Os norte-americanos The Roots já tinham salvado a sua própria pele no festival Sudoeste, em 2012, após uma estreia desastrada no festival Paredes de Coura no ano de 2005. Desta vez, salvaram a primeira noite do EDP Cool Jazz com um grande concerto após o cancelamento da atuação dos portugueses HMB, que nem à terceira tentativa conseguiram terminar a primeira música devido a problemas técnicos de som.
Tudo está bem quando acaba bem. No passado dia 9 de julho, os The Roots provaram que não precisavam de uma banda de aquecimento, nem sequer de uma plateia com cadeiras. Os onze músicos que subiram ao palco puseram todos a dançar ao longo de quase duas horas, sem pausas para respirar.
A banda de Filadélfia não recorreu apenas ao seu vasto repertório, construído ao longo de uma carreira com mais de 30 anos. Tiraram da cartola versões muito aplaudidas de “Looking at the Front Door” (colheita de 1991 dos Main Source) e de pérolas dos anos 70, como “Think Twice”, “Change Makes You Want to Hustle” (ambos de Donald Byrd), “Dance Girl” (dos The Rimshots, que foi misturada com “Rock Creek Park” dos The Blackbyrds) e “Move On Up” de Curtis Mayfield.
Mas não se ficaram por aí. “Não é possível compreender o presente ou o futuro sem primeiro conhecermos o passado”, atirou o vocalista Black Thought, antes de pegarem fogo à plateia com um surpreendente medley, em jeito de homenagem à cultura hip-hop. Numa sequência alucinante, em jeito de jam session, tocaram canções de A Tribe Called Quest (“I Left My Wallet in El Segundo”), Lil Wayne (“A Milli”), Jay-Z (“Big Pimpin’”), Outkast (“So Fresh, So Clean”), Wu-Tang Clan (“Cream”), Arrested Development (“People Everyday”), Frankie Cutlass (“Puerto Rico”), Gang Starr (“Mass Appeal”), Ol’ Dirty Bastard (Shimmy Shimmy Ya”), Lil Nas X (“Old Town Road”) e até de John Coltrane (“My Favorite Things”).
A lotação do Hipódromo Manuel Possolo não esgotou, mas a plateia esteve muito bem composta para ver atuar aquela que muitos conhecem como a banda residente dos programas de Jimmy Fallon. O emprego estável que têm desde 2009 não foi sinónimo de facilitismo. Na última década, os The Roots ganharam criatividade e destreza, não apenas pela exigência inerente a quem é responsável musical de um Late Night diário em horário nobre, mas também devido à própria participação da banda nos sketches daquele programa televisivo.
Essas qualidades ficaram bem patentes na noite de abertura da 16.ª edição do EDP Cool Jazz. Como seria de esperar, o maior protagonismo foi assumido pelos membros fundadores Black Thought (voz) e Questlove (bateria), ambos já à beira dos 50 anos. O rapper surgiu com uma espécie de robe de boxe com as palavras “Reigning Champ” inscritas nas costas e com uma toalha enrolada no pescoço. Se de um combate se tratasse, não seria difícil encontrar o vencedor da noite: Black Thought confirmou ser um MC de fina estampa, um incansável mestre-de-cerimónias que teve sempre a plateia na sua mão.
Mas é justo dizer que todos tiveram oportunidade de brilhar. Jeremy Ellis foi, aliás, o primeiro a subir ao palco, manipulando habilmente os botões da sua máquina e usando samples que deixaram bem patente a influencia que o mestre James Brown tem na música dos The Roots. E por falar em dedos mágicos, há que destacar também a arte de Stro Elliot no scratching e no manejar da sua drum machine, ele que é o mais recente membro da banda. Estes efeitos de percussão eletrónica foram o complemento perfeito a Questlove, que, aos comandos da bateria, marcou o ritmo e partiu a loiça toda.
Na frente do palco, a ordem era circular sem parar. Mas se lhe dissermos que um dos elementos mais irrequietos (Damon Bryson aka Tuba Gooding Jr.) carregava nos ombros um sousafone – o maior dos instrumentos de sopro! – o leitor perceberá melhor como os The Roots estiveram sempre ligados à corrente.
A secção de sopros, que incluiu ainda o trompetista Dave Guy e o saxofonista Ian Hendrickson-Smith, brilhou intensamente em “Conception”, música extraída do segundo volume de Stream of Thoughts, o álbum de estreia a solo lançado por Black Thought em 2018.
No mês passado, no âmbito do Roots Picnic – um festival de música que a banda organiza anualmente – os The Roots celebraram o vigésimo aniversário do álbum Things Fall Apart, tocando-o na íntegra. Em Cascais não foi assim, mas o disco editado em 1999 foi a maior aposta da noite, através dos temas “The Next Movement” (marcada por um solo cheio de groove do baixista Mark Kelley), “Dynamite!”, “Act Too (The Love of My Life)” e “You Got Me” (que na versão de estúdio é cantada em dueto com Erykah Badu).
Para a reta final ficou guardado o clássico “The Seed 2.0.”. O tema que Cody ChesnuTT gravou em 2002 e que, no mesmo ano, os The Roots regravaram no álbum Phrenology, mereceu um arranjo mais acelerado que resultou muito bem ao vivo. O guitarrista Captain Kirk Douglas substituiu a voz de ChesnuTT, ele que momentos antes tinha arrebatado os espectadores com um solo explosivo que terminou com Douglas ajoelhado no centro do palco.
Pouco depois, o percussionista Stro Elliot tomou as rédeas e deu uma lição de sampling, pegando em “Apache”, dos Incredible Bongo Band e fazendo a ponte para, depois, os The Roots fecharem a noite com “Men at Work”, tema do duo Kool G Rap & DJ Polo que inclui precisamente uma sample de “Apache”.
Chegava ao fim uma noite de celebração da música negra, cortesia de uns The Roots exímios a misturar diferentes géneros musicais, seja rock, funk, jazz ou hip-hop. “Soul power, power to the people!”, atirou por fim Black Thought. A magia negra tem mesmo muito encanto.
Fotos de: Graziela Costa