experiência previsível, onde cada troço narrativo parece ser um eco de um cliché pré-existente. O cúmulo é atingido quando percebemos, por exemplo, que as colunas gritam sozinhas, com girtos extemporâneos, como que de reação dos espetadores à situação das personagens. A cena final, em que a nave mergulha nos anéis de gelo do planeta Janus, por exemplo, poderia ter sido promissora, mas é poluída por um exagero visual e por uma intensidade extirpada de ações verdadeiramente irrealizáveis ou impossíveis.

Mas se a força original de Alien residia na capacidade de misturar horror e ficção científica de uma forma única, suprimindo detalhes do antes e do depois e focando-se no presente sufocante de personagens profundamente humanas, egoístas, irracionais, desoladas, no final, esta nova tentativa de resgatar a fórmula com Alien: Romulus parece matá-la um pouco mais.

Este último filme parece ser mais uma exploração oportunista do legado da franquia do que um esforço genuíno para a reescrever ou revitalizar. Indo buscar o alienígena ao espaço, onde vogava depois de ter sido expulso do habitáculo por Ripley, o filme alude a um dos mitos ancestrais de Roma, o dos gémeos Rómulo e Remo, similar ao exemplo dos bíblicos irmãos Caim e Abel.

Infelizmente, tal evocação não se deixa contaminar pelo simbolismo poético que a lenda comporta. A narrativa não chega a delinear uma dualidade que o justifique, da mesma forma que a realização fundacional dos sobreviventes, que pretende suprir toda a lógica desta nova narrativa, também não convence. Nos instantes finais, ela não passa de mais uma suposição de boa-fé, depois de tão aparatosas inverosimilhanças, tais como a cena vertiginosa em que, na iminência da queda da nave nos anéis de Janus, a heroina (Clemens, interpretada por Luna Wedler) consegue ainda assim amarinhar por uma corda acima, de volta à nave, na última fração de segundo, depois de ter estado quase a raspar as solas das botas nos blocos de gelo do planeta.

Nota positiva, repare-se, para a interpretação de Tahar Rahim (O Profeta, 2009, e The Mauritanian, 2021), que desempenha o papel de Floyd. A figura do novo sintético consegue, graças à sua complexidade psicológica, emergir do caos e iluminar pontualmente um guião onde tudo parece afundar-se sob o peso de uma repetição contaminante de referências cuja beleza se esvai tão depressa quanto a esperança de obter um bom nível de entretenimento com esta película.

Como tudo tende a voltar ao seu princípio, é certo que os mais jovens estão agora a lidar com Alien pela primeira vez e esse é um raio de esperança na fortuna desta franquia. Ao contrário dos fãs assíduos, mais velhos, e do seu inevitável descontentamento, é possível que os mais jovens tragam uma visão nova e diferente, enquanto desconhecedores, na maioria, de tudo o que está para trás; um desconhecimento que torna os seus ouvidos insensíveis ao canto do cisne…

Ou talvez seja tempo de deixar Ripley e o ‘xenomorfo’ reginiano descansarem em paz, finalmente, na esperança de que novas produções tragam para os ecrãs novos heróis e monstros que revitalizem este género de ficção.

A saga Alien tem, pois, atravessado os seus altos e baixos, mas com Alien: Romulus acaba de dar um passo na direção errada, esvaziando a sua própria fonte de inspiração. Resta saber se não seria mais produtivo preservar a Regina como parte de um certo imaginário, deixando-a nas dobras misteriosas do universo, onde a sua permanência fará decerto mais sentido.

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